PARTE I: "O FIM DOS DEUSES" - CAPÍTULO 1

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24 de Fevereiro de 2022

Eu não me lembro de muita coisa, pra ser sincero, eu não me lembro de quase nada. Posso dizer que cheguei num ponto em que bebo tanto que nem me recordo do momento em que comecei a encher a cara. As únicas coisas que me vem em mente neste momento são lembranças de quando saí do plantão da polícia às sete da noite de antes de ontem, lembro-me de ouvir a ocorrência de um sequestro sendo passada para a próxima equipe que entraria no plantão e por fim fui pra casa fazer o que faço de melhor. Eu talvez me confundiria dizendo que minhas lembranças foram de ontem, mas olhei as horas no celular pouco antes de sair da estação de metrô Alexandre Magno e passa das três da madrugada, o que me fode ainda mais é que eu entro de serviço novamente às sete da manhã, daqui a exatas quatro horas. Sinto um frio na espinha ao sair da estação, isso vem tanto do frio úmido que está fazendo na cidade, tanto pelo perigoso estado em que Aurora se encontra. Não sou defensor dessa cidade, ela é perigosa desde que eu me entendo por gente, mas tem piorado muito nos últimos meses, desde que Seis cometeu os crimes.

O medo de andar sozinho se esvai lentamente quando as lembranças de que sou um policial, estou sempre armado e que minha casa fica só a algumas quadras da estação de metrô me vêm em mente. Ainda estou levemente bêbado, mas mantenho a concentração com o objetivo de continuar andando e chegar em casa para que eu possa dormir as poucas horas que me restam antes de entrar no plantão. O frio começa a me afligir mais fortemente, imagino que por conta do álcool estar evaporando da minha corrente sanguínea. Esfrego as mãos, às junto e sopro uma boa quantidade de ar quente nelas para aliviar um pouco a falta de calor.

Ouço alguns poucos carros passando na avenida ao lado da calçada em que estou andando, o setor Jardim dos Lírios costuma ser bem movimentado, mas como já é madrugada ele fica bem vazio por ser um bairro residencial. Encarando ao redor vejo a escuridão consumindo as fracas luzes azuladas dos postes, luzes essas que revelam gotículas de água pairando no ar, isso faz com que minhas narinas percebam ainda mais a umidade do ambiente.

Ao andar por mais alguns metros eu saio da calçada posta na avenida e sigo em direção a rua que leva rumo a minha casa. Na avenida haviam mais prédios que casas, chegando às ruas menores do bairro essa realidade se inverte e vejo as mesmas casas muradas de sempre. Faço esse caminho diversas vezes, isso pois ando de casa até a estação de metrô (e vice-versa) mais vezes que ando de carro, já que consigo dar carteirada na passagem do metrô para ir à maioria dos lugares, existem exceções, mas na maioria das vezes eu prefiro economizar a gasolina, esta que costuma ser bem cara em Aurora.

Quando chego próximo ao portão de casa sinto uma forte ânsia de vômito vir até mim, ela me atinge como se fosse um soco no estômago e posso jurar que neste momento minha expressão corporal foi semelhante a levar o soco no estômago. Coloco uma das mãos sobre a barriga e acelero o passo enquanto tateio os bolsos com a outra mão em busca das chaves da porta que fica embutida no portão branco de ferro. Imagino que se alguém estivesse me observando neste exato momento acharia que sou algum tipo de malfeitor ou alguém com graves problemas na coluna, já que estou andando curvado pra frente pra aumentar a pressão na região da barriga. Assim que encontro o molho de chaves tiro a mão do estômago e com ambas as mãos tento encontrar a chave certa para abrir o portão e entrar em casa, simultaneamente tento deixar a segunda chave a postos para abrir a porta de casa após abrir a do portão. Assim o faço, até consequentemente chegar na frente da minha residência; estou com as duas chaves entre os dedos e fico parecendo um mini Wolverine de duas garras serrilhadas, pego a primeira chave e tremendo (por motivos múltiplos) erro a fechadura algumas vezes até consequentemente acertar e destravar, empurro a maçaneta para baixo e entro, rapidamente fecho e tranco a porta do portão e corro para os fundos da casa à direita onde junto a lavanderia fica o banheiro, esbarro na porta de metal do banheiro com o ombro (acho que se estivesse sóbrio iria sentir uma forte dor no ombro) logo após empurro a maçaneta pra baixo já com a outra mão na boca pra não cair tanto vômito no chão mas acho que não adianta muito, sinto o líquido quente subir por minha garganta num impulso forte do meu corpo e consequentemente saindo por minha boca, sujando minha mão e a entrada do banheiro, corro para o vaso sanitário e enfio minha cara lá, vomitando os detritos que ainda restavam no meu estômago.

Nesse instante tenho uma espécie de lembrança, uma lembrança de quando eu era criança e estava nessa exata mesma situação, vomitando neste mesmo banheiro, nesta mesma casa. Porém quando criança eu não vomitava por ter bebido e sim por ter apanhado tão forte da minha mãe biológica a ponto de não aguentar e botar tudo pra fora, tudo isso enquanto ouvia ela dizer aquelas mesmas duas palavras, duas palavras essas que só fui ver muito depois da infância, há alguns meses atrás, escrita com sangue naquela cena de crime que fui o primeiro a chegar.

Eu sei que Seis não tem nada haver comigo e com meu passado, mas eu continuava a ouvir na minha cabeça:

Criança Amaldiçoada.

Criança Amaldiçoada.

Criança Amaldiçoada

O mais estranho era que eu não tinha essa memória de ter vomitado após apanhar antes de agora. Simultaneamente eu vomito mais, parece que a lembrança da minha infância e a cena daquele crime favorecem para isso, o que faz com que eu gaste toda minha energia e apague por completo.

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