8. Lily

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São quase 21h30 e não tenho nenhuma chamada não atendida. Faz uma hora e meia que Emerson dormiu, e ela costuma acordar antes das 6h. Eu me deito por volta das 22h porque, se eu não dormir pelo menos oito horas, fico um verdadeiro zumbi. No entanto, se Atlas não ligar antes das 22h, tenho certeza de que nem vou conseguir pegar no sono. Vou ficar me perguntando se não deveria ter pedido desculpa mais umas setenta vezes por tê-lo escondido no armário.
Vou até a pia do banheiro para começar meu skincare noturno e levo meu celular. Não largo o aparelho desde que Atlas passou na floricultura na hora do almoço e disse que me ligaria à noite. Deveria ter perguntado a que horas à noite.
Para Atlas, hoje à noite pode significar 23h.
Para mim, pode significar 20h.
É provável que a gente tenha noções completamente diferentes
de manhã e noite. Ele é um chef bem-sucedido que chega em casa para relaxar depois da meia-noite, enquanto eu já estou de pijama às 19h.
Meu celular faz um barulho, mas não é uma chamada de voz. É como se alguém estivesse me ligando pelo FaceTime.
Por favor, que não seja Atlas.
Não estou preparada para conversar por vídeo — acabei de passar um esfoliante facial! Olho o celular, e é óbvio que é ele.
Aceito a chamada e viro o celular rapidamente para que ele não possa me ver. Deixo-o na pia enquanto acelero o processo de limpeza.
— Você perguntou se podia me ligar. Isso é uma chamada de vídeo.
Ouço a risada dele.
— Não estou conseguindo te ver.
— Sim, é porque estou lavando o rosto e me preparando para
dormir. Você não precisa me ver.

— Preciso sim, Lily.
A voz dele faz minha pele formigar. Viro a câmera e ergo o aparelho com uma expressão de eu bem que avisei. Ainda estou com uma toalha no cabelo molhado e com uma camisola que devia ser da minha avó, com o rosto ainda coberto de espuma verde.
O sorriso dele é charmoso e sexy. Ele está sentado na cama, usando uma camiseta branca, encostado numa cabeceira de madeira preta. Quando fui à casa dele, não cheguei a entrar em seu quarto. A parede ali é azul, tipo jeans.
— Com certeza valeu a pena fazer uma chamada de vídeo — diz ele.
Ponho o celular de volta na pia, agora virado para mim, e termino de lavar o rosto.
— Obrigada pelo almoço de hoje.
Não quero elogiá-lo demais, mas foi a melhor massa que já comi. E foi somente duas horas depois de ela ser preparada que pude parar e almoçá-la.
— Gostou da massa por que você tá me evitando, foi?
— Você sabe que estava uma delícia. — Vou até a cama após terminar no banheiro. Apoio o celular num travesseiro e me deito de lado. — Como foi o seu dia?
— Foi bom — responde ele, mas a maneira como sua voz fala baixo a palavra bom não é muito convincente.
Franzo a testa para lhe mostrar que não acreditei.
Atlas desvia o olhar da tela por um segundo, como se estivesse refletindo.
— É apenas uma semana daquelas, Lily. Mas está melhor agora.
Vejo um sorrisinho se formar em seus lábios, o que me faz sorrir também.
Nem preciso puxar papo. Encará-lo em total silêncio por uma hora já me alegraria.
— Qual é o nome do seu restaurante novo? — Já sei que é o sobrenome dele, mas não quero que ele saiba que o pesquisei no Google.
— Corrigan's.
— É o mesmo tipo de culinária do Bib's?

— Mais ou menos. É alta gastronomia, mas com um menu de inspiração italiana. — Ele se vira de lado, apoiando o celular em alguma coisa e ficando na mesma posição que eu. Isso me faz lembrar de antigamente, quando a gente ficava acordado até tarde, conversando na minha cama. — Não quero falar de mim. Como tem passado? Como anda a floricultura? E sua filha, como ela é?
— Quantas perguntas.
— Tenho muitas outras, mas comecemos por essas.
— Tá bom. Eu estou bem. Exausta na maior parte do tempo,
mas imagino que é isso que dá ser empresária e mãe solo. — Você não parece exausta.
Dou uma risada.
— É a iluminação boa.
— Quando Emerson completa um ano?
— No dia 11. Vou chorar, este primeiro ano passou rápido demais.
— É incrível o quanto ela se parece com você. — Acha mesmo?
Ele faz que sim e diz:
— Mas e a floricultura? Está feliz com ela? Balanço a cabeça e franzo a testa.
— Mais ou menos.
— Por que só "mais ou menos"?
— Sei lá. Acho que estou cansada dela. Ou vai ver estou
cansada em geral. É muita coisa, é um trabalho maçante, e o retorno financeiro não é muito. Quero dizer, me orgulho do sucesso dela e de estar por trás disso tudo, mas às vezes fico sonhando com um trabalho automático tipo linha de montagem de alguma fábrica.
— Eu entendo — diz ele. — É tentadora a ideia de poder voltar para casa e não pensar no trabalho.
— Você acha chato ser chef em algum momento?
— De vez em quando. Foi por isso que abri o Corrigan's, para ser sincero. Decidi assumir mais o papel de proprietário e menos o de chef. Ainda cozinho várias noites por semana, mas passo boa parte do tempo cuidando da administração dos dois restaurantes.
— Você trabalha muitas horas?
— Muitas. Mas consigo achar uma noite livre para a gente.

Isso me faz sorrir. Fico mexendo no edredom, evitando contato visual porque sei que estou corando.
— Está me convidando para sair?
— Estou. Você topa?
— Posso arranjar uma noite livre também.
Agora nós dois estamos sorrindo. Mas então Atlas limpa a
garganta, como se estivesse se preparando para fazer alguma ressalva.
— Posso te fazer uma pergunta difícil?
— Pode.
Tento disfarçar meu nervosismo em relação ao que ele está
prestes a perguntar.
— Mais cedo, você mencionou que sua vida era complicada. Se
isso... se a gente... se tornar alguma coisa, isso vai ser mesmo um problema para Ryle?
Nem hesito.
— Vai.
— Por quê?
— Ele não gosta de você.
— De mim em particular ou de nenhum cara com quem você se
envolve?
Franzo o nariz.
— De você. De você em particular.
— Por causa da briga no meu restaurante?
— Por causa de muitas coisas — admito. Deito de costas e puxo
o telefone junto. — Ele culpa você pela maioria das nossas brigas. — Atlas está nitidamente confuso, então explico tentando não deixar a situação constrangedora demais. — Lembra quando a gente era adolescente e eu escrevia num diário?
— Lembro. Apesar de você nunca me deixar ler nada.
— Bem, Ryle encontrou os diários. E leu todos. E não gostou do que leu.
Atlas suspira.
— Lily, a gente era adolescente.
— Pelo jeito, ciúme não tem prazo de validade.
Atlas comprime os lábios, como se estivesse tentando conter a
frustração.

— Eu realmente odeio te ver estressada com a possível reação dele a coisas que nem sequer aconteceram. Mas eu entendo. Você está numa situação difícil. — Ele me olha para me tranquilizar. — Vamos dar um passo de cada vez, tudo bem?
— Um passo bem devagar de cada vez — sugiro.
— Combinado. Bem devagar. — Atlas ajusta o travesseiro debaixo da cabeça. — Eu via você com aqueles diários. Sempre me perguntei o que você escrevia sobre mim. Se você escrevia sobre mim.
— Quase tudo era sobre você.
— Você ainda os tem?
— Tenho. Estão numa caixa no meu armário.
Atlas se senta.
— Leia algum trecho para mim.
— Não. De jeito nenhum.
— Lily.
Ele me olha todo esperançoso e animado com a possibilidade,
mas não posso ler meus pensamentos juvenis em voz alta pelo FaceTime. Estou ficando vermelha só de pensar.
— Por favor?
Cubro o rosto com a mão.
— Não, não implore.
Se ele não parar de me olhar assim, vou terminar cedendo aos
seus olhos azuis pidões.
Ele vê que está me vencendo pelo cansaço.
— Lily, morro de curiosidade para saber o que você acha de mim
desde a adolescência. Um parágrafo. É só o que peço.
Como posso dizer não? Solto um gemido e jogo o celular na
cama, frustrada.
— Me dá dois minutos. — Vou até o armário e pego a caixa.
Carrego-a até a cama e começo a folhear os diários à procura de algo que não me envergonhe tanto. — O que você quer que eu leia? Eu contando do nosso primeiro beijo?
— Não, a gente vai fazer tudo devagar, lembra? — diz ele brincando. — Comece com alguma coisa mais do início.
Assim fica bem mais fácil. Pego o primeiro diário e o folheio até encontrar algo que me parece curto e não tão humilhante.

— Lembra da noite em que te procurei chorando porque meus pais estavam brigando?
— Lembro — confirma. Ele se acomoda no travesseiro e coloca um braço atrás da cabeça.
Reviro os olhos.
— Isso, pode ficar mais confortável aí enquanto eu fico me constrangendo — resmungo.
— Sou eu, Lily. Somos nós dois. Não precisa ter vergonha de nada.
A voz dele ainda tem o mesmo efeito calmante de sempre. Sento-me de pernas cruzadas e seguro o celular com uma das mãos e o diário com a outra, e começo a ler.
Alguns segundos depois, a porta dos fundos se abriu e ele olhou para além de mim, depois para minha esquerda e para minha direita. Só quando ele me olhou no rosto percebeu que eu estava chorando.
— Você está bem? — perguntou, saindo para a varanda.
Usei minha blusa para enxugar as lágrimas, e percebi que ele tinha saído da casa em vez de me convidar para entrar. Eu me sentei no degrau da varanda, e ele se acomodou a meu lado.
— Estou bem — respondi. — Só estou zangada. Às vezes choro quando fico zangada.
Ele estendeu o braço e colocou meu cabelo atrás da orelha. Gostei disso, e de repente minha raiva diminuiu. Então, ele pôs o braço ao meu redor e me puxou para perto, deixando minha cabeça apoiada em seu ombro. Não sei como ele me acalmou sem dizer nada, mas foi o que aconteceu. A simples presença de algumas pessoas acalma, e com ele é assim. É o completo oposto de meu pai.
Ficamos sentados assim por um tempo, até que vi a luz de meu quarto se acender.
— É melhor você ir — sussurrou ele.
Nós dois vimos minha mãe parada no quarto, me procurando. Só naquele instante percebi a vista perfeita que ele tinha do quarto.

Enquanto voltava para casa, tentei pensar em todo o tempo que Atlas passara naquela casa. Tentei lembrar se eu tinha andado alguma vez com a luz acesa durante a noite, porque normalmente, quando estou no quarto à noite, fico só de camiseta.
E, olha só a maluquice, Ellen: eu torcia para ter feito isso, sim.
Lily
Atlas não está sorrindo quando termino de ler. Está me encarando com muita intensidade, e o peso em seu olhar me faz sentir um aperto no peito.
— A gente era tão jovem — comenta. Há um pouco de sofrimento em sua voz.
— Pois é. Jovens demais para lidar com aquelas coisas. Especialmente você.
Atlas não está mais olhando para o celular, mas assente. O clima mudou, e percebo que ele está pensando em algo completamente diferente. Lembro que ele tentou fazer pouco-caso de alguma coisa ao dizer que era apenas uma semana daquelas.
— O que está te incomodando?
Ele volta a olhar para o celular. Parece que vai mudar de assunto novamente, mas depois apenas suspira e sobe um pouco para se recostar na cabeceira.
— Alguém vandalizou os restaurantes. — Os dois?
Ele assente.
— Sim. Começou uns dias atrás.
— Acha que é algum conhecido seu?
— Não é ninguém que eu reconheça, mas o vídeo da câmera de segurança não é muito nítido. Ainda não denunciei para a polícia.
— Por que não?
Ele franze a testa.
— Parece ser alguém mais jovem... Talvez um adolescente.
Acho que me preocupo com a possibilidade de a pessoa estar na mesma situação que eu naquela época. Passando necessidade. —

A tensão em seus olhos diminui um pouco. — E se a pessoa não tiver uma Lily para salvá-la?
Demoro alguns segundos para assimilar o que ele disse. Quando isso acontece, não sorrio. Engulo o nó na garganta, esperando que ele não veja minha reação. Não é a primeira vez que ele menciona que eu o salvei naquela época, mas, toda vez que diz isso, quero contestar suas palavras. Eu não o salvei. Tudo que fiz foi me apaixonar por ele.
Consigo ver por que me apaixonei por ele. Que proprietário se preocupa mais com a situação da pessoa que vandalizou seu estabelecimento do que com os danos causados?
— Atlas atencioso — sussurro.
— O quê? — pergunta ele.
Não queria ter dito em voz alta. Passo a mão no calor que se
espalha pelo meu pescoço. — Nada.
Atlas limpa a garganta, inclinando-se para a frente. Um sorriso sutil se forma.
— Voltemos ao seu diário — sugere. — Bem que me perguntei se você sabia que eu conseguia ver o interior do seu quarto pela janela naquela época, porque, depois daquela noite, você deixou a luz acesa um bocado de vezes.
Dou uma risada, contente por ele ter tornado o clima mais leve.
— Você não tinha televisão. Queria que tivesse alguma coisa para ver.
Ele solta um gemido.
— Lily, você precisa me deixar ler o restante.
— Não.
— Você me trancou num armário hoje. Me dar permissão para
ler seus diários seria uma boa maneira de se desculpar.
— Achei que você não tivesse se ofendido.
— Acho que pode ser uma reação atrasada. — Ele começa a
assentir devagar. — Pois é... Estou começando a senti-la agora. Estou muito ofendido.
Estou rindo quando Emmy começa a chorar do outro lado do corredor. Suspiro porque não quero desligar, mas não sou daquelas mães que conseguem deixar o filho chorar até cansar.

— Emmy está acordando. Preciso desligar. Mas você está me devendo um jantar.
— É só dizer quando — Atlas responde.
— Não trabalho aos domingos, então seria bom num sábado.
— Amanhã é sábado — observa ele. — Mas a gente vai fazer
tudo devagar.
— Bom... mas é bem devagar se a gente contar a partir do dia
em que nos conhecemos. Assim, são anos entre o momento em que te conheci e o nosso primeiro encontro.
— Às 18 horas?
Sorrio.
— Às 18 horas está perfeito.
Assim que digo isso, Atlas fecha os olhos por dois segundos.
— Espera. Não posso amanhã. Merda. Vai ter um evento no
restaurante e preciso estar lá. Que tal domingo?
— No domingo eu fico com Emmy. Prefiro esperar um pouco
antes de vocês conviverem.
— Eu entendo. E no próximo sábado?
— Isso me daria tempo de arranjar alguém para cuidar dela. Atlas sorri.
— Marcado então. — Ele se levanta e começa a andar pelo
quarto. — Você não trabalha aos domingos, né? Posso te ligar neste domingo?
— Quando você diz ligar, está falando de chamada de vídeo? Quero estar preparada da próxima vez.
— Você não estaria despreparada nem se tentasse — diz ele. — E, sim, vai ser pelo FaceTime. Por que perder tempo com uma chamada de voz quando eu posso te ver?
Gosto desse lado paquerador de Atlas. Preciso morder o lábio inferior por dois segundos para conter o sorriso.
— Boa noite, Atlas.
— Boa noite, Lily.
Até a maneira como ele me fita intensamente enquanto se
despede faz meu estômago dar uma cambalhota. Encerro a chamada e pressiono o rosto no travesseiro. Solto um gritinho como se tivesse dezesseis anos de novo.

É assim que começa Where stories live. Discover now