A minha situação com Ryle tem sido incomum desde que Emerson nasceu. Acho que poucos casais dão entrada no divórcio na mesma hora em que assinam a certidão de nascimento da filha recém- nascida.
Por mais que eu tenha me decepcionado com Ryle por ele ter me levado à decisão de acabar com o nosso casamento, não quero impedi-lo de se conectar com a nossa filha. Coopero o máximo possível com ele, pois sei que seus horários são caóticos. Às vezes, até a levo para visitá-lo no hospital durante o almoço.
Ryle também tem a chave do meu apartamento desde antes de Emerson nascer. Dei uma cópia a ele porque estava morando sozinha e tinha medo de entrar em trabalho de parto e ele precisar entrar no apartamento. Porém, ele nunca a devolveu após o nascimento, embora eu tenha pensado em pedi-la de volta. Ele a usa nas raras ocasiões em que opera até tarde e tem tempo sobrando de manhã para ficar com Emmy depois que saio para o trabalho. Foi por isso que não a pedi de volta. Mas, ultimamente, ele tem usado a chave quando leva Emmy para casa.
Ele me mandou uma mensagem pouco antes de eu fechar a floricultura mais cedo para dizer que Emmy estava cansada, então ia levá-la para minha casa e colocá-la para dormir. A frequência com que ele tem usado minha chave faz com que eu me pergunte se ele também não está tentando passar mais tempo com outra pessoa além de Emmy.
A porta da frente está destrancada quando finalmente chego em casa. Ryle está na cozinha. Ele me olha ao ouvir a porta se fechar.
— Trouxe o jantar — anuncia ele, erguendo uma sacola do meu restaurante tailandês favorito. — Você não comeu ainda, comeu?
Não estou gostando disso. Ele está ficando cada vez mais à vontade aqui. No entanto, já estou emocionalmente exausta depoisdo dia de hoje, então balanço a cabeça e decido confrontar a questão em outro momento.
— Não comi, obrigada.
Coloco a bolsa na mesa e passo pela cozinha, indo para o quarto de Emmy.
— Acabei de colocá-la na cama — avisa.
Paro perto da porta do quarto e encosto o ouvido nela. Está silêncio, então recuo e volto para a cozinha sem acordá-la.
Estou me sentindo péssima por ter dado uma resposta curta para Atlas mais cedo, mas esta interação com Ryle confirma todas as minhas preocupações. Como eu começaria algo com alguém novo quando meu ex ainda me traz comida para jantar e tem a chave do meu apartamento?
Preciso estabelecer limites firmes com Ryle antes de poder sequer considerar a ideia de Atlas.
Ryle escolhe uma garrafa de vinho tinto da minha adega. — Posso abrir?
Dou de ombros enquanto sirvo o pad thai no meu prato. — Pode, mas não vou querer.
Ryle devolve a garrafa e decide tomar um chá. Pego uma água na geladeira e nós dois nos sentamos à mesa.
— Como ela estava hoje? — pergunto a ele.
— Um pouco rabugenta, mas eu tinha muita coisa para resolver. Acho que ela cansou de tanto entra e sai na cadeirinha. Estava melhor quando passamos na casa de Allysa.
— Quando é seu próximo dia de folga?
— Ainda não sei. Eu te aviso.
Ele estende a mão para a frente e usa o polegar para limpar
alguma coisa na minha bochecha. Eu me retraio um pouco, mas ele não percebe. Ou talvez finja não perceber. Não sei se ele repara que, sempre que sua mão se aproxima de mim, minha reação é negativa. Conhecendo Ryle, ele deve achar que me retraí por ter sentido alguma química entre a gente.
Depois que Emmy nasceu, houve alguns momentos em que realmente senti uma química. Ele dizia ou fazia algo meigo, ou estava segurando Emmy enquanto cantava para ela, e eu sentia aquele desejo familiar por ele surgindo dentro de mim. Porém, todas
as vezes encontrei forças para afastar isso. Basta uma lembrança ruim para atenuar imediatamente quaisquer sentimentos passageiros que eu tenha na sua presença.
Foi um percurso longo e turbulento, mas finalmente esses sentimentos foram embora.
Atribuo isso à lista que fiz de todos os motivos pelos quais decidi me divorciar de Ryle. Às vezes, depois que ele vai embora, vou para o quarto e a leio para reiterar que o nosso esquema atual é o melhor para todos nós.
Bem. Talvez não tudo do esquema. Ainda quero minha chave de volta.
Estou prestes a comer outra garfada de macarrão quando ouço uma notificação abafada vindo da minha bolsa no outro lado na mesa. Solto o garfo e estendo o braço rapidamente para pegar meu celular, antes que Ryle o pegue. Não que ele fosse ler minhas mensagens, mas a última coisa que eu quero neste momento é que, por uma questão de educação, ele vá pegar meu celular para mim. Ele poderia ver que a mensagem é de Atlas, e não estou preparada para a tempestade que isso causaria.
A mensagem não é de Atlas, entretanto. É da minha mãe. Ela enviou fotos que tirou de Emmy no começo da semana. Coloco o celular na mesa e pego o garfo, mas Ryle está me encarando.
— Era minha mãe — digo.
Nem sei por que falei isso. Não lhe devo nenhuma satisfação, mas não gosto da maneira como ele está me encarando.
— Quem estava esperando que fosse? Você praticamente se jogou por cima da mesa para pegar o celular.
— Ninguém.
Tomo um gole de água. Ele ainda está me encarando. Não sei o quanto Ryle percebe, mas ele parece saber que estou mentindo.
Ele gira o garfo no macarrão e olha o prato, retesando o maxilar.
— Você está saindo com alguém? — pergunta ele com uma certa veemência na voz.
— Não que isso seja da sua conta, mas não.
— Não estou dizendo que é da minha conta. Estou apenas puxando papo.
Não respondo porque sei que é mentira. Nenhum marido que se divorciou recentemente e que pergunta à ex-esposa se ela está saindo com alguém está apenas puxando papo.
— Eu realmente acho que, em algum momento, a gente precisa conversar sobre namoro — diz ele. — Antes de eu e você trazermos outras pessoas para perto de Emerson. E talvez estabelecer algumas regras.
Faço que sim.
— Acho que precisamos estabelecer regras para muitas outras questões também.
Ele semicerra os olhos.
— Tipo o quê?
— Seu acesso ao meu apartamento. — Engulo em seco. —
Quero minha chave de volta.
Ryle me encara inexpressivamente antes de responder. Então
limpa a boca e diz:
— Não posso colocar minha filha para dormir?
— Não é isso que estou dizendo.
— Você sabe que meus horários são frenéticos, Lily. Já é difícil
conseguir vê-la.
— Não estou dizendo que quero que você a veja menos. Só
quero minha chave de volta. Eu valorizo a minha privacidade.
Ryle está com uma expressão tensa. Está chateado comigo. Eu sabia que ficaria, mas ele está exagerando. Isso não tem nada a ver com o quanto eu quero que ele veja Emmy. Não quero que ele tenha acesso fácil ao meu apartamento, só isso. Tive meus motivos
para sair da nossa casa e me divorciar dele.
Não vai ser uma mudança imensa, mas é uma que precisa
acontecer. Senão, ficaremos presos para sempre nessa rotina que nos faz mal.
— Então ela pode começar a dormir lá em casa — diz ele com muita convicção enquanto me olha para ver a minha reação.
Sei que ele está sentindo o incômodo que de repente começou a me sufocar.
Mantenho a voz calma:
— Não sei se estou pronta para isso. Ryle solta o garfo no prato ruidosamente.
— Talvez a gente devesse alterar o acordo de guarda compartilhada.
Suas palavras me irritam, mas consigo impedir que a raiva transborde. Levanto e pego meu prato.
— Está falando sério, Ryle? Peço a chave do meu apartamento de volta e você ameaça me colocar na Justiça?
Nós dois aceitamos o acordo, mas ele está agindo como se o acordo fosse para o meu bem, e não para o dele. Ele sabe que eu poderia ter pedido guarda unilateral depois de tudo que vivenciei com ele. Caramba, nem pedir a prisão dele eu pedi. Ele deveria é se sentir grato por eu ter sido tão generosa quanto fui.
Quando chego à cozinha, coloco o prato na bancada e seguro a beirada dela, deixando minha cabeça pender entre os ombros. Calma, Lily. Ele só está reagindo.
Ouço Ryle suspirar arrependido, e em seguida ele vem para a cozinha atrás de mim. Ele se apoia na bancada enquanto passo água no prato.
— Você pode pelo menos me dar um prazo? — diz ele com a voz mais baixa. — Quando ela vai poder dormir lá em casa?
Pressiono o quadril na bancada e me viro para ele. — Quando ela souber falar.
— Por quê?
Odeio o fato de precisar dizer isto em voz alta:
— Porque assim ela pode me contar se alguma coisa acontecer, Ryle.
Depois de assimilar completamente as minhas palavras, ele morde o lábio inferior e faz que sim sutilmente. Percebo sua frustração pelas veias saltando em seu pescoço. Ele tira as chaves do bolso e remove a do meu apartamento. Joga-a na bancada e se afasta.
Após ele pegar o casaco e sair, sinto uma culpa familiar se infiltrando furtivamente no meu peito. A culpa sempre vem acompanhada de dúvidas do tipo: "Será que estou sendo dura demais com ele?" e "E se ele tiver mesmo mudado?".
Eu sei as respostas para essas perguntas, mas às vezes é bom relembrar. Vou até meu quarto e tiro a lista do meu porta-joias.
1) Ele te deu um tapa porque você riu. 2) Ele te empurrou de uma escada.
3) Ele te mordeu.
4) Ele tentou te estuprar.
5) Você precisou levar pontos por causa dele.
6) Seu marido te machucou fisicamente mais de uma vez. E isso
teria se repetido várias e várias vezes. 7) Você fez isso pela sua filha.
Passo o dedo na tatuagem no ombro, sentindo as pequenas cicatrizes que ele deixou ali com os dentes. Se Ryle fez essas coisas comigo nas melhores épocas do nosso relacionamento, o que ele seria capaz de fazer nas piores?
Dobro a lista e a guardo no porta-joias para a próxima vez que eu precisar de um lembrete.