Seu Venceslau piorou. Em trinta dias ele parou de ir ao banheiro sozinho e não conseguiu manter a sustentação na colher. Na maior parte dos dias ele lembrava da esposa sempre com um carinho que não chegava até a gente.
Na noite anterior o homem cismou que o meu quarto era o quarto dele e a outra cama que sempre ficou vazia, amanheceu com ele dormindo ali. Não consegui dormir. Fiquei com medo dele ficar vagando pelo asilo sozinho.
A obra no prédio adjacente havia acabado há três dias e eu e o Tadeu esvaziamos a montanha de sacos para doação que ocupava espaço na sala da casa. Estar ocupado me manteve longe do Gustavo tanto ali quanto fora dali. O problema era que tudo dentro daquela casa só sabia ir para o buraco. Havia um prédio reformado e pronto para ser usado, mas faltava remédio das coisas mais simples, como uma dipirona.
Não sei como, nem com que coragem insana, mas larguei o homem dormindo no meu quarto e atravessei a casa até o escritório onde ficava a Joana. Ela sempre estava ali antes da Sônia, e eu tentava ao máximo não despejar toda a minha indignação nela.
— A gente precisa conversar.
Com a seriedade e o desdém que sempre se dirigia a mim, ela pôs a pilha de papéis sobre a mesa.
— Bom dia pra você também, Tobias.
— Você tem noção do que está acontecendo com ele? — Atravessei o batente da porta. — Ou com qualquer um aqui?
Há algumas semanas ela estava em um retiro.
— Quem você pensa que é para vir aqui e falar comigo nesse tom? — me encarou séria.
— Eu só quero uma resposta.
— Não te devo nada.
— Óbvio que deve. Porque diferente da maioria aqui, eu tomo conta dele o dia inteiro. — Agarrei o encosto da cadeira de couro.
Tinha coisas tão desnecessárias, que não entrava na minha cabeça o porquê daquele lugar estar indo para o buraco.
Joana sentou na cadeira atrás da mesa, com um ar intimidador para mim.
— Primeiro que você está aqui por um pedido da Sônia. Você de forma alguma faz parte disso e eu só devo satisfações para o padre Rodolfo. — Pressionei os dedos com o sentimento de raiva crescendo no peito. — Esse discurso sobre se preocupar com o Venceslau, não me convence em nada. Eu não confio em você.
Eu ri.
— Que coisa, eu também não confio em pessoas que colocam Deus na frente de tudo... Aliás, como que você conseguiu aquela viagem semana retrasada?
— Contenha a sua língua! — Ergueu o tom de voz.
— Não sou eu que tô deixando um bando de pessoas definhar por falta de recursos básicos! — gritei de volta. — Falar que não confia em mim e tentar me atacar de todas as formas não vai diminuir a minha razão.
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🏳️🌈| O Mar que Aqui Retorna
General FictionTobias é ex-presidiário e dependente químico que tenta retomar a vida no mesmo ritmo que o mundo retorna de uma pós pandemia. Através de reencontros, deseja refazer os laços com o filho e zelar pela vida de pessoas que um dia ajudaram ele, mas isso...