1939.05.05

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Tae,

Lhe escrevo mais aliviado agora que posso te dizer que a situação melhorou. Minimamente, mas houve uma melhora. Não durmo mais na grama, tenho meu colchão de volta. Todos os meus pertences estão revirados. Tudo que eu tinha guardado, no meu espaço, na minha cama, a minha caixinha verde que você me deu. Tudo revirado.

Nunca irei perdoá-los pelo que fizeram comigo e com você. Com a sua foto. Se eu fechar os olhos, consigo voltar meses atrás. Consigo sentir toda a dor de novo. Mas hoje estou melhor, não precisa se preocupar comigo, amor. E acredito que não irão mais atrasar as minhas cartas de propósito, eu espero.

Te contarei o porquê. Não que eu me orgulhe de nada do que fiz; não me orgulho. Mas já peço perdão de antemão. Você sabe que sou uma boa pessoa. Sou uma pessoa boa pra você, não é? Eu te amo, lembre-se sempre disso, por favor.

No mês passado, fui enviado a Nanchang. As tropas japonesas decidiram agir e tomar a província, então mandaram muitos de nós. Não lembro exatamente quanto tempo durou até chegarmos lá e haver um combate direto, confesso a você. Perdi a noção de velocidade e tempo há muito.

Me guio pelas datas registradas em suas cartas — são elas que me salvam, afinal, de qualquer conflito, interno ou externo. Apesar disso, me perco em minhas anotações. Devo ter te informado sobre a chegada à região, mas não me recordo de quando havia sido.

Voltando... A minha divisão tomou posse pelo sul. Vigiávamos todo o perímetro e contra-atacávamos quando necessário. Matamos muitos, porém, de nós, vários se foram. Na maior parte do tempo, eu ficava no tanque. Apoiado em sua carcaça e atirando com a metralhadora em minhas mãos. Minhas mãos sujas de sangue, sangue alheio, sangue desconhecido, sangue forasteiro. E não sentia nada. Nada, Tae, nem um pequeno remorso ou tristeza por tirar a vida daquelas pessoas. Será que estou ficando sem emoção?

Não, besteira. Eu ainda tenho muitos sentimentos por você, e o que me mantém é pensar que te amo. E saber que você também me ama.

Bom, perdoe os garranchos, estou escrevendo depressa e... sentindo muito a sua falta. Quanto tempo já tem? Muito tempo.

Os chineses estão atacando por todos os lados, atravessando rios como podem. Lançam granadas de dispersão e nos defendemos dos ataques furtivos. Eu não sei como consigo ter tanta energia para tudo, mas admito que não estou nas melhores das condições. Estou sujo; imundo. Preciso me limpar de toda essa sujeira, poeira, sangue, detritos e cheiro de morte impregnados em meu uniforme. Não gosto disso, de nada disso. Só gosto de você. Amo.

Há uns 10... ou 11 dias... Não sei se já contei a Lua hoje. Ou será que são 9 dias? ̶P̶o̶r̶r̶a̶  perdão, amor, não deveria ter escrito isso. Está tudo bem, ok? 

Enfim, há uns dias os chineses começaram a vir com maior vantagem para cima de nós. Não preciso narrar tudo com tantos detalhes, é uma carta, não um livro. Mas quero que saiba do conflito que me vi diretamente dentro dele. Por favor, amor, não veja nenhum mal de mim. Sei que entende pelo que estou passando.

Estávamos em uma área mais central no sul da cidade quando fomos atacados pelo batalhão chinês. Mas a nossa tropa estava muito bem preparada para a luta. Conseguimos contra-atacar com sucesso. Em um dado momento em que o meu tanque havia se distanciado, com alguns outros soldados ao redor, chegamos próximos a uma fazenda. Haviam diversos militares chineses, e novamente redobramos a atenção.

Estava escurecendo. Ficaríamos sem luz. Mas, então, luz. Um deles havia jogado um molotov no meio do mato — você sabe o que é um coquetel molotov, Tae? Bom, vou tentar explicar. É uma arma explosiva. Uma bomba feita com gasolina ou álcool, tanto faz. E isso é letal, explosivo, como falei. Então, aí tivemos luz. Toda a mata começou a pegar fogo muito rápido. Mas todos continuaram atacando; chineses, japoneses e coreanos. Festa.

Eu falei que estava em Nanchang? Li a carta de novo. Falei, sim. Ignore, amor. Estou confuso...

Nesse dia (era dia 27, lembro de gritarem pouco depois), (27 de Abril, esqueci do mês) estávamos ganhando, mas com dificuldade. A munição da minha metralhadora estava acabando e precisava recarregar com o armamento que se encontrava do outro lado da carcaça do tanque. Saí de onde estava muito bem localizado, e fui de encontro com três chineses.

[⚠️N/A tw: descrição detalhada de violência aguda]

Eu não tinha munição na arma. Eles, sim. Mas eu não precisava de uma arma. Não quando tinha um ódio crescente e infinito dentro de mim. Bastava.

Então, segurando na base do fuzil, usei a coronha para golpear contra a cabeça de um — que caiu no chão. Virei a arma e usei o cano para cravar bem fundo no olho do outro — que, também, caiu morto no chão. E, então, peguei a pistola que este segurava e atirei na cabeça do terceiro — de novo, chão.

Eunwoo me olhou assustado. O olhei como se fosse o próximo.

Não fiz nada com ele, Tae, não se preocupe. Mas segui para fazer com o resto dos chineses de merda. Haviam mais meia dúzia escorados ao lado do nosso tanque, em uma tentativa falha de roubar a nossa munição. Estourei os miolos de uns com a pistola alheia em minhas mãos até que acabassem as balas. Encarei o chinês vivo — por mais alguns segundos — ao meu lado. Saquei a faca da minha bota e finquei em sua garganta, a rasgando.

Kai me olhou com ódio. O olhei como se fosse o próximo.

Quem me dera eu tivesse feito algo com ele... Me desculpa por estar falando assim, amor, é apenas para que você entenda o contexto de toda a situação. Se quiser pode parar de ler... Eu sou bom, não é? Eu sou bom pra você.

Enfim, os dois restantes começaram a correr. Estávamos em um perímetro mais ao longe, munições do nosso tanque sendo o que restava. Escurecia, folhas antes verdes agora incendiadas viravam fumaça, e só se ouviam rugidos e disparos. Alcancei um braço a minha frente e o virei, ficando cara a cara. Ergui minha mãos e pus cada dedão eu seus olhos, comprimindo-os. Experienciei uma sensação estranha nos dedos, uma textura diferente.

O larguei quando este havia parado de se debater. Eu não estava mais sob meu próprio controle, eu só queria acabar com aquilo logo. Perdoe-me, meu amor. O último que corria, o envolvi com meus braços e o joguei no chão. Não vou detalhar, mas espanquei seu rosto com as duas mãos até estar achatado e deformado. Sem vida.

Namjoon me olhou surpreso. Acenei com a cabeça. Com fé, ele não seria o próximo.

Me levantei, agarrando uma arma qualquer do chão, a minha já há muito perdida — já estou em posse de outra — e comecei a atirar em alguns, esfaquear outros que estavam mais perto, e esmurrar os últimos que sobravam. Ao todo, Tae, eu estava contando, foram 27 homens. 27 vidas que tirei com as minhas próprias mãos. De novo, não me orgulho disso. Mas, com a maior sinceridade do mundo, te digo que não sinto nada. Não me importo. Não me arrependo. Estou aqui para isso, afinal.

Desde então, como Namjoon mesmo disse, vários dos outros soldados ficaram com medo de mim. Não sei se isso é uma boa coisa. Não sei se quero os homens com medo de mim, afinal, não me orgulho do que fiz. Mas, se for para me deixarem em paz, se for para eu voltar a dormir no conforto do colchão, que assim seja.

"Quem tem medo de ser vencido, tem a certeza da derrota" (Napoleão Bonaparte, lembro de você citar para mim — sim, eu presto atenção quando você está falando, eu te amo). O medo em mim tem alguma utilidade, enfim.

Acho que já foi demais por hoje. Me conte coisas boas, amor, eu lhe imploro. Como estão as plantas? As flores? As tortas? Você? Vou fazer questão de que essa e minhas futuras cartas cheguem mais depressa a você.

Sinto sua falta a cada segundo do dia. Com amor,

Jeon, Jeongguk
RA30120109
T-50

Escrita em 1939.05.05
Enviada em 1939.05.05
Entregue em 1939.05.27


A Batalha de Nanchang, China, aconteceu do dia 17 de Março de 1939 a 9 de Maio de 1939. Tropas japonesas avançaram e as chinesas a todo custo tentavam atacar. No combate do Jungkook, no dia 26 os chineses chegaram pelo Sul, e no dia 27 os japoneses contra-atacaram. Não houve soldado algum que matou 27 homens com suas mãos. No dia 5, momento da carta, China consegue avançar, mas, no dia 9, recua (com o dobro de homens feridos), dando a vitória ao Japão.

Soldier Jeon | TAEKOOKOnde histórias criam vida. Descubra agora