Memórias se transformam em devaneios

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E quando suas fantasias
Tornarem-se seu legado
Prometa-me um lugar
Em sua casa de memórias
House Of Memories - Panic! At The Disco

...

S/n acordou naquela madrugada assustada, sentindo o coração acelerar e as pernas fraquejarem; era mais um pesadelo. Deitou-se novamente, olhando para a janela enquanto a chuva caía calmamente lá fora. Suspirou antes de levantar da cama, sabendo que seria impossível voltar a dormir dali em diante. Calçou as pantufas e dirigiu-se à pequena cozinha para preparar um café. O relógio marcava quatro horas da manhã, e ela estava bem adiantada, pensou. Colocou uma música suave para tocar na vitrola que ganhara de seu pai quando completara quinze anos, uma herança de sua mãe, e se pegou rindo sem emoção com a lembrança. Olhou para a pequena casa, agora vazia em todas as partes, e desejou que nada de ruim acontecesse, pelo menos com sua mudança. A chuva parava aos poucos, o sol nascia no horizonte, os pássaros cantavam e as crianças corriam pelo parque. S/n caminhava pelas ruas, mentalmente se despedindo da pequena cidade que a acolhera, mesmo que por pouco tempo. Comprou duas maçãs para a viagem e seguiu para o porto. Suspirou melancolicamente quando chegou, guardou a mala e a última caixa no pequeno navio, içou as velas e partiu em direção àquela desconhecida ilha do novo mundo. A viagem durou dois dias, em um ritmo constante e tranquilo, com poucos imprevistos.

A nova cidade estava movimentada naquele dia de primavera, e a jovem moça não teve problemas para levar as caixas com suas coisas para sua nova e temporária casa; afinal, não possuía muitos itens pessoais. A maior parte da bagagem era composta por papeladas, materiais de trabalho e livros, muitos livros. Quando esvaziou o pequeno navio, permitiu-se descansar um pouco. Tomou um banho e, poucos minutos após se deitar, adormeceu.

No dia seguinte, sentia-se mais disposta do que nos anteriores, o que era uma boa notícia dadas as circunstâncias. Tomou seu café e vestiu um vestido branco que encontrara perdido no guarda-roupa de sua falecida mãe, o qual também era o preferido de seu pai. Deixou os cabelos soltos como há muito tempo não fazia, tirou um pequeno envelope de uma das caixas que ainda não haviam sido organizadas e saiu de casa.

A cidade era menor que a sua antiga, com muitas árvores e flores, um ambiente calmo e pacífico.

Paz. Calma. Eram sentimentos que ela havia esquecido.
Caminhou por muito tempo até chegar à clareira, respirou fundo e seguiu para ver o que evitara por semanas.

Lá estava. O túmulo de seu pai. O túmulo de seu irmão. Um ao lado do outro.
S/n jurava que já havia visto muitas coisas pavorosas enquanto pirata, vivenciado muitas experiências e aventuras, mas nada no mundo poderia prepará-la para isso.

Deixou que as lágrimas guardadas durante todos esses dias saíssem, antes de cair de joelhos ao chão.

Não há remédios para as lembranças.

– Ace... ontem eu sonhei contigo, e acordei sentindo teu cheiro. Pensei em todas nossas histórias e em tudo que você me ensinou, o quanto você foi importante quando esteve aqui. E agora, quando o cheiro me visita pela manhã, imagino ser a forma que encontrou para me desejar bom dia. Você partiu e uma parte de mim morreu contigo, parte da minha felicidade, uma parte da minha infância, uma parte do meu futuro que sempre imaginei com você por perto.

– Eu daria qualquer coisa para ouvir você dizer mais uma vez que o universo foi feito só para ser visto pelos meus olhos.

– Pai... espero que me perdoe, pois eu fiquei perdida desde que você se foi. Rezava sem esperança. Nunca planejei que um dia eu estaria perdendo você. Não sou tão forte assim.

– Obrigada por me ensinar a coragem das estrelas antes de partir, como a luz continua eternamente, mesmo após a morte.

– Está tudo uma bagunça. Meu quarto. Minha vida. Desde que vocês partiram, não consigo mais colocar as coisas no lugar. Sinto falta de sentir algo, justamente por não conseguir mais sentir nada. Tudo dói. É melhor eu aprender a começar de novo.

– Com palavras ao ar, me explico para sua ausência.

É possível amar muito alguém - Ela pensou - Mas o tamanho do seu amor por uma pessoa nunca vai ser páreo para o tamanho da saudade que você vai sentir dela.

A mulher soluçou e olhou para o céu como se pedisse forças, sua respiração falhou, ansiando por tudo aquilo que não foi capaz de compreender. A carta em sua mão, fechada, amassada. Foi por esses motivos que adiou tanto a viagem, por esses motivos que evita tanto o papel em suas mãos. Revivendo o passado, desejando que tivesse durado. Desejando e sonhando. Memórias que seguirão por toda parte.

As estações vão mudar, a vida vai fazer você crescer. Tudo é temporário, tudo vai passar. Esse amor nunca morrerá.

E agora vou explicar o infinito em todos os lugares que passarei, para provar o quão raro e belo é o fato de existirmos.

Passou incontáveis horas sentada no chão, seu rosto inchado, não havia mais restado lágrimas para chorar. Juntou a pouca força que lhe restava e voltou para casa.

Já era tarde, chegou quando o sol nasceu e saiu quando o sol se pôs. Entrou no novo lar e enquanto esperava a banheira encher, serviu uma taça de vinho. S/n parou em frente ao grande espelho e observou atentamente o próprio corpo, deixou que o vestido branco caísse ao chão e os dedos delicados percorreram as pequenas cicatrizes que marcavam sua pele. Ela não se incomodava com elas, afinal, era pirata. Porém, a marca comprida que agora permanecia do início das costas até o lado direito do seu abdômen era uma lembrança vívida e dolorosa do que exatamente a filha de Barba Branca havia perdido com tudo isso, com uma guerra.

Os dedos percorreram toda a cicatriz enquanto flashes passavam por sua mente, o quanto fora tola, o passo em falso que levou a um final trágico.

Uma mentira que tomara proporções gigantescas.

Ela fechou os olhos com força e respirou fundo algumas vezes, tentando acalmar o coração que disparava com as últimas lembranças e tentando afastá-las de sua mente.

Ela não poderia ignorá-las para sempre, sabia muito bem disso, mas também sabia que não estava pronta para encará-las já. Teria que guardar forças para quando fosse obrigada a ouvir o relatório de Shanks e seus companheiros.

Akagami no Shanks.

Seu corpo inteiro tremeu ao pensar nele. Enquanto entrava na água quente, ela relembrou os últimos dias que havia passado com o ruivo e em como havia insistido para que ele não se prendesse a ela.

E pelo que lembrava da última vez que o havia visto, seu pedido fora atendido.

Mas sabia que seria inevitável encontrá-lo em tais circunstâncias, também sabia que ele estava há duas semanas ancorado na ilha, sabia que ele a vigiava em cada passo. Só não sabia o que ele queria dessa vez, teria que criar coragem mais uma vez para descobrir.

Heartstrings - Shanks, o ruivoOnde histórias criam vida. Descubra agora