Aylla voltou pra casa dela. Todos os dias ela fazia questão de enfatizar isso e eu tive que continuamente me sentir desconfortável com o uso constante das drogas ali. Era o cheiro, eram os efeitos colaterais, os resquícios na pia do banheiro.
Eu e Gustavo só voltávamos depois das cinco e na maior parte das vezes, quando não estava apagada no sofá, o som alto do pagode era trilha sonora para a euforia que o pó causava nela. Estava visível tanto para mim quanto para o Gustavo, mas ele fingia que nada estava acontecendo.
Ter a amiga, a pessoa mais importante para ele, de volta, independente do que ela trazia junto era muito melhor do que ter ela longe o problema todo era que naquela narrativa eu sobrava. Em alguns momentos tive inveja da Aylla e aquele sentimento me empurrava cada vez mais para um lugar onde o Gustavo não cabia... Não conseguia sair dali. Estava apegado àquele lugar e ao fato de não estar sozinho. Às vezes Aylla tinha razão, eu talvez gostasse daquela sensação de estar tão perto dos rastros que ela deixava por ali, numa disputa interna comigo mesmo.
Só para saber até onde eu conseguiria aguentar. Aquilo era autodestrutivo pra caralho.
Passei a mão molhada na borda da pia e lavei a palma com sabão. Eu não tinha mais ideia do que estava fazendo, era como se tudo o que vinha a ser algo que me impedia de estar perto daquilo, tivesse desaparecido e agora só sobrava um único caminho entre eu e o fim daquela angústia que não passava. Molhei o rosto, a nuca e bebi da água na pia. No silêncio de uma casa onde Aylla e Gustavo dormiam no quarto, bati a mão na pia, uma, duas, três vezes e gritei com a palma dolorida abafando o barulho.
Os olhos lacrimejando, encararam a lata de lixo do lado do vaso. Num frenesi, ajoelhei na frente dele e abri, revirando com dedos trêmulos, os papéis sujos e amassados, até encontrar o pacotinho não tão vazio. Aylla sempre usava aquilo ali e fazia questão que eu soubesse que o restinho no fundo do saco transparente estaria à minha disposição.
Porra!
Enfiei aquilo no bolso da calça e saí do cômodo suando frio. No quarto tentei não fazer qualquer barulho no momento que peguei a pochete e saí.
Era Domingo, estava frio e eu perdido pela cidade toda. Não tive noção de para onde estava indo porque meus pensamentos estavam presos no pacotinho no meu bolso, depois entre meus dedos e bem perto dos olhos. Aquilo não dava pra nada, mas pra mim era muito depois de tanto tempo longe de tudo. Eu só tive que passar a língua, que formigava só em imaginar a sensação, e deixar que a droga fizesse o resto... provar era me livrar de todos os efeitos indesejáveis de uma angústia que só me fazia mal.
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🏳️🌈| O Mar que Aqui Retorna
General FictionTobias é ex-presidiário e dependente químico que tenta retomar a vida no mesmo ritmo que o mundo retorna de uma pós pandemia. Através de reencontros, deseja refazer os laços com o filho e zelar pela vida de pessoas que um dia ajudaram ele, mas isso...