15. Altlas

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Quando estava na Marinha, eu tinha um colega com família em Boston. Os tios dele estavam se preparando para se aposentar e queriam vender o restaurante. Ele se chamava Milla's, e quando o conheci durante as férias, me apaixonei completamente pelo local. Até poderia dizer que foi pela comida ou pelo fato de ele ficar em Boston, mas a verdade é que me apaixonei por ele devido à árvore que crescia bem no meio do restaurante.
A árvore me lembrava de Lily.
Se é para ter alguma lembrança do seu primeiro amor, as árvores deveriam ser a última opção. Elas estão por toda parte. E deve ser por isso que tenho pensado em Lily todo santo dia desde que eu tinha dezoito anos, mas também pode ser porque, até hoje, sinto que devo minha vida a ela.
Não sei muito bem se foi a árvore ou o fato de o restaurante vir quase totalmente equipado e com funcionários, mas tive o ímpeto de comprá-lo quando ficou disponível. Não era meu objetivo ter um restaurante logo após sair da Marinha. Eu planejava trabalhar como chef para adquirir experiência, mas, quando a oportunidade surgiu, não consegui deixar escapar. Usei o dinheiro que tinha poupado durante meu período na Marinha, fiz um empréstimo, comprei o restaurante, mudei o nome e criei um cardápio novinho em folha.
Às vezes me sinto culpado pelo sucesso do Bib's, como se não fosse mérito meu. Eu não apenas herdei os funcionários, que já sabiam o que estavam fazendo, também herdei clientes. Não construí tudo do zero, e é por isso que a síndrome do impostor fala mais alto quando as pessoas me parabenizam pelo sucesso do Bib's.
Foi por isso que abri o Corrigan's. Talvez eu não quisesse provar nada para ninguém além de mim mesmo, mas queria saber que eu conseguiria. Queria o desafio de criar algo do zero e de ver o estabelecimento prosperar e crescer. Como aquilo que Lily escreveu

no diário sobre por que gostava de cuidar de sua horta quando éramos adolescentes.
Talvez seja esse o motivo de eu me sentir mais protetor em relação ao Corrigan's do que ao Bib's, pois o criei do zero. Talvez também seja por isso que me esforço mais para protegê-lo. O Corrigan's está com o sistema de segurança funcionando, e é bem mais difícil de arrombar do que o Bib's.
E é por isso que decido passar a noite no Bib's, embora seja a vez de o Corrigan's ser invadido, já que o menino tem alternado os alvos. Na primeira noite foi o Bib's, na segunda, o Corrigan's. Depois ele tirou alguns dias de folga, e o terceiro e o quarto incidentes foram no Bib's. Posso estar enganado, mas tenho a sensação de que ele vai preferir passar aqui, e não no Corrigan's, porque teve mais facilidade para entrar no restaurante menos protegido. Só espero que hoje não seja uma das noites em que ele decida não dar as caras.
Ele com certeza vai aparecer aqui se estiver com fome. O Bib's é sua melhor opção para conseguir comida, e é por isso que estou escondido do outro lado da caçamba, esperando. Peguei uma das cadeiras velhas que os fumantes usam e estou lendo para passar o tempo. As palavras de Lily têm feito companhia a mim. E a companhia tem sido tão boa que, em vários momentos, fiquei tão vidrado no diário que esqueci que deveria estar vigiando.
Não sei ao certo se quem tem vandalizado meus restaurantes tem a mesma mãe que eu, mas faz sentido devido ao momento. E também faz sentido um menino que me despreza pichar aqueles insultos. Não consigo pensar em mais ninguém que teria um bom motivo para estar irritado comigo além de um garoto que se sente abandonado pelo irmão mais velho.
São quase 2h da manhã. Confiro o Corrigan's pelo aplicativo de segurança no celular, mas também não tem nada acontecendo lá.
Volto à leitura do diário, embora tenha sido sofrido ler as duas últimas entradas. Não sabia o quanto minha mudança para Boston tinha afetado Lily quando ela era mais jovem. Na minha cabeça, com aquela idade, eu era um inconveniente para ela. Não fazia ideia do quanto ela achava que eu acrescentava à sua vida. Ler as cartas escritas naquela época tem sido bem mais difícil do que eu

imaginava. Achei que seria divertido ler seus pensamentos, mas, quando comecei, lembrei o quanto nossas infâncias foram cruéis conosco. Já não penso tanto nesse assunto porque me sinto muito distante da vida que levava naquela época, mas, pelo jeito, esta semana está me fazendo voltar àqueles momentos de diversas maneiras. As informações nos diários, minha mãe, a descoberta de que tenho um irmão — parece que tudo aquilo de que tentei fugir formou um vazamento vagaroso que agora ameaça me afogar.
Mas aí tem Lily, que reapareceu na minha vida no momento perfeito. Parece que ela sempre retorna quando preciso de um salva-vidas.
Folheio o resto do diário e vejo que já estou na metade da última entrada. Não me lembro de quase nada daquela noite devido à maneira terrível como ela acabou. Parte de mim nem quer vivenciá- la do ponto de vista de Lily, mas não posso ficar sem saber o que ela sentiu.
Abro a última entrada e continuo de onde parei.
Ele segurou minhas mãos e disse que ia entrar para a Marinha antes do que tinha planejado, mas que não podia ir embora sem me agradecer. Disse que passaria quatro anos longe e que a última coisa que desejava para mim era que eu fosse uma garota de dezesseis anos que não aproveitava a vida por causa de um namorado que nunca mandava notícias, que eu nunca via.
A próxima coisa que ele disse fez seus olhos lacrimejarem até ficarem límpidos.
— Lily. A vida é engraçada. A gente só tem alguns anos para viver, então precisamos fazer o possível para viver esses anos intensamente. Não devemos perder tempo com coisas que talvez aconteçam algum dia ou então nunca.
Entendi o que ele estava dizendo. Que ia se alistar e não queria que eu me prendesse a ele enquanto estivesse longe. Ele não estava terminando nada comigo porque nunca estivemos realmente juntos. Éramos só duas pessoas que se ajudavam quando era preciso e que fundiram seus corações um ao outro no meio do caminho.

Foi difícil ver alguém que nunca ficou comigo de verdade se afastar de mim. Durante todo o tempo que passamos juntos, acho que nós meio que sabíamos que não era algo para sempre. Não sei por quê, afinal eu poderia facilmente amá-lo desse jeito. Acho que talvez em circunstâncias normais, se estivéssemos juntos como típicos adolescentes, e ele tivesse uma vida comum com uma casa, nós dois poderíamos ser esse casal. O tipo de casal que se une com facilidade e cuja vida nunca é interrompida pela crueldade.
Nem tentei fazê-lo mudar de ideia naquela noite. Sinto que a gente tem uma conexão que nem os fogos do inferno quebrariam. Sinto que ele pode passar um tempo na Marinha e que eu posso viver mais alguns anos como uma adolescente normal, porque depois tudo vai se encaixar quando for a hora certa.
— Vou te prometer uma coisa — disse ele. — Quando minha vida estiver boa o suficiente para que você faça parte dela, vou te encontrar. Mas não quero que fique me esperando, porque talvez isso nunca aconteça.
Não gostei dessa promessa, pois significava duas possibilidades. Ou ele achava que nunca sairia vivo da Marinha, ou que sua vida nunca seria boa o suficiente para mim.
Sua vida já era boa o suficiente para mim, mas apenas assenti e forcei um sorriso.
— Se você não vier atrás de mim, eu vou atrás de você. E isso não vai ser nada bom, Atlas Corrigan.
Ele riu de minha ameaça.
— Bem, não vai ser muito difícil me achar. Você sabe exatamente onde estarei.
Sorri.
— Onde tudo é melhor.
Ele retribuiu o sorriso.
— Em Boston.
E depois me beijou.
Ellen, sei que você é adulta e sabe tudo sobre o que
aconteceu em seguida, mas mesmo assim não me sinto à

vontade contando o que fizemos nas duas horas seguintes. Vamos dizer apenas que a gente se beijou muito. Rimos muito. Amamos muito. Sussurramos muito. Muito. E nós dois tivemos de tapar as bocas e fazer o máximo de silêncio possível para que não nos flagrassem.
Quando terminamos, ele me abraçou, pele com pele, mão no coração. Ele me beijou e me olhou bem nos olhos.
— Eu te amo, Lily. Tudo que você é. Eu te amo.
Sei que essas palavras são muito repetidas por aí, principalmente por adolescentes. Muitas vezes de forma prematura e sem muito mérito. Mas, quando ele as disse para mim, sei que não queria falar que estava apaixonado por mim. Não era esse tipo de "eu te amo".
Imagine todas as pessoas que você conhece ao longo da vida. São muitas. Elas surgem como ondas, entrando e saindo aos poucos, dependendo da maré. Algumas ondas são muito maiores e causam mais impacto que outras. Às vezes, as ondas trazem coisas lá do fundo do mar e as largam no litoral. Marcas nos grãos de areia que provam que as ondas estiveram lá, muito depois de a maré recuar.
Foi isso que Atlas quis dizer ao falar "eu te amo". Estava me contando que eu era a maior onda que tinha aparecido em sua vida. E eu havia trazido tanta coisa comigo que minhas marcas sempre estariam presentes, mesmo quando a maré recuasse.
Depois de dizer que me amava, ele falou que tinha um presente de aniversário para mim. Pegou uma pequena sacola marrom.
— Não é nada de mais, mas foi tudo o que consegui comprar.
Abri a sacola e tirei o melhor presente que já ganhei. Era um ímã que dizia "Boston" em cima. Embaixo, com letras pequenas, estava escrito: "Onde tudo é melhor." Eu disse que guardaria para sempre e que pensaria nele toda vez que o visse.
Quando comecei a escrever esta carta, falei que meu aniversário de dezesseis anos tinha sido um dos melhores

dias de minha vida. Porque até aquele segundo tinha sido mesmo.
Os próximos minutos é que não foram.
Antes de Atlas aparecer naquela noite, eu não estava esperando por ele, então não pensei em trancar a porta do quarto. Meu pai me escutou conversando com alguém e, ao escancarar a porta e encontrar Atlas na cama comigo, ele ficou mais zangado do que eu já o vira antes. E Atlas estava em desvantagem, porque não estava preparado para o que veio em seguida.
Nunca vou esquecer aquele momento enquanto estiver viva. Eu não podia fazer absolutamente nada enquanto meu pai o golpeava com um bastão de beisebol. O barulho dos ossos se quebrando foi a única coisa que escutei acima de meus gritos.
Ainda não sei quem chamou a polícia. Tenho certeza de que foi minha mãe, mas já se passaram seis meses e ainda não conversamos sobre aquela noite. Quando a polícia apareceu em meu quarto e tirou meu pai de cima dele, eu nem reconheci Atlas, de tão ensanguentado que ele estava.
Fiquei histérica.
Histérica.
Não só tiveram de levar Atlas em uma ambulância, como
também precisaram chamar uma para mim porque eu não conseguia respirar. Foi o primeiro e único ataque de pânico que já tive.
Ninguém queria me dizer onde ele estava ou se estava bem. Meu pai nem foi preso pelo que fez. Espalharam a notícia de que Atlas estava naquela casa antiga, sem ter onde morar. Meu pai foi venerado pelo ato heroico, por ter salvado a filhinha do mendigo que a manipulou para que transasse com ele.
Meu pai disse que eu tinha envergonhado a família, dando motivos para a cidade inteira fofocar. E vou te contar, até hoje falam sobre isso. Hoje de manhã escutei Katie dizer a alguém no ônibus que tentou me alertar sobre Atlas. Disse que sabia que ele era uma má influência desde o momento em que o

viu. Mas isso é mentira. Se Atlas estivesse no ônibus comigo, eu provavelmente teria ficado de boca calada e agido com maturidade, como ele tentou me ensinar. Em vez disso, fiquei com tanta raiva que me virei e mandei Katie ir para o inferno. Disse que Atlas era um ser humano melhor do que ela jamais seria, e que, se eu a escutasse falar mal dele de novo, ela ia se arrepender.
Ela apenas revirou os olhos e disse:
— Meu Deus, Lily. Ele fez lavagem cerebral em você, foi? Era um mendigo sujo e ladrão, que provavelmente usava drogas. Ele te usou porque queria comida e sexo, e agora você o está defendendo?
Ela teve sorte de o ônibus chegar à minha casa bem naquele instante. Peguei minha mochila, saí do ônibus, entrei em casa e passei três horas chorando no quarto. Agora minha cabeça está doendo, mas eu sabia que só ficaria melhor se finalmente colocasse tudo para fora aqui no diário. Já faz seis meses que evito escrever esta carta.
Sem querer ofender, Ellen, mas minha cabeça continua doendo. Meu coração também. Talvez esteja doendo ainda mais do que ontem. Esta carta não ajudou nem um pouco.
Acho que vou passar um tempo sem escrever. Porque me lembro dele quando escrevo para você, e tudo isso dói muito. Até ele vir atrás de mim, vou apenas fingir que está tudo bem. Vou continuar fingindo que estou nadando, quando na verdade só estou boiando. Quase sem conseguir manter a cabeça fora da água.
Lily
Fecho o diário depois de ler a última página.
Não sei o que sentir porque sinto tudo. Raiva, amor, tristeza, felicidade.
Sempre odiei não conseguir lembrar de quase nada daquela noite, por mais que tentasse pensar em cada palavra que dissemos. O fato de Lily ter anotado tudo é um presente, embora seja um presente triste.

Naquela época, eu temia que Lily fosse frágil demais para saber dos detalhes da minha vida. Eu queria protegê-la das coisas negativas que estavam acontecendo, mas ler suas palavras me mostrou que Lily não precisava ser protegida. Pelo contrário: ela poderia até ter me ajudado a enfrentá-las.
Sinto vontade de escrever outra carta para ela, mas, acima de tudo, sinto vontade de estar com ela, de conversar sobre tudo isso pessoalmente. Sei que estamos indo devagar, mas, quanto mais tempo passo perto dela, mais fico impaciente para reencontrá-la.
Eu me levanto para guardar o diário e pegar algo para beber enquanto espero, mas paro assim que fico de pé. Há um poste no começo do beco iluminando o restaurante e tem uma sombra se movendo na luz. A sombra passa na frente do restaurante indo na outra direção, como se o dono da sombra estivesse vindo para perto de mim. Recuo para continuar escondido.
Alguém aparece. Um garoto se aproxima da porta dos fundos.
Não sei se esse garoto é meu irmão, mas com certeza é a mesma pessoa que vi na gravação da câmera do Corrigan's. Mesmas roupas, mesmo moletom com o capuz na cabeça.
Continuo escondido, observando-o, e a cada segundo que passa me convenço mais de que ele é exatamente quem eu acho. Ele tem o porte parecido com o meu. Até se move como eu. Sou tomado por uma energia ansiosa, pois quero conhecê-lo. Quero lhe dizer que não estou com raiva e que sei pelo que ele está passando.
Acho que eu não estava irritado com o vândalo nem mesmo antes de saber que talvez fosse meu irmão. Já é difícil se irritar com uma criança, mas é ainda mais difícil se irritar com uma que foi criada pela mesma mulher que supostamente me criou. Sei como é ter de fazer o possível para sobreviver. Também sei como é estar disposto a fazer de tudo para chamar a atenção de alguém. De qualquer pessoa. Houve momentos na minha infância em que eu só queria ser percebido, e tenho a sensação de que é exatamente isso que está acontecendo aqui.
Ele está querendo ser flagrado. Acima de tudo, ele quer ser notado.
Ele vem até a porta dos fundos do restaurante sem nenhuma hesitação. Já está familiarizado com o lugar. Confere a porta para

ver se está trancada. Como não abre, ele tira do moletom uma nova lata de tinta spray. Espero até que a erga, e é quando decido revelar minha presença.
— Você está segurando errado.
Minha voz o sobressalta. Quando ele se vira e me encara, percebo o quanto é jovem e sinto um grande aperto no coração, como se ele estivesse prestes a estourar. Tento imaginar Theo sozinho aqui, no meio de uma noite assim.
Ainda há algo infantil no medo em seus olhos. Quando começo a me aproximar, ele dá um passo para trás, procurando uma maneira de escapar depressa. Mas não tenta correr.
Sei que ele está curioso para ver o que vai acontecer. Não é por isso que tem vindo aqui noite após noite?
Estendo a mão para pegar a lata de tinta spray. Ele hesita, mas me dá. Demonstro como segurar a lata direito.
— Se fizer assim, não vai pingar. Você está segurando perto demais.
Enquanto ele me observa, todas as emoções passam pelo seu rosto: raiva, admiração, traição. Ficamos em silêncio enquanto notamos o quanto somos parecidos. Nós dois puxamos à nossa mãe. Mesma mandíbula, mesmos olhos claros, mesma boca, até a mesma testa involuntariamente franzida. É muita coisa para assimilar. Eu já estava conformado com a ideia de não ter família, mas cá está ele, em carne e osso. Penso no que ele deve estar sentindo enquanto me encara. Raiva, obviamente. Decepção.
Encosto o ombro na parede, olhando-o com total franqueza.
— Não sabia que você existia, Josh. Só descobri algumas horas atrás.
O menino enfia as mãos nos bolsos do moletom e encara os próprios pés.
— Que mentira do cacete — murmura ele.
Fico triste ao ver essa frieza em alguém tão novo. Ignoro a sua resposta raivosa e pego as chaves para destrancar a porta dos fundos do restaurante.
— Está com fome?
Seguro a porta aberta para ele.

Ele me olha como se quisesse sair correndo, mas, após um instante de relutância, abaixa a cabeça e entra.
Acendo a luz e vou até a cozinha. Pego os ingredientes para lhe fazer um queijo-quente e começo a prepará-lo enquanto ele anda lentamente pelo aposento, assimilando tudo. Josh toca nas coisas, abre gavetas, armários. Talvez esteja conferindo o que tem para a próxima vez que decidir arrombar. Ou talvez sua curiosidade seja para disfarçar o medo.
Estou colocando o sanduíche no prato quando ele finalmente diz:
— Como sabe quem sou se não sabia que eu existia?
Talvez isso seja o começo de uma longa conversa, e prefiro tê-la com ele numa posição mais confortável. Não tem nenhuma mesa aqui atrás com lugar para sentar, então aponto para as portas que levam ao salão do restaurante. As placas de saída proporcionam iluminação o suficiente, então não preciso acender nenhuma luz.
— Sente-se aqui. — Aponto para a mesa oito, e ele se acomoda no mesmo lugar onde nossa mãe se sentou mais cedo. — O que você quer beber?
Josh engole em seco, depois dá de ombros.
— Tanto faz.
Volto para a cozinha, pego um copo de água gelada e o empurro
por cima da mesa. Ele toma metade de uma vez só.
— Sua mãe esteve aqui hoje à noite — digo. — Ela está te
procurando.
Ele faz cara de que não se importa e continua comendo.
— Onde você está dormindo?
— Por aí — responde ele com a boca cheia.
— Está indo à escola?
— Não recentemente.
Deixo-o dar algumas mordidas antes de continuar. A última coisa
que eu quero é assustá-lo por ter feito perguntas demais.
— Por que fugiu de casa? — pergunto. — Por causa dela?
— De Sutton?
Assinto. Penso no tipo de relação que os dois têm, se ele nem
mesmo se refere a ela como mãe.

— Pois é, a gente brigou. A gente sempre briga por qualquer merda.
Ele termina o queijo-quente e bebe o restante da água.
— E seu pai? Tim?
— Foi embora quando eu era pequeno. — Seus olhos percorrem
o salão e se fixam na árvore. Quando me olha de volta, ele inclina a cabeça. — Você é rico?
— Se eu fosse, não te contaria. Você já tentou me roubar quatro vezes.
Vejo um sorrisinho se insinuando em sua boca, mas ele se recusa a sorrir para valer. Josh relaxa um pouco mais no encosto, afastando o capuz do rosto. Mechas de cabelo castanho oleoso caem para a frente, e ele as empurra para trás. Seu cabelo parece estar precisando de um corte há um bom tempo, com laterais longas e irregulares demais para serem propositais.
— Ela disse que você foi embora por minha causa. Disse que você não queria um irmão.
Preciso conter minha irritação. Puxo o prato vazio e o copo para perto de mim e me levanto.
— Só soube de você hoje, Josh. Juro. Teria ficado por perto se soubesse.
Ele me olha de seu lugar, me observando. Querendo saber se pode confiar em mim.
— Agora você já sabe que eu existo.
Josh diz isso como se estivesse me desafiando a agir de uma maneira melhor. A provar que ele não precisa esperar só coisas ruins do mundo.
Aponto a cabeça para as portas da cozinha. — Tem razão. Vamos.
Ele não se levanta de imediato.
— Para onde?
— Minha casa. Tenho um quarto para você, contanto que pare de ficar xingando tanto.
Ele ergue a sobrancelha.
— Por acaso você é algum fanático religioso, é? Gesticulo para que ele se levante.

— Um menino de onze anos xingando o tempo todo cheira a desespero. É só aos catorze anos que isso passa a ser coisa de gente descolada.
— Não tenho onze anos. Tenho doze.
— Ah. Ela disse que você tinha onze. Mesmo assim. Você é novo demais para ser descolado.
Josh se levanta e vem para a cozinha atrás de mim.
Eu me viro para ele enquanto empurro as portas para trás.
— E, só para você saber, você escreve palhaço errado. Não tem
a letra i no meio.
Ele parece surpreso.
— Bem que achei esquisito depois que escrevi.
Ponho a louça na pia, mas são quase 3h da manhã e não estou
a fim de lavá-la. Apago a luz e deixo Josh ir na frente até a porta dos fundos. Enquanto eu a tranco, ele pergunta:
— Você vai contar pra Sutton onde eu estou?
— Ainda não decidi o que vou fazer — admito, e começo a andar pelo beco enquanto ele se apressa para me alcançar.
— De qualquer maneira, estou pensando em ir para Chicago — anuncia. — Devo passar só uma noite na sua casa.
Rio quando penso que esse menino acha que vou deixá-lo fugir para outra cidade agora que sei que ele existe. No que é que eu estou me metendo, hein? Tenho a impressão de que minhas responsabilidades cotidianas acabam de dobrar.
— A gente tem mais algum irmão ou irmã que eu não conheça? — pergunto.
— Somente os gêmeos, mas eles só têm oito anos. Paro imediatamente e olho para ele.
Josh sorri.
— Estou zoando. É só a gente mesmo.
Balanço a cabeça e pego a parte de trás do seu capuz, puxando- o para cima da cabeça dele.
— Você é uma figura.
Ele está sorrindo quando chegamos ao meu carro. Também estou, até que sinto um frio na barriga de preocupação.
Conheço Josh há meia hora. Sei que ele existe há menos de um dia. Mas agora estou com a sensação de que vou protegê-lo pelo

resto da vida.

É assim que começa Where stories live. Discover now