Ainda estou com as mãos trêmulas, apesar de já terem se passado quase duas horas desde que esbarrei com Atlas. Não sei se estou tremendo de agitação ou se é porque, de tão ocupada, não consegui comer nada desde que cheguei. Mal tive cinco segundos de paz para assimilar o que aconteceu, quanto mais para comer o café da manhã que trouxe.
Aquilo realmente aconteceu? Será que fiz mesmo uma série de perguntas tão constrangedoras para Atlas que vou morrer de vergonha até o ano que vem?
Se bem que ele não pareceu se constranger. Pareceu muito feliz em me ver, e quando me abraçou, foi como se uma parte de mim que estava adormecida tivesse despertado novamente.
No entanto, este é o primeiro momento que tive para ir ao banheiro, e após me olhar no espelho agora, eu meio que quero chorar. Estou com as bochechas coradas, com manchas de cenoura na camisa e o esmalte descascando desde, tipo, janeiro.
Não que Atlas espere ou queira perfeição. É só que imaginei esbarrar com ele muitas vezes, mas em nenhum desses cenários era no meio de uma manhã caótica, meia hora após ser alvejada por uma bebê de onze meses com as mãos cheias de comida.
Ele estava tão bonito. Tão cheiroso.
Já eu devo estar com cheiro de leite materno.
Estou tão abalada pelo possível significado do nosso encontro inesperado que demorei o dobro do tempo para organizar tudo para o motorista da entrega desta manhã. Nem conferi nosso site para ver se havia novos pedidos. Dou uma última olhada no espelho, mas tudo que vejo é uma mãe solo exausta e esgotada.
Saio do banheiro e volto para o caixa. Pego um pedido na impressora e começo a preparar o cartão. Minha mente nunca precisou tanto de uma distração, então aprecio a manhã movimentada.O pedido é de um buquê de rosas para alguém chamada Greta, de alguém chamado Jonathan. A mensagem diz: "Desculpe por ontem à noite. Me perdoa?"
Solto um gemido. Buquês de desculpa são os que eu menos gosto de montar. Sempre fico obcecada tentando descobrir por que a pessoa está pedindo perdão. Será que ele se esqueceu de que os dois iam sair? Chegou tarde em casa? Eles brigaram?
Será que ele bateu nela?
Às vezes sinto vontade de escrever o telefone do abrigo local para vítimas de violência doméstica nos cartões, mas preciso lembrar que nem todo pedido de desculpa tem a ver com coisas terríveis, como os pedidos de desculpa que eu costumava receber. Talvez Jonathan seja um amigo de Greta e esteja tentando animá-la. Talvez ele seja seu marido e tenha exagerado numa pegadinha.
Qualquer que seja o motivo por trás das flores, espero que elas representem algo positivo. Insiro o cartão no envelope e o coloco no buquê de rosas. Ponho-o na prateleira de entrega e estou pegando o próximo pedido quando recebo uma mensagem.
Corro para o celular como se ele fosse se autodestruir e eu só tivesse três segundos para ler a mensagem. Estremeço quando olho a tela. Não é de Atlas, e sim de Ryle.
Ela pode comer batata frita?
Respondo com rapidez.
As macias.
Largo o celular ruidosamente no balcão. Não gosto que Emerson coma batata frita com frequência, mas Ryle só fica com ela um ou dois dias na semana, então tento alimentá-la melhor quando está comigo.
Foi bom passar alguns minutos sem pensar em Ryle, mas sua mensagem me fez lembrar de que ele existe. E enquanto ele existir, temo que qualquer relacionamento, ou até mesmo amizade com Atlas, não possa existir. Como Ryle vai reagir se eu começar a sair com Atlas? Como vai reagir se eles precisarem conviver?
Talvez eu esteja colocando a carroça na frente dos bois.
Encaro o celular e me pergunto o que devo dizer a Atlas. Falei que escreveria para ele depois de abrir a floricultura, mas havia clientes esperando antes mesmo de eu destrancar a porta. E agora
que Ryle mandou mensagem, lembrei que ele também está presente neste cenário, o que me faz hesitar em relação a falar com Atlas.
A porta da frente se abre, e Lucy finalmente chega. Ela está sempre muito bem-vestida, mesmo quando seu mau humor é evidente.
— Bom dia, Lucy.
Ela afasta o cabelo dos olhos e coloca a bolsa no balcão, suspirando.
— É mesmo um bom dia?
Lucy não é muito simpática de manhã. É por isso que eu ou Serena, minha outra funcionária, costumamos ficar no caixa pelo menos até as onze, enquanto Lucy monta arranjos nos fundos. Ela lida muito melhor com os clientes após uma xícara de café. Ou cinco.
— Acabei de descobrir que os marcadores de lugar não chegaram porque foram descontinuados, e agora já é tarde demais para pedir mais. O casamento é em menos de um mês.
Tem tanta coisa dando errado antes do casamento que me dá vontade de dizer a ela para desistir. Porém, não sou supersticiosa. Espero que ela também não seja.
— Está na moda fazer marcadores artesanais — sugiro.
Lucy revira os olhos.
— Detesto coisas artesanais — murmura ela. — Já nem quero
mais uma festa de casamento. Parece que o planejamento está demorando mais do que nosso namoro. — É verdade. — Talvez a gente cancele tudo e vá para Las Vegas. Você foi se casar lá, não foi? Você se arrepende?
Não sei o que responder primeiro.
— Como pode detestar coisas artesanais? Você trabalha numa floricultura. E sou divorciada, então é óbvio que me arrependo de ter me casado daquele jeito. — Entrego-lhe uma pequena pilha de pedidos que ainda não preparei. — Mas foi divertido — admito.
Lucy vai para os fundos e começa a organizar o restante dos pedidos, e volto a pensar em Atlas. E em Ryle. E no Armagedom, pois é isso o que acontece com os dois no meu cérebro ao mesmo tempo.
Não faço ideia de como isso poderia dar certo. Quando Atlas e eu nos encontramos, foi como se todo o resto sumisse, inclusive Ryle. No entanto, agora Ryle está começando a se infiltrar de novo nos meus pensamentos. Não da maneira como ele ocupava meus pensamentos antes; agora é mais como um bloqueio na estrada. Minha vida amorosa enfim tem seguido em linha reta, sem solavancos nem curvas, mais ou menos porque deixou de existir há mais de um ano e meio, mas agora me parece que, diante de mim, há apenas um terreno irregular e obstáculos e penhascos.
Será que vale a pena? É óbvio que Atlas vale a pena.
Mas será que vale a pena nós dois ficarmos juntos? Será que nós dois termos um relacionamento compensaria o estresse que isso causaria em todas as outras áreas da minha vida?
Faz um bom tempo que não me sinto tão dividida. Parte de mim quer ligar para Allysa e lhe contar que vi Atlas, mas não posso. Ela sabe como Ryle ainda se sente em relação a mim. Sabe o que ele pensaria se eu trouxesse Atlas para a nossa vida.
Não posso conversar com minha mãe porque ela é minha mãe. Por mais próximas que tenhamos nos tornado nos últimos tempos, eu jamais falaria abertamente sobre minha vida amorosa com ela.
Tem apenas uma mulher com quem eu me sentiria à vontade para conversar sobre Atlas.
— Lucy?
Ela reaparece dos fundos e tira um fone do ouvido.
— Você me chamou?
— Pode ficar no meu lugar por um tempo? Preciso sair para
resolver uma coisa. Volto em uma hora.
Ela vem para trás do balcão, e eu pego minha bolsa. Não tenho
muito tempo sozinha agora que Emerson nasceu, então de vez em quando roubo uma horinha aqui e ali durante o trabalho, quando tenho alguém para me substituir na floricultura.
Às vezes gosto de ficar sentada refletindo, e é impossível fazer isso na presença de uma criança, pois mesmo enquanto ela dorme estou na função mãe. E com o fluxo constante de clientes no trabalho, é difícil eu ter um momento de paz sem ser interrompida.
Descobri que quando estou sozinha no carro, com a música ligada e, de vez em quando, com uma fatia de torta da Cheesecake
Factory, é tudo o que preciso para colocar as ideias no lugar.
Depois de estacionar de frente para o Porto de Boston, reclino o banco e pego o bloco de notas e a caneta que trouxe. Não sei se isso vai me ajudar tanto quanto uma sobremesa às vezes me ajuda, mas preciso dar vazão aos meus pensamentos da mesma maneira como eu fazia no passado. Esse método já me ajudou antes, quando precisei que as coisas se encaixassem direito. Desta vez, no entanto, tudo o que eu espero é que as coisas não se
desmantelem por completo.
Querida Ellen,
Adivinha só quem está de volta?
Eu.
E Atlas.
Nós dois.
Esbarrei com ele quando estava com Emmy indo
encontrar Ryle hoje de manhã. Foi muito bom encontrá-lo. Porém, por mais que tenha sido reconfortante vê-lo e saber em que momento da nossa vida nós estamos, a despedida foi um pouco esquisita. Ele estava com pressa devido a uma pequena emergência no restaurante, e eu estava atrasada para abrir a floricultura. Nós nos despedimos depois que prometi escrever para ele quando chegasse à loja.
E quero escrever. Quero mesmo. Sobretudo porque vê-lo me levou a pensar no quanto me faz falta o que eu sinto quando estou com ele.
Só percebi como estava me sentindo sozinha quando passei aqueles poucos minutos com Atlas. Mas desde que eu e Ryle nos divorciamos... Ah, espera.
Caramba. Não te contei do divórcio.
Faz tempo demais que não te escrevo. Vou voltar um pouco.
Decidi que minha separação de Ryle deveria ser permanente após dar à luz Emmy. Pedi o divórcio logo depois que ela nasceu. Não quis ser cruel em relação ao momento, mas só tomei minha decisão quando a segurei no colo e
soube, do fundo do meu coração, que faria tudo o que fosse necessário para interromper o ciclo de violência doméstica.
Sim, pedir o divórcio foi sofrido. Sim, fiquei de coração partido. Mas, não, eu não me arrependo. Minha escolha me fez perceber que, às vezes, as decisões mais difíceis que a pessoa toma costumam levar aos melhores resultados.
Não posso mentir e dizer que não sinto falta dele, porque eu sinto. Sinto falta da família que poderíamos ter sido para Emerson. Porém, sei que tomei a decisão certa, apesar de, às vezes, me sentir sobrecarregada com o peso dela. É difícil porque ainda preciso interagir com Ryle. Ele ainda tem todas as qualidades pelas quais me apaixonei, e agora que não estamos mais juntos, é raro eu ver o lado negativo que levou ao fim do nosso casamento. Acho que é porque ele tem se comportado muito bem. Ele teve que colaborar e não resistir muito, pois sabia que eu poderia tê-lo denunciado por todos os episódios de violência doméstica pelos quais passei com ele. Ryle poderia ter perdido muito mais do que a esposa, então, na hora de negociarmos a guarda, as coisas foram mais tranquilas do que eu esperava.
Talvez tenha sido mais porque eu resisti ainda menos do que ele. Minha advogada foi muito direta quando falei que queria guarda unilateral. A não ser que eu estivesse disposta a contar a um juiz as partes mais feias dos nossos piores momentos, eu não tinha muito o que fazer para impedir Ryle de visitar Emerson. E ainda que eu mencionasse a violência doméstica, minha advogada falou que é raríssimo um pai disposto e bem-sucedido, sem antecedentes criminais, que ajuda financeiramente, ter algum direito seu suspenso.
Eu tinha duas opções: podia decidir denunciá-lo e entrar na Justiça, correndo um grande risco de ter que aceitar a guarda compartilhada. Ou eu podia tentar chegar a um acordo com Ryle que satisfizesse a nós dois, mantendo nossa relação coparental.
Acho que se pode dizer que chegamos a um meio-termo, muito embora nenhum acordo no mundo fosse me fazer aceitar com tranquilidade o fato de eu ter que entregar minha
filha a alguém que eu sei que tem pavio curto. No entanto, escolher o menor dos males é tudo o que posso fazer em termos da guarda de Emmy — e também esperar que ela jamais veja esse lado dele.
Quero que Emmy seja próxima do pai. Nunca quis mantê- la longe dele. Quero apenas garantir a segurança dela, e foi por isso que implorei para que Ryle aceitasse visitas diurnas nos primeiros anos. Nunca lhe disse que é porque não sei se confio plenamente nele com nossa filha. Talvez eu tenha colocado a culpa na amamentação e no fato de que ele pode ser chamado pelo hospital a qualquer momento, mas, no fundo, tenho certeza de que ele sabe por que nunca quis que ela dormisse na casa dele.
Nós não falamos da violência do passado. Falamos de Emmy, falamos de trabalho, colocamos um sorriso no rosto quando estamos com nossa filha. Às vezes parece forçado e falso, ao menos para mim, mas prefiro isso ao que poderia ter acontecido caso eu tivesse entrado na Justiça e perdido. Posso muito bem fingir um sorriso até os dezoito anos dela se isso significar que não preciso dividir sua guarda nem possivelmente expô-la com mais regularidade às piores partes do pai.
Até agora tem dado certo, se não considerarmos o gaslighting ocasional e seus flertes indesejados. Por mais que eu tenha deixado meus sentimentos evidentes durante o divórcio, ele ainda tem esperanças quanto a nós dois. Às vezes diz coisas que demonstram que não abriu mão por completo da ideia de reatarmos. Receio que boa parte da cooperação de Ryle se baseie na ideia de que ele poderá me reconquistar caso se comporte bem o bastante, por tempo o bastante. Ele enfiou na cabeça que vou acabar cedendo com o tempo.
Mas as coisas não vão acontecer como ele quer, Ellen. Um dia vou dar outro rumo para minha vida, e, sendo bem sincera, espero que esse rumo inclua Atlas. É cedo demais para saber se isso é uma possibilidade, mas tenho certeza
absoluta de que meu rumo nunca mais incluirá Ryle, por mais tempo que passe.
Faz quase um ano que pedi o divórcio, mas faz quase dezenove meses da briga que causou nossa separação. O que significa que estou solteira há mais de um ano e meio.
Um ano e meio entre dois possíveis relacionamentos parece bastante, e talvez fosse mesmo, se não estivéssemos falando de Atlas. Mas como posso fazer isso dar certo? E se eu mandar uma mensagem para Atlas e ele me convidar para um almoço? E se o almoço for maravilhoso, o que certamente seria, e virar um convite para jantar? E se o jantar nos levar de volta ao ponto em que paramos quando éramos mais jovens? E se nós dois ficarmos felizes e nos apaixonarmos de novo e ele se tornar uma parte da minha vida?
Sei que parece que estou me precipitando, mas é de Atlas que estamos falando. A não ser que ele tenha passado por um transplante de personalidade, creio que você e eu sabemos o quanto acho fácil me apaixonar por ele, Ellen. É por isso que estou hesitando tanto: tenho medo que dê tudo certo.
E se der certo, o que Ryle vai achar do meu novo relacionamento? Emerson tem quase um ano de idade, e nós passamos este ano inteiro sem muito drama, mas sei que é porque encontramos um bom ritmo que não foi afetado por nada. Então por que me parece que qualquer menção a Atlas vai causar um tsunami?
Não que Ryle mereça essa preocupação que estou sentindo com a situação, mas ele pode transformar minha vida amorosa em um verdadeiro inferno. Por que Ryle ainda ocupa uma parede inteira nas muitas camadas dos meus pensamentos? É isso que parece — é como se todas essas coisas maravilhosas acontecessem, mas, à medida que as vou assimilando, elas acabam alcançando uma parte de mim que ainda toma decisões com base em Ryle e suas possíveis reações.
Suas reações são o que mais temo. Queria ter esperanças de que ele não fosse sentir ciúme, mas sei que vai. Se eu começar a sair com Atlas, Ryle vai dificultar a situação para todos. Apesar de saber que o divórcio foi a decisão certa, ainda assim essa decisão tem suas consequências. E uma delas é que Ryle sempre pensará que foi Atlas quem causou o fim do nosso casamento.
Ryle é o pai da minha filha. Independentemente do homem que, de agora em diante, entrar na minha vida ou sair dela, Ryle é a única constante que sempre terei de apaziguar se quiser que Emerson tenha a experiência mais tranquila possível. E se Atlas Corrigan voltar para minha vida, Ryle jamais será apaziguado.
Queria que você pudesse me dizer o que fazer. Devo sacrificar algo que sei que me deixará feliz, a fim de evitar o tumulto inevitável que a presença de Atlas causaria?
Ou será que sempre terei um buraco com a forma de Atlas no meu coração, a não ser que eu lhe permita preenchê-lo?
Ele está esperando uma mensagem minha, mas acho que preciso de mais tempo para assimilar tudo. Nem sei o que lhe dizer. Não sei o que fazer.
Eu te conto se decidir alguma coisa.
Lily