— Não acredito que você me deixou dormir por tanto tempo. — Já se passaram dez minutos e ainda estou com a barriga revirando de tanta vergonha. — Você leu o diário inteiro?
— Parei depois da entrada sobre o nosso primeiro beijo.
Que bom. Não é tão vergonhoso assim. Porém, se ele tivesse lido sobre a primeira vez que a gente transou enquanto eu estava aqui, dormindo no banco ao seu lado, não sei se conseguiria aguentar.
— Isso é tão injusto — murmuro. — Você precisa fazer algo vergonhoso para equilibrar a situação, pois agora parece que arruinei completamente a nossa noite.
Atlas ri.
— Acha que eu fazer algo vergonhoso fará você se sentir melhor em relação a esta noite?
Assinto.
— Isso. É a lei do universo. Olho por olho, humilhação por humilhação.
Atlas tamborila no volante com o polegar enquanto massageia o maxilar com a outra mão. Então aponta a cabeça para o celular, que está no porta-copos.
— Abra o aplicativo Notas no meu celular. Leia a primeira.
Ah, nossa. Eu estava brincando, mas não perco tempo em pegar o seu celular.
— Qual é a senha?
— Nove, cinco, nove, cinco.
Digito os números e dou uma olhada na tela inicial enquanto ela
está aberta. Todos os aplicativos estão dentro de uma pasta, bem organizados. Ele não tem nenhuma mensagem não lida e tem apenas um e-mail não lido.
— Meu Deus! Você é muito organizado! Quem é que tem só um e-mail não lido?— Não gosto de bagunça — revela. — É um efeito colateral da Marinha. Quantos e-mails não lidos você tem?
— Milhares. — Abro o aplicativo Notas e clico na mais recente. Assim que vejo as duas palavras no topo, abaixo o celular, pressionando-o na minha coxa com a tela para baixo. — Atlas.
— Lily.
Sinto minha vergonha ser coberta por uma onda morna de expectativa que cai sobre mim.
— Você me escreveu uma carta do tipo Querida Lily?
Ele assente devagar.
— Você passou um bom tempo dormindo.
Quando me olha, seu sorriso vacila, como se ele estivesse
preocupado com o que quer que tenha escrito. Ele se vira para a frente de novo, e percebo quando engole em seco.
Encosto a cabeça no vidro do passageiro e começo a ler em silêncio.
Querida Lily,
Você vai ficar morta de vergonha quando acordar e
perceber que caiu no sono durante nosso primeiro encontro. Estou bem curioso para ver sua reação. Mas você parecia tão cansada quando te busquei que ver você descansando me deixa feliz.
A última semana foi surreal, não é? Lá estava eu, começando a achar que talvez nunca fosse fazer realmente parte da sua vida, e aí, puf, você aparece.
Eu poderia falar muitas e muitas coisas sobre o que aquele nosso encontro na rua significou para mim, mas prometi ao meu terapeuta que iria parar de te dizer cafonices. Não se preocupe, planejo descumprir minha promessa com frequência, mas você perguntou se poderíamos ir devagar, então isso só vai acontecer depois que a gente sair mais algumas vezes.
Em vez disso, estou pensando em seguir o seu exemplo e falar do nosso passado. Acho mais do que justo. Você me deixou ler alguns de seus pensamentos mais íntimos de um momento bem vulnerável da sua vida, então o mínimo que
posso fazer é detalhar um pouco a minha própria vida naquela época.
Minha versão é um pouco mais pesada, no entanto. Vou tentar omitir os piores detalhes para poupá-la, mas não sei se você é capaz de compreender por completo o que sua amizade significou para mim sem saber qual era minha situação antes de você aparecer na minha vida.
Eu te contei parte das coisas: como acabei daquele jeito, indo morar naquela casa abandonada. Mas fazia mais tempo que eu sentia que não tinha um lar. Na verdade, eu nunca senti que tive um, apesar de ter uma casa, uma mãe e, vez ou outra, um padrasto.
Não me lembro de como eram as coisas quando eu era pequeno. Fico imaginando que talvez ela tenha sido uma boa mãe numa época distante. Lembro-me de uma viagem que fizemos a Cape Cod, quando provei camarão ao coco pela primeira vez, mas, caso ela tenha sido uma mãe decente sem ser naquele único dia, naquela única refeição, isso nunca ficou na minha memória.
Minha memória é composta mais de momentos que passei sozinho ou em que tentava apenas não a incomodar. Ela se zangava com rapidez e reagia na mesma velocidade. Nos primeiros dez anos da minha vida, mais ou menos, minha mãe era mais forte e mais ágil do que eu, então passei a maior parte de uma década me escondendo de sua mão, de seus cigarros, de sua língua afiada.
Sei que ela estava estressada. Era uma mãe solo que trabalhava à noite para tentar me sustentar, mas, por mais que eu tenha dado muitas desculpas para ela naquela época, já vi muitas mães solo vivendo bem, sem recorrerem às coisas que ela fazia.
Você viu minhas cicatrizes. Não vou entrar em detalhes, mas, por mais que aquilo tenha sido ruim, ficou ainda pior durante o terceiro casamento dela. Eu tinha doze anos quando eles se conheceram.
Mal sabia eu que meus doze anos seriam meu único ano de tranquilidade. Ela vivia fora porque estava com ele e,
quando voltava para casa, ficava até de bom humor porque estava se apaixonando. É curioso como o amor por um namorado pode melhorar ou piorar a maneira como algumas pessoas tratam os próprios filhos.
Mas aí os meus doze anos viraram treze, Tim foi morar com a gente e os próximos quatro anos da minha vida foram um verdadeiro inferno. Quando não era minha mãe que eu estava irritando, era Tim. Quando eu estava em casa, alguém estava gritando comigo. Quando estava na escola, a casa estava sendo destruída pela briga dos dois, que esperavam que eu arrumasse tudo quando voltasse.
A vida com eles era um pesadelo, e quando finalmente fiquei forte o bastante para me defender, foi então que Tim decidiu que não queria mais morar comigo.
Minha mãe o escolheu. Fui obrigado a sair de casa. Eles nem precisaram pedir duas vezes — eu estava mais do que pronto para me mandar de lá. Mas isso porque eu tinha para onde ir.
Até eu não ter mais. Depois de três meses, o amigo com quem eu estava morando se mudou para o Colorado com a família.
Naquele momento, eu não tinha ninguém, não tinha outro lugar para ir, e mesmo que tivesse, eu não teria dinheiro para chegar até lá. Então, fui obrigado a procurar minha mãe e pedir para voltar.
Ainda me lembro do dia em que reapareci naquela casa. Mal fazia três meses que eu tinha saído e o lugar já estava caindo aos pedaços. A grama não era aparada desde a última vez que eu a cortara antes de ser expulso. Não havia mais nenhuma tela nas janelas e tinha um buraco onde ficava a maçaneta. Pela aparência da casa, era como se eu tivesse passado anos fora.
O carro da minha mãe estava lá na frente, mas o de Tim, não. O carro dela parecia estar ali havia um bom tempo. O capô estava aberto, e havia ferramentas espalhadas próximo e pelo menos trinta latas de cerveja formando uma pirâmide que alguém tinha feito na frente da porta da garagem.
Tinha até jornais empilhados no caminho de concreto rachado. Lembro que, antes de bater à porta, eu os peguei e os deixei numa das velhas cadeiras de ferro para que secassem.
Foi estranho bater à porta de uma casa onde eu tinha morado por anos, mas eu não podia abrir a porta sem permissão, pois Tim poderia estar em casa. Apesar de eu ainda ter a chave, Tim havia deixado bem evidente que me denunciaria por invasão se eu tentasse usá-la em algum momento.
E eu não poderia usá-la nem se quisesse. Não tinha maçaneta.
Dava para ouvir alguém andando pela sala de estar. A cortina da janelinha na parte superior da porta da frente se moveu, e vi minha mãe dar uma olhada para fora da casa. Por alguns segundos ela apenas olhou, imóvel.
Ela acabou abrindo a porta alguns centímetros. Foi o bastante para que eu pudesse ver que ainda estava de pijama às duas da tarde, vestindo uma camiseta folgada do Weezer que um dos seus ex-maridos tinha deixado. Eu odiava aquela camiseta porque gostava da banda. Sempre que a usava, ela estragava a banda um pouco mais para mim.
Ela perguntou o que eu estava fazendo ali, e eu não queria contar a história toda imediatamente. Então, perguntei se Tim estava em casa.
Minha mãe abriu a porta um pouco mais e cruzou os braços com tanta força que ficou parecendo que um dos membros da banda tinha sido decapitado. Ela disse que Tim estava trabalhando e perguntou o que eu queria.
Perguntei se eu podia entrar. Ela refletiu e olhou por cima do meu ombro, observando a rua. Não sei o que estava querendo conferir. Talvez tivesse medo de que algum vizinho a visse permitindo a seu próprio filho visitá-la.
Ela deixou a porta aberta para mim enquanto ia se trocar no quarto. Havia uma escuridão sinistra na casa, disso eu lembro. Todas as cortinas estavam fechadas, criando uma
sensação de confusão em relação ao horário. O fato de o relógio do fogão estar piscando, oito horas adiantado, não ajudava. Se eu ainda morasse lá, essa seria mais uma coisa que eu teria consertado.
Se ainda morasse lá, as cortinas estariam abertas. As bancadas da cozinha não estariam cobertas de pratos sujos. Não haveria uma maçaneta faltando, uma grama malcuidada, dias de jornais empapados um em cima do outro. Foi naquele momento que percebi que, durante todos aqueles anos em que eu crescia, fui eu que cuidei da casa.
Aquilo me deu esperança — esperança de que talvez eles tivessem percebido que minha presença era boa, não inconveniente, e assim eles me deixariam voltar a morar lá até terminar o ensino médio.
Vi uma maçaneta nova na mesa da cozinha, então a peguei e dei uma olhada. A nota fiscal estava embaixo. Olhei a data na nota, e fazia mais de duas semanas que ela tinha sido comprada.
A maçaneta encaixava bem na porta da frente. Não sei por que Tim não a instalara se já estava com ela havia duas semanas, então achei as ferramentas numa gaveta da cozinha e abri a embalagem. Minha mãe demorou vários minutos para sair do quarto, mas, quando saiu, eu já tinha colocado a maçaneta nova na porta.
Ela perguntou o que eu estava fazendo, então girei a maçaneta e abri a porta um pouquinho para lhe mostrar que estava funcionando.
Nunca vou me esquecer da sua reação. Ela bufou e disse:
— Por que ainda faz essas merdas, hein? É como se você quisesse que ele te odiasse. — Ela agarrou a chave de fenda da minha mão. — Talvez seja melhor dar o fora antes que ele perceba que você esteve aqui.
Um dos motivos de sempre bater de frente com as pessoas daquela casa era por sempre achar as reações deles inadequadas. Quando eu ajudava a cuidar da casa sem que me pedissem, Tim dizia que era porque eu queria
provocá-lo. Quando não ajudava, ele dizia que era porque eu era preguiçoso e ingrato.
— Não foi para chateá-lo — respondi. — Consertei sua maçaneta. Estava apenas tentando ajudar.
— Ele ia consertar assim que tivesse tempo.
Parte do problema de Tim era que ele sempre tinha tempo. Nunca conseguia manter um emprego por mais de seis meses e passava mais tempo apostando do que com minha mãe.
— Ele arranjou emprego? — Lembro que perguntei.
— Está procurando.
— E é isso que ele está fazendo agora?
Pela expressão dela, vi que Tim não estava atrás de
emprego nenhum. Onde quer que ele estivesse, tenho certeza de que estava deixando minha mãe ainda mais endividada. É provável que a dívida dela tenha sido a gota final que me fez ser expulso de casa em primeiro lugar. Quando encontrei uma pilha de faturas de cartão de crédito no nome dela, vencidas e com os limites todos estourados, eu o havia confrontado.
Tim não gostava de ser confrontado. Preferia a minha versão pré-adolescente ao quase adulto que eu me tornara. Gostava da minha versão que ele podia empurrar sem ser empurrado de volta. Da minha versão que ele podia manipular sem que eu reclamasse.
Aquela minha versão desapareceu entre os meus quinze e dezesseis. Quando Tim percebeu que não podia mais me ameaçar fisicamente, ele tentou arruinar minha vida de outras maneiras, e uma delas foi me deixando sem ter onde morar.
Acabei engolindo meu orgulho e indo direto ao ponto. Contei à minha mãe que não tinha para onde ir.
A expressão dela não foi apenas de falta de empatia, foi de completa irritação.
— Espero que não esteja me pedindo para voltar a morar aqui depois de tudo o que você fez.
— Tudo o que eu fiz? Quer dizer, porque eu fui tirar satisfação com Tim depois que o vício dele em apostas te
deixou endividada?
Foi então que ela me chamou de palhaço. Ou pa-lhi-aço,
na verdade. Ela sempre pronunciava a palavra desse jeito. Tentei implorar, mas logo ela voltou a ser quem eu estava acostumado a ver. Jogou a chave de fenda em mim. Foi tão repentino e inesperado, pois nem estávamos discutindo no momento, que não consegui me abaixar a tempo. Fui atingido
bem acima do olho esquerdo, no meio da sobrancelha. Passei os dedos pela testa e eles saíram manchados de
sangue.
Tudo que eu tinha feito foi pedir para voltar. Eu não a
desrespeitei. Não a xinguei. Apenas apareci, consertei sua porta e tentei conversar com ela, e acabei com um corte ensanguentado.
Eu me lembro de olhar meus dedos, pensando: "Não foi Tim quem fez isso. Foi minha mãe."
Por muito tempo, eu culpei Tim por tudo o que dava errado naquela casa, mas tudo o que dava errado naquela casa começava por ela. Tim apenas pegou um ambiente que já era terrível e o deixou ainda pior.
Lembro de pensar que preferia morrer a voltar a morar com minha mãe. Até aquele momento, parte de mim ainda tinha alguns bons sentimentos em relação a ela. Não sei se era um resquício de respeito, mas, por algum motivo, eu conseguia me sentir grato pelo fato de ela ter me mantido vivo quando eu era pequeno. Mas isso não é o mínimo que um pai ou mãe deve fazer quando decide colocar um filho no mundo?
Percebi naquele momento que eu estava lhe dando crédito demais. Sempre associei nosso distanciamento ao fato de ela ser mãe solo, mas havia muitas mães solo e atarefadas que conseguiam ser próximas dos filhos. Mães que defendiam os filhos quando eles eram maltratados. Mães que não viravam a cara quando o filho de treze anos reaparecia de um castigo com o olho roxo e o lábio cortado. Mães que não permitiam que seus maridos deixassem seu filho adolescente sem ter onde morar.
Apesar de perceber o quanto ela era insensível, tentei, uma última vez, despertar seu lado humano:
— Posso pelo menos pegar algumas das minhas coisas antes de ir embora?
— Não tem nada seu aqui — disse ela. — A gente estava precisando de espaço.
Não consegui encará-la depois disso. Era como se o que ela mais quisesse fosse me apagar da sua vida, então, naquele momento, prometi que a ajudaria a fazer isso.
O sangue estava escorrendo no meu rosto enquanto eu me afastava da casa.
Não tenho palavras para descrever o restante daquele dia. Eu me senti tão incrivelmente indesejado, sozinho, sem ser amado por ninguém. Eu não tinha ninguém. Não tinha nada. Nem dinheiro, nem pertences, nem família.
Apenas uma ferida.
Somos mais sensíveis na juventude, e depois de ouvir por anos a fio que você não vale nada, vindo da boca de todas as pessoas que deveriam se importar com você, a gente começa a acreditar nisso. E, aos poucos, você começa a se transformar em nada.
Mas aí eu te conheci, Lily. E apesar de eu não ser nada, quando me olhou, você conseguiu ver alguma coisa. Alguma coisa que eu não conseguia. Você foi a primeira pessoa na minha vida que se interessou por quem eu era como ser humano. Ninguém nunca tinha me perguntado coisas a meu respeito como você fez. Depois daqueles meses que passamos nos conhecendo, parei de sentir que eu não era nada. Você fez com que eu me sentisse interessante e único. Sua amizade me deu valor.
Sou muito grato por isso. Mesmo que este encontro não dê em nada e que a gente nunca mais se fale, sempre vou ser grato a você, pois, de alguma maneira, você viu algo em mim que minha própria mãe não viu.
Você é minha pessoa favorita, Lily. E agora você sabe o motivo.
Atlas
Estou com um nó tão apertado na garganta que nem consigo me expressar com palavras sobre o que acabo de ler. Deixo o celular na perna e enxugo os olhos. Detesto o fato de Atlas estar dirigindo, pois, se o carro estivesse estacionado, eu jogaria meus braços ao redor dele e lhe daria o abraço mais forte que ele já recebeu. Provavelmente o beijaria também, e o puxaria para o banco de trás, porque ninguém nunca me disse coisas tão terrivelmente tristes de uma maneira tão doce.
Atlas estende o braço e pega o celular. Coloca-o de volta no porta-copos, mas depois segura minha mão. Entrelaça os dedos nos meus e os aperta enquanto olha para a frente. Seu gesto causa um rebuliço no meu peito. Coloco a minha outra mão em cima da sua, e segurar sua mão assim me faz lembrar todos os trajetos de ônibus em que nós dois ficávamos apenas sentados em silêncio, tristes e com frio, segurando um ao outro.
Olho pela janela, e ele encara a estrada, e não dizemos mais nada enquanto voltamos para a cidade.
Paramos e compramos hambúrgueres para viagem a apenas três quilômetros da minha floricultura. Atlas sabe que não quero Emerson acordada até muito mais tarde do que está acostumada, então comemos no estacionamento da Lily Bloom's. Desde que voltamos para a cidade e pedimos os hambúrgueres, nossa conversa tem sido bem mais leve. Não deixo de notar que não estou mais envergonhada. Ele se mostrar vulnerável comigo foi o recomeço de que eu precisava para que nosso encontro pudesse voltar ao normal.
Estamos conversando sobre todos os lugares que já visitamos. Atlas é bem mais viajado do que eu, considerando o tempo que passou na Marinha. Ele já esteve em cinco países, e minha única viagem internacional foi para o Canadá.
— Nunca esteve no México? — pergunta Atlas. Limpo a boca com um guardanapo.
— Nunca.
— Você e Ryle não tiveram lua de mel?
Argh. Odeio o som do nome dele no meio deste encontro.
— Não, a gente se casou em Las Vegas sem planejar nada. Não tivemos tempo para lua de mel.
Atlas toma um gole de sua bebida. Quando me fita, é com um olhar penetrante, como se quisesse desvendar aquilo que não estou dizendo.
— Você queria ter feito uma festa?
Dou de ombros.
— Sei lá. Sempre soube que Ryle nunca teve vontade de se
casar, então quando ele sugeriu que fôssemos para Las Vegas pra gente se casar, pensei que era uma oportunidade que poderia nunca mais acontecer. Acho que senti que um casamento daquela maneira improvisada era melhor do que não me casar com ele.
— E se você se casasse de novo? Faria alguma coisa diferente? Rio da pergunta e faço que sim na mesma hora.
— Mas é óbvio! Eu quero tudo: as flores, as madrinhas, o pacote
completo. — Ponho uma batata na boca. — E votos românticos, e uma lua de mel ainda mais romântica.
— Para onde você iria?
— Paris. Roma. Londres. Não tenho vontade de ficar sentada sob o sol em praia nenhuma. Quero ver todos os lugares românticos da Europa e fazer amor em todas as cidades e tirar fotos dando beijo na frente da Torre Eiffel. Quero comer croissants e ficar de mãos dadas em trens. — Solto a caixinha vazia das batatas fritas dentro do saco. — E você?
Atlas estende o braço para alcançar minha outra mão e a segura. Ele não responde. Apenas sorri para mim e aperta minha mão, como se ainda fosse cedo demais para revelar seu desejo.
Segurar a mão dele me parece tão natural. Talvez seja porque a gente fazia muito isso na adolescência, mas ficar sentada aqui no carro com ele e não segurar sua mão parece mais esquisito do que segurá-la.
Mesmo com a interrupção que criei no nosso encontro quando peguei no sono, a noite toda foi tranquila e fácil. Estar perto dele é algo instintivo. Passo o dedo em cima do seu pulso.
— Preciso ir pra casa.
— Eu sei — diz ele, roçando o polegar no meu.
O celular de Atlas apita, então ele o pega com a outra mão e lê a mensagem que chegou. Ele suspira baixinho, e a maneira como solta o celular no porta-copos me passa a impressão de que ele está irritado com quem quer que tenha lhe mandado a mensagem.
— Está tudo bem?
Atlas abre um sorriso forçado, pouco convincente. Posso ver que há algo errado, e ele sabe disso. Ele desvia a vista e olha para nossas mãos. Depois vira a minha até a palma ficar para cima e começa a traçar linhas nela. Seu dedo mais parece um para-raios, fazendo a eletricidade se espalhar da minha mão para todo o meu corpo.
— Minha mãe me ligou na semana passada.
Sou pega de surpresa por isso.
— O que ela queria?
— Não sei. Desliguei antes que pudesse dizer, mas tenho quase
certeza de que ela está precisando de dinheiro.
Junto nossas mãos de novo. Não sei o que falar. Deve ser difícil
passar quinze anos sem ter notícias da mãe e depois ela finalmente entrar em contato quando precisa de alguma coisa. Isso faz eu me sentir muito grata pela enorme presença da minha mãe na minha vida.
— Não queria soltar essa bomba quando você está com pressa. Vamos deixar alguns papos para o nosso segundo encontro. — Ele sorri para mim, mudando a vibe completamente. É incrível como seu sorriso define o que acontece dentro de mim. — Vamos, eu te acompanho até seu carro.
Dou uma risada, pois meu carro está literalmente a um metro e meio de distância. Mas Atlas passa pela frente do seu carro, abre a porta do carona e me ajuda a sair. Em seguida, cada um dá um passo e chegamos ao meu carro.
— Adorei a caminhada — brinco.
Ele abre um sorriso rápido, e não sei se era para me seduzir, mas de repente sinto um calor no corpo inteiro, apesar do tempo frio. Atlas dá uma olhada por cima do meu ombro, indicando o meu carro.
— Tem mais algum diário aí dentro? — Aquele era o único.
— Droga — lamenta ele.
Atlas encosta o ombro no meu carro, então faço o mesmo, ficando de frente para ele.
Não sei se estamos prestes a nos beijar. Eu não acharia ruim, mas também acabei de comer cebola após passar mais de uma hora dormindo, então duvido que minha boca esteja muito atrativa no momento.
— Você me dá outra chance? — pergunto.
— Em relação a quê?
— Ao nosso encontro. Gostaria de estar acordada no próximo. Atlas ri, mas depois sua risada se dissipa. Ele me encara por um
instante.
— Tinha esquecido o quanto é divertido estar com você.
Suas palavras me confundem, pois eu não diria que nosso
período juntos naquela época tenha sido divertido. Foi triste, na melhor das hipóteses.
— Você acha que aquela época foi divertida?
Ele ergue um pouco os ombros.
— Bem, foi o pior momento da minha vida, com certeza. Mas as
lembranças que tenho com você daquela época são algumas das minhas favoritas.
Seu elogio me faz corar. Ainda bem que está escuro.
Mas ele tem razão. Foi uma fase ruim para nós dois, no entanto, ainda assim, estar com ele foi o ponto alto da minha adolescência. Acho que divertido é a maneira perfeita de descrever o que conseguimos criar no meio daquilo. E se conseguimos nos divertir num momento tão ruim das nossas vidas, como seríamos nos melhores momentos delas?
É exatamente o oposto do que pensei sobre Ryle na semana passada. Passei por momentos péssimos com Atlas, e ele nunca foi nada além de incrível e respeitoso comigo. Já o homem que escolhi para ser meu marido me desrespeitou de maneiras que ninguém jamais deveria conhecer — e isso durante um momento ótimo das nossas vidas.
Sou grata a Atlas porque sei que agora ele é o padrão ao qual eu comparo as pessoas. Ele é o padrão ao qual eu deveria ter comparado Ryle desde o princípio.
Uma conveniente rajada de ar passa entre nós dois. Seria a desculpa perfeita para Atlas me puxar para perto, mas ele não o faz. Em vez disso, o silêncio entre nós vai aumentando até sobrar apenas uma escolha: ou nos beijamos, ou nos despedimos.
Atlas afasta uma mecha de cabelo da minha testa.
— Não vou te beijar ainda.
Torço para que minha decepção não fique evidente, mas sei que
fica. Eu praticamente murcho na frente dele.
— É meu castigo por ter cochilado?
— Claro que não. É só porque estou me sentindo inferior depois
de ler sobre nosso primeiro beijo.
Dou uma risada.
— Inferior a quem? A você mesmo?
Ele assente.
— Visto pelos seus olhos, o Atlas adolescente era puro charme. — O Atlas adulto também é.
Ele geme um pouquinho, como se já quisesse mudar de ideia a
respeito do beijo. O gemido deixa as coisas um pouco mais sérias. Ele se afasta do carro até parar bem na minha frente. Recosto-me na porta do carro e o encaro, torcendo para que ele esteja prestes a me dar um beijo de deixar as pernas bambas.
— Além disso, você me pediu para ir devagar, então...
Que droga. Eu pedi mesmo isso. E disse bem devagar, se não me engano. Eu me odeio.
Atlas se inclina para a frente e eu fecho os olhos. Sinto seu hálito se espalhar pelo meu rosto pouco antes de ele me dar um beijo rápido na bochecha.
— Boa noite, Lily.
— Tudo bem.
Tudo bem? Por que eu disse "tudo bem"? Estou tão nervosa. Atlas ri baixinho. Quando abro os olhos, ele está se afastando de
mim, voltando para o lado do motorista do seu carro. Antes de ir embora, ele apoia o braço no teto do carro e diz:
— Espero que consiga dormir esta noite.
Assinto, mas não sei se será possível. Parece que toda a cafeína que consumi hoje está fazendo efeito de uma vez. E não vou conseguir dormir depois deste encontro. Vou ficar pensando na
carta que ele escreveu para mim. E quando não estiver pensando nela, estarei reencenando mentalmente nosso primeiro beijo a noite inteira, pensando em como será a parte dois.
— Continue a nadar, nadar, nadar...
Os sons familiares de Procurando Nemo estão vindo da sala de
estar de Allysa e Marshall quando abro a porta do apartamento deles.
Quando passo pela cozinha, Marshall está na frente da geladeira com ambas as portas escancaradas. Ele me cumprimenta com a cabeça e eu aceno, mas não quero puxar papo com ele, pois mal posso esperar para abraçar Emerson.
Quando entro na sala, fico chocada ao ver Ryle no sofá. Ele não mencionou que estaria de folga hoje à noite. Emerson está dormindo no peito dele, e Allysa não está em canto nenhum.
— Oi.
Ryle não se vira para me cumprimentar, mas não é necessário: posso ver que tem alguma coisa o incomodando. Vejo a tensão em seu maxilar como um sinal evidente de que está zangado. Quero pegar Emerson, mas ela parece relaxada, então a deixo acomodada no peito de Ryle.
— Faz quanto tempo que ela dormiu?
Ryle ainda está encarando a televisão, com uma das mãos protegendo as costas de Emmy e a outra atrás da cabeça.
— Desde que o filme começou.
Reconheço a cena, então faz cerca de uma hora.
Allysa finalmente aparece na sala, aliviando o clima.
— Oi, Lily. Me desculpe por ela ter dormido. Fizemos de tudo
para deixá-la acordada.
Nós duas nos entreolhamos por dois segundos. Allysa se
desculpa silenciosamente pelo fato de Ryle estar aqui. Respondo em silêncio que não tem problema. Eles são irmãos — não posso esperar que ele não venha para cá quando sabe que ela está cuidando da nossa filha.
Ryle gesticula para Allysa.
— Você pode colocar Emerson no moisés? Preciso conversar com Lily.
A rispidez em sua voz assusta nós duas. Eu e Allysa voltamos a nos entreolhar enquanto ela tira Emerson do colo de Ryle. A vontade de pegá-la só aumenta enquanto Allysa a deixa no moisés.
Ryle se levanta e, pela primeira vez desde que cheguei, faz contato visual comigo. Ele me olha da cabeça aos pés, reparando na roupa e nos saltos que estou usando. Observo enquanto engole em seco lentamente. Ele vira a cabeça para cima, indicando que quer conversar comigo no terraço da cobertura do prédio.
Seja lá qual for a conversa, ele quer privacidade total.
Ele sai do apartamento em direção ao terraço, e olho para Allysa em busca de orientação. Quando Ryle se afasta, ela avisa:
— Eu disse a ele que você tinha um evento hoje.
— Obrigada. — Allysa jurou que não contaria para Ryle sobre meu encontro, mas não sei por que ele está tão zangado se não sabe onde eu estava. — Por que ele está chateado?
Allysa dá de ombros.
— Não faço ideia. Ele parecia bem quando chegou aqui uma hora atrás.
Eu sei melhor do que ninguém que Ryle é capaz de parecer bem num instante e, no outro, parecer o oposto. No entanto, costumo saber o que o irritou.
Será que ele descobriu que saí com alguém? Será que descobriu que foi com Atlas?
Quando chego ao terraço, vejo Ryle encostado na beirada, olhando para baixo. Já sinto um frio na barriga. Meus saltos estalam no piso enquanto vou até ele.
Ryle me olha rapidamente.
— Você está... bonita.
Ele diz como se fosse um insulto, não um elogio. Ou talvez seja
apenas minha culpa falando. — Obrigada.
Eu me encosto na beirada, esperando que ele diga o que o está incomodando.
— Está voltando de um encontro?
— Eu estava num evento. — Confirmo a mentira de Allysa. Não adianta ser honesta com ele, pois ainda é cedo demais para saber se essa história com Atlas vai dar em alguma coisa, e a verdade só
deixaria Ryle ainda mais chateado. Pressiono as costas na beirada e cruzo os braços na frente do peito. — O que foi, Ryle?
Ele faz uma pausa antes de finalmente falar:
— Eu nunca tinha visto aquele desenho antes de hoje.
Ele está apenas tentando puxar papo ou está irritado com
alguma coisa? Não estou entendendo nada dessa conversa.
Mas aí a ficha cai.
Eu juro, às vezes sou a maior idiota. É óbvio que ele está
chateado. Certa vez, ele leu tudo que tinha nos meus diários. Ele sabe o quanto aquele filme é importante para mim depois de ler o que escrevi sobre a história. Mas, agora que ele finalmente o viu, imagino que tenha encaixado as peças. E pelo jeito, ele encaixou ainda mais peças também.
Agora ele se vira e me olha como se estivesse se sentindo traído.
— Você colocou o nome Dory na nossa filha? — Ele dá um passo à frente. — O nome do meio da nossa filha é por causa do seu vínculo com aquele homem?
Sinto meu coração disparar na mesma hora. Aquele homem. Interrompo o contato visual enquanto penso em como explicar isso direito. Quando escolhi que Dory seria o nome do meio de Emerson, não foi pensando em Atlas. Aquele filme era importante para mim muito antes de Atlas aparecer na minha vida, mas eu devia ter pensado melhor antes de colocar esse nome nela.
Limpo a garganta, abrindo caminho para a verdade.
— Escolhi esse nome porque a personagem me inspirou quando eu era mais jovem. Não teve nada a ver com mais ninguém.
Ryle solta uma risada exasperada, decepcionada.
— Você é mesmo foda, Lily.
Quero argumentar para provar a verdade do que eu disse, mas
estou ficando nervosa. Seu comportamento está trazendo à tona todos os medos que já tive em relação a ele. Tento acalmar a situação escapando dela.
— Vou para casa.
Começo a descer a escada, mas ele se adianta e passa na minha frente, se colocando entre mim e a porta da escada. Dou um
passo nervoso para trás. Coloco a mão no bolso à procura do celular caso precise usá-lo.
— Vamos mudar o nome do meio dela — avisa.
Mantenho a voz firme e calma enquanto respondo:
— O nome dela é Emerson em homenagem ao seu irmão. Essa
é a sua ligação com o nome dela. O nome do meio é a minha ligação. Acho mais do que justo. Você está procurando pelo em casca de ovo.
Vou para o lado querendo passar, mas ele me acompanha.
Dou uma olhada por cima do ombro para medir a distância entre mim e a beirada. Não que eu ache que ele vá me jogar, mas eu também não achava que ele era capaz de me empurrar escada abaixo.
— Ele sabe? — pergunta Ryle.
Ele não precisa dizer o nome de Atlas para que eu saiba a quem está se referindo. Sou invadida pela culpa e fico preocupada por achar que Ryle pode perceber isso.
Atlas sabe que o nome do meio de Emerson é Dory porque fiz questão de lhe dizer. Mas estou sendo sincera: o nome não é por causa dele. O nome é por minha causa. Dory era minha personagem favorita antes mesmo de eu saber da existência de Atlas Corrigan. Eu admirava a força dela, e só escolhi esse nome para a minha filha porque espero que ela tenha, acima de tudo, força.
Porém, a reação de Ryle está me dando vontade de me desculpar, porque Procurando Nemo é mesmo importante para Atlas e para mim, algo que se tornou óbvio quando saí correndo atrás de Atlas na rua para lhe contar o nome dela.
Talvez Ryle tenha razão de estar com raiva.
Essa é a questão, contudo. Ryle pode sentir raiva, mas isso não significa que eu mereço tudo que vem junto. Estou caindo de novo na mesma armadilha de esquecer que nenhuma ação minha justifica suas ações extremas do passado.
Posso não ser perfeita, mas não mereço temer pela minha própria vida sempre que cometo um erro. E talvez esse erro de agora mereça ser mais discutido, mas não me sinto à vontade para
conversar sobre isso com Ryle num terraço de cobertura sem nenhuma testemunha.
— Você está me deixando nervosa. Podemos voltar lá para baixo, por favor?
O comportamento inteiro de Ryle muda assim que digo isso. É como se o tamanho do insulto o abalasse.
— Lily, sério. — Ele se afasta da porta e anda até o outro lado do terraço. — A gente está discutindo. As pessoas discutem. Pelo amor de Deus.
Ele se vira, me dando as costas.
Lá vem o gaslighting. Ryle está tentando fazer com que eu ache que é loucura ter medo, apesar de meu medo ser mais do que justificado. Encaro-o por um instante e me pergunto se a discussão acabou ou se ele tem algo mais a dizer. Quero que esteja terminada, então abro a porta da escada.
— Lily, espere.
Paro porque sua voz está bem mais calma, o que me faz pensar que talvez ele seja capaz de conversar sem descambar para nenhuma briga explosiva. Ryle se aproxima de mim com a expressão sofrida.
— Desculpe. Você sabe como eu me sinto em relação a tudo o que tem a ver com ele.
Sei mesmo, e é exatamente por isso que estou tão dividida sobre a possibilidade de Atlas voltar a fazer parte da minha vida. Só de pensar em ter que confrontar Ryle sobre isso me dá vontade de vomitar. Ainda mais agora.
— Fiquei chateado por descobrir que o nome do meio da nossa filha possa ter sido escolhido para me magoar. Você não pode esperar que uma coisa dessas não me afete.
Eu me recosto na parede e cruzo os braços na frente do peito.
— Não teve nada a ver com você nem com Atlas. Foi uma coisa só minha. Juro.
Só de mencionar o nome de Atlas em voz alta parece deixar o ar entre nós dois mais tenso, como se fosse algo tangível que Ryle pudesse esmurrar.
Ryle assente, a expressão tensa, mas parece aceitar a resposta. Para ser sincera, nem sei se ele deveria. Talvez,
subconscientemente, eu tenha mesmo feito isso para magoá-lo. A esta altura, nem sei mais. A raiva dele está me fazendo questionar minhas próprias intenções.
Tudo isso me parece familiar demais.
Nós dois ficamos quietos por um tempo. Tudo que eu quero é ir atrás de Emerson, mas Ryle parece ter mais a dizer, pois se aproxima e coloca a mão na parede atrás da minha cabeça. Fico aliviada por ele não parecer mais estar zangado, mas não sei se gosto da expressão no seu olhar que substituiu a raiva. Não é a primeira vez que ele me olha assim desde que nos separamos.
Sinto meu corpo inteiro enrijecer com a mudança gradual em seu comportamento. Ele se aproxima alguns centímetros, ficando perto demais, e abaixa a cabeça.
— Lily — diz ele, a voz um sussurro áspero. — O que a gente está fazendo?
Não lhe respondo porque não sei o motivo da pergunta. Estamos tendo uma conversa. Uma conversa iniciada por ele.
Ryle ergue a mão e passa o dedo na gola do meu macacão, que está um pouco à mostra por baixo do meu casaco. Quando ele suspira, seu hálito atravessa meu cabelo.
— Tudo seria tão mais fácil se a gente pudesse simplesmente...
Ryle faz uma pausa, talvez para pensar no que está prestes a dizer. Nas palavras que não quero ouvir.
— Pare — sussurro, impedindo-o de terminar.
Ele não conclui o pensamento, mas também não se afasta. Na verdade, parece até que chega ainda mais perto. Não fiz nada no passado para ele achar que pode se aproximar de mim desse jeito. Não faço nada que lhe dê esperanças de que teremos qualquer coisa além de uma relação coparental civilizada. É sempre ele que fica tentando ultrapassar os meus limites e chegar perto daquilo que eu considero aceitável e, francamente, cansei disso.
— E se eu tiver mudado? — pergunta ele. — Mudado de verdade?
Agora seus olhos estão cheios de sinceridade e sofrimento.
Isso não me afeta nem um pouco. Nem um pouco mesmo.
— Para mim não faz diferença se você mudou, Ryle. Eu espero
que você tenha mudado. Mas não cabe a mim testar essa teoria.
Essas palavras o abalam bastante. Vejo quando precisa de um momento para reprimir alguma resposta grosseira que sabe que não deve dar neste momento. Ele para de falar, para de me olhar, para de ficar grudado em mim.
Ryle bufa, frustrado, depois se afasta e se dirige para a escada. Tomara que esteja indo para o próprio apartamento. Ele bate a porta após entrar.
Não vou atrás dele imediatamente, por motivos óbvios. Preciso de espaço. Preciso assimilar as coisas.
Não é a primeira vez que Ryle me pergunta o que estamos fazendo, como se nosso divórcio fosse algum joguinho meu. Às vezes ele diz isso casualmente, outras, por mensagem. Algumas vezes chega até a fazer piada. No entanto, toda vez que insinua o quanto nosso divórcio é um absurdo, reconheço o que está fazendo. É uma tática de manipulação. Ele acha que, se tratar nosso divórcio como uma bobagem nossa, eu vou acabar concordando e voltando com ele.
A vida dele ficaria mais fácil se eu o aceitasse de volta. Até as vidas de Allysa e Marshall ficariam mais fáceis, pois os dois não precisariam lidar com o nosso divórcio nem pisar em ovos com Ryle.
Mas a minha vida não ficaria mais fácil. Não é nada fácil temer pela própria segurança sempre que se pisa em falso.
A vida de Emerson não ficaria mais fácil. Eu tive a vida dela. Não é nada fácil viver num lar daqueles.
Espero minha raiva se dissipar antes de voltar lá para baixo, mas isso não acontece. Ela apenas vai aumentando a cada degrau que desço. É como se minha reação fosse intensa demais para o que acabou de acontecer ou pode ser que eu tenha apenas me condicionado a sentir isso quando estou com Ryle. Quem sabe não seja uma mistura disso com minha falta de sono? Ou ainda o encontro com Atlas que eu quase arruinei? O que quer que esteja causando uma reação tão forte me domina ainda mais quando estou diante da porta de Allysa.
Preciso de um instante para me recompor antes de ficar perto da minha filha, então me sento no corredor para chorar. Gosto de chorar sozinha. Acontece com certa regularidade, infelizmente, mas tenho me sentido sobrecarregada com frequência. O divórcio é
cansativo, ser mãe solo é cansativo, cuidar de um negócio é cansativo, lidar com um ex-marido que ainda me assusta é cansativo.
E também há a pontada de medo que se infiltra na minha consciência quando Ryle diz algo para insinuar que nosso divórcio foi um erro. Porque às vezes eu realmente me pergunto se minha vida não seria menos cansativa se eu tivesse um marido que ajudasse na criação da nossa filha. E às vezes me pergunto se não estou exagerando ao não deixar minha filha dormir na casa do pai. Relacionamentos e acordos de guarda compartilhada não vêm com manuais, infelizmente.
Não sei se cada atitude que tomo é a correta, mas estou fazendo o melhor que posso. Não preciso da manipulação dele, muito menos do seu gaslighting.
Queria estar em casa, onde poderia ir até meu porta-joias pegar minha lista de motivos. Eu deveria tirar uma foto para tê-la sempre no celular. Com certeza subestimo o quanto as interações com Ryle podem ser difíceis e confusas.
Como as pessoas largam esses ciclos quando não têm os recursos que tive nem o apoio dos amigos e da família? Como elas se mantêm fortes em todos os segundos do dia? Me parece que basta um momento de fraqueza, de insegurança, na presença do ex para a pessoa se convencer de que tomou a decisão errada.
Toda pessoa que já deixou um cônjuge manipulador e abusivo e conseguiu se manter longe dele merece uma medalha. Uma estátua. Um filme de super-herói, cacete.
É óbvio para mim que a sociedade tem idolatrado os heróis errados esse tempo todo, pois estou convencida de que erguer um prédio nos braços requer menos força do que abandonar de vez uma situação abusiva.
Ainda estou chorando alguns minutos depois quando ouço a porta de Allysa se abrir. Olho para cima e vejo Marshall saindo do apartamento com dois sacos de lixo. Ele para ao me ver sentada no chão.
— Ah.
Ele olha para os lados, como se esperasse que outra pessoa viesse me ajudar. Não que eu precise de ajuda. Eu precisava de um
respiro, só isso.
Marshall deixa os sacos no chão e se aproxima. Ele se senta na
minha frente e estende as pernas. Coça o joelho desconfortavelmente.
— Não sei bem o que dizer. Não sou muito bom nisso.
Seu constrangimento me faz rir no meio das lágrimas. Ergo a mão, frustrada.
— Eu estou bem. É que às vezes preciso chorar depois de uma briga com Ryle, só isso.
Marshall dobra a perna como se estivesse prestes a se levantar e ir atrás de Ryle.
— Ele te machucou?
— Não. Não, ele estava relativamente calmo.
Marshall relaxa e se acomoda de novo, e não sei o porquê,
talvez seja por ele ter dado o azar de estar na minha frente agora, mas lhe conto tudo que estou pensando.
— Acho que o problema é justamente esse. Desta vez ele tinha mesmo o direito de estar irritado comigo e se manteve relativamente calmo. Às vezes a gente se desentende e não acontece nada além de uma discussão. E quando isso ocorre, eu começo a me perguntar se não foi um exagero pedir o divórcio. Quer dizer, sei que não foi exagero. Sei que não foi. Mas ele sabe plantar as sementinhas da dúvida em mim, como se talvez as coisas pudessem ter melhorado se eu tivesse apenas lhe dado mais tempo para melhorar. — Eu me sinto mal por estar despejando tudo isso em Marshall. Não é justo com ele. Ryle é seu melhor amigo. — Desculpe. Isso não é problema seu.
— Allysa me traiu.
As palavras de Marshall me deixam tão perplexa que fico calada por uns cinco segundos.
— O... o quê?
— Faz muito tempo. A gente conseguiu se resolver, mas, cacete, doeu pra caramba. Ela partiu meu coração.
Estou balançando a cabeça, tentando assimilar a informação. Ele continua falando, contudo, então tento acompanhar.
— Não estávamos num momento bom. Estudávamos em universidades diferentes, tentamos fazer o relacionamento à
distância dar certo, e éramos jovens. E nem foi nada de mais. Ela bebeu e pegou um cara qualquer numa festa antes de lembrar o quanto eu sou maravilhoso. Mas quando ela me contou... Nunca senti tanta raiva na vida. Nada jamais me ferira daquele jeito. Quis retaliar, quis traí-la para ela saber como era, quis furar seus pneus e gastar todo o limite dos seus cartões de crédito e queimar todas as suas roupas. Mas, por mais que eu estivesse furioso, quando ela estava na minha frente, eu jamais, nem por um segundo, pensei em machucá-la fisicamente. Na verdade, eu só queria abraçá-la e chorar no ombro dela.
Marshall me olha com sinceridade.
— Quando penso em Ryle te batendo... sinto uma raiva absurda. Porque amo o cara. Amo mesmo. Ele é meu melhor amigo desde que éramos crianças. Mas também o odeio por ele não ser uma pessoa melhor. Nada do que você fez e nada do que você poderia fazer justificaria um homem pôr as mãos em você por raiva. Lembre- se disso, Lily. Você tomou a decisão certa ao sair daquela situação. E jamais deveria se sentir culpada por isso. Tudo o que você deveria sentir é orgulho.
Eu não fazia ideia do quanto isso estava pesando em mim, mas as palavras de Marshall tiram um fardo tão grande de cima de mim que senti como se pudesse voar.
Acho que essas palavras não seriam tão importantes se tivessem vindo de outra pessoa. Receber essa validação de alguém que ama Ryle como a um irmão tem algo de reafirmador. De empoderador.
— Você está errado, Marshall. Você é bom pra cacete nisso.
Marshall sorri e me ajuda a levantar. Ele pega os sacos de lixo, e eu volto para o apartamento deles para ir até a minha filha e lhe dar um baita abraço.