Beauty and the Beast (Qian Kun)

Capítulo 10

A jovem Santos repousava tranquilamente ao seu lado na cama, entretanto Kun não conseguia dormir, não quando sabia que aquela poderia ser sua última vez juntos, era sempre naquele momento de felicidade que as coisas perdiam o controle e no fundo ele sabia disso. Os cachos da jovem moça caíam sobre o belo rosto, enquanto um pequeno sorriso brotava ali, feliz por estar nos braços de quem mais amava.

Kun levantou-se cautelosamente para não acordá-la, depositando um beijo em sua testa, antes de recolher as roupas e sair porta a fora. Ele parou no meio do caminho, sentindo uma dor dilacerante no peito, a mesma dor que sempre sentiu por séculos — algo dentro de si estava em pedaços, mas o amor nunca esteve a frente da família para ele, por isso aquela dor era impossível de suportar.

Lágrimas escorriam no rosto dele, desaparecendo junto com as gotas de chuva, que caíam do céu, que por sua vez estava nublado, revelando que até a natureza sabia o que nos aguardava.

Todos naquele dia estavam prontos para o que viria, os homens se armando, enquanto as mulheres preparavam as defesas e fui eu a encontrar Kun completamente encharcado caminhando até nossa casa, segurando o paletó e olhos fixos no chão. Rapidamente busquei um guarda-chuva, correndo em sua direção e quando ele me encarou, sorriu, mas não era seu sorriso doce habitual, era um sorriso triste, como se quisesse me dizer que estava tudo bem.

— Não precisa fazer isso, irmão Kun! — exclamei desejando que as coisas se resolvessem sem um confronto.

— Se eu não fizer nada, nossa gente pode morrer e eu nunca me perdoaria por isso. — Respondeu sério, então Kun ergueu a mão acariciando meu rosto, do mesmo jeito que fazia quando eu era criança e levava algum tombo. — Minha linda criança! Cresceu tanto, já é uma mulher e eu tenho muito orgulho de você. Saiba que te amarei pra toda eternidade, minha pequena Sarita.

Meus olhos se encheram de lágrimas e largando o guarda-chuva no chão, abracei fortemente a cintura de Kun, dessa vez encharcando suas roupas com minhas lágrimas. Ele por sua vez envolveu seus braços ao redor do meu corpo, acariciando minha cabeça e naquele momento me vi com dez anos, quando alguns adultos brancos me expulsaram do ônibus por não parecer com eles e naquela mesma rua, Kun me abraçou forte para que eu chorasse, dizendo que um dia tudo aquilo teria um fim.

Era como se compartilhássemos da mesma dor e eu não queria nunca sair dos braços dele, acabar com seu sofrimento, mas as coisas não eram do jeito que queria, então ele se afastou, beijando o topo da minha cabeça, para logo caminhar em direção à nossa casa. Ali estava um homem quebrado, sua maldição não tinha fim e era com ela que o sofrimento de nossa gente teria fim.

[...]

A Legião Negra avançou contra o exército do atual governo, suas armas eram insuficientes, porém a força do nosso povo era maior, precisávamos dessa força para seguir com nosso sonho de liberdade, estar naquele país e sermos reconhecidos como cidadãos de verdade. A sociedade brasileira branca não queria aceitar nossa existência, mas existíamos, aquela terra também era nossa e tínhamos os mesmos direitos constitucionais.

Nosso povo fora arrancado de sua terra natal, escravizados, impedidos de ter sua liberdade, abandonados e marginalizados, porém fazíamos parte daquela terra chamada Brasil, agraciados pelo mesmo sol dado por Deus e este nos enviou alguém, alguém que estava pronto para sacrificar a própria vida por todos nós.

Os olhos de Kun varriam a sede de comando do exército brasileiro e do alto de um prédio, a lua iluminava — era lua cheia, período mais poderoso para sua maldição. Aquele foi um dia de grande confronto, tivemos muitas baixas e tinha esperança que Kun pudesse diminuir o período de confronto, então naquele momento ele perdeu o controle do próprio corpo, já não era mais humano, revelando o monstro que habitava dentro de si.