Capítulo 14

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Essa é uma gravação de áudio, registro da vigésima sétima geração de legados, Constantino Juma — último remanescente da família. Não há muitos registros, pois Kun parou de relatar os acontecimentos, então tudo aqui dito são fatos presenciados por mim.

Minha saúde vem se degradando a cada dia, que mal consigo segurar a caneta para registrar em meu livro. Os tempos mudaram bastante, então a gravação tem sido minha aliada, além dos computadores. Não posso deixar de registrar o processo que está sendo feito na vida de meu parente imortal;

Kun continua resiliente desde a morte de nossa família. Não sei mais o que passa na cabeça de meu irmão — sua melancolia tem sido uma das maiores preocupações minha e de Rosana. Estamos nos esforçando para nos adequar ao novo mundo, apesar dos olhares enviesados daquela gente, claro, não era comum um casal de negros comprarem uma propriedade tão extensa no alto da colina.

Ficar afastados da civilização era mais seguro, tanto para nós, quanto para o próprio Kun. O trabalho árduo de mantê-lo longe do perigo tem sido desgastante, entretanto, por outro lado, meu irmão passa mais tempo dentro do porão, do que vendo o sol fora de casa. Me preocupa as vezes que tentou contra a própria vida — meu irmão não tem vontade de viver.

Não podia saber como era viver tantas vidas e em todas elas perder as pessoas que amava; estava estampado no rosto dele aquela dor, que passou a ser física. Talvez as boas notícias pudessem alegrar meu irmão, ao menos um pouco de luz para que aquela escuridão pudesse deixá-lo feliz.

[...]

Hoje é dez de setembro de 1989, faz três dias que Dimitri nasceu, depois de anos tentando ter filhos. Rosana está exultante e tem sido uma mãe coruja, pois não tinha esperanças que na sua idade avançada poderíamos formar uma família. Dimitri é tão lindo, bochechas rechonchudas, olhinhos redondos e cor de mel, mas sem um fio de cabelo na cabeça.

Quando apresentamos ele a Kun, para o ritual de benção, pela primeira vez em anos vi meu irmão sorrindo. Lágrimas escorriam em seus olhos, então me encarou feliz, assim como nós, pois novamente a luz entrou dentro das paredes daquela casa enorme e vazia.

Me sinto esperançoso.

[...]

A cena era hilária, Rosana me mandou ver o bebê que chorava de noite, mas quando cheguei lá, Dimitri serenava nos braços de Kun, que estava sentado na cadeira de balanço e olhos fechados. Podia dizer que ele era tão pai do menino quanto eu, passando todo o tempo com Dimitri, vivendo de novo.

Tínhamos voltado aos negócios, mas basicamente o irmão Kun era o nome e o rosto da empresa, para manter a sociedade racista sossegada, enquanto eu tomava conta de tudo, tendo apenas seu aconselhamento, pois para um imortal, tinha bastante experiência no mercado. Nossas vidas estão finalmente voltando ao normal.

Sabe, eu sei que Dimitri tem sido um alívio para o coração ferido de Kun, mas sabia que lhe faltava alguma coisa — a dor era mais profunda e isso tinha haver com a jovem Rafaela, jovem moça que morreu tantas vezes em seus braços. Talvez meu irmão demoraria eras para se perdoar pela morte de todos, ou nunca.

[...]

Dimitri está fazendo seis anos esta noite — Kun preparou uma festa bem bonita para ele e seus amiguinhos da escola. Fiquei feliz que meu filho tinha tantos amiguinhos, dado o preconceito tão latente na nossa sociedade, mas crianças enxergavam além da cor e isso me dava esperança sobre o futuro.

Tudo estava tão lindo e colorido, Dimitri corria por todo lado da mansão, Rosana carregava sanduíches para as crianças, enquanto eu tentava fazer bichinhos com balões. Kun olhava em certa distância as crianças correndo, algumas vezes impedindo que derrubassem coisas frágeis.

Beauty and the Beast (Qian Kun)Onde histórias criam vida. Descubra agora