O mundial de futebol em Itália iria finalmente começar!
Que emoção escrever a frase no meu novo caderno, no meu novo diário secreto. Finalizei-a com um ponto de exclamação que vinquei com a esferográfica. Estava a fazer a viagem de avião de Portugal para o país transalpino e usava o tabuleiro a servir-me de secretária.
Começava o primeiro dia do meu relato que, confiava, iria ter muitas histórias emocionantes, muitos jogos de futebol inesquecíveis, muitos momentos especiais com os meus amigos. E agora escrevia com a firme certeza de que se tratava de um diário que teria de ser guardado numa nova caixa no fundo do meu armário. Uma caixa para o México, outra para os anos intermédios, outra para Itália, outra ainda para os anos que haveriam de vir... Suspirei, enamorada.
Conferi as horas no meu relógio de pulso. Era um exercício inútil, pois não podia apressar nada com esse simples movimento de olhos e já sabia que ia chegar atrasada. O primeiro jogo do mundial começava às seis da tarde e o meu voo estava previsto aterrar em Malpensa às quatro. Duas horas eram insuficientes para me despachar do aeroporto e chegar ao estádio Giuseppe Meazza a tempo, mas tinha a leve esperança de que conseguiria, por meio de um qualquer milagre, assistir ao pontapé de saída. Voltei a suspirar, agora ansiosa.
Nem tudo corria mal, e se estava sentada naquele avião a caminho de Milão era porque o principal tinha corrido bem: ter saído de casa! Viajar até Itália não constituía uma complicação de maior, assim julguei, pois nos últimos tempos visitara amiúde os meus amigos italianos – a Milena de Milão com quem trocava cartas, o Massimo de Nápoles que eu conhecia por causa dela. Os dois existiam, claro, mas não eram eles os amigos que costumava visitar no país dos monumentos e das pizas...
Surpreendentemente, quando fizera o aviso que durante o mês de junho estaria em Itália, o meu pai deu um murro na mesa da cozinha e determinara que eu estava proibida de sair de casa naquele verão. Aplicou-me esse castigo, mais do que justo, explicou-me, porque eu andara a sair sem dizer nada a ninguém no mês de março e no mês de abril, só deixara uns miseráveis bilhetes que tinham deixado a minha mãe preocupada e aflita. Encolhi-me. Não sabia que tinha havido tempestade em casa quando fora ver o Napoli, o clube de Diego Maradona, a sagrar-se campeão italiano. Ninguém me tinha dito nada e julgara, ingenuamente, que estava tudo bem. Pelos vistos... não estava, e o meu pai informava-me disso, precisamente quando eu precisava que ele me desse autorização para me ausentar, não que me determinasse uma sentença de prisão.
Decidi deixar que os ânimos se acalmassem, que o meu pai ficasse mais tranquilo. Aceitei ficar fechada em casa durante o mês de maio, aceitei perder a final da taça de Portugal que opôs o clube da minha cidade, o Farense, ao Estrela da Amadora, mas assim que entrou junho, voltei à carga.
Expliquei que as minhas saídas imprevistas, com os tais bilhetinhos, tinham sido necessárias. A primeira para estudar para a prova geral de acesso à universidade, mantinha a história original, a segunda para tratar de assuntos sobre o intercâmbio cultural que iria fazer em Itália, mais precisamente em Roma. Voltei a mentir dizendo que tinha estado em Lisboa, na embaixada italiana, a preencher papelada. Disse que fazia parte do meu estágio para finalizar o décimo segundo ano – para obter o diploma do secundário era necessário cumprir um plano de trabalhos relacionado com o curso. Todos os meus colegas iriam trabalhar em escritórios de contabilidade, em empresas da região, eu também iria, mas só em julho. Em junho tinha conseguido que fosse incluído nesse plano de trabalhos um projeto relacionado com História sobre os antigos romanos. Chamei a tia Anita ao barulho e disse ao meu pai que ela iria ser a minha orientadora, que iria validar depois o relatório que fizesse em resultado desse intercâmbio cultural. O meu pai ficou impressionado, porque tinha a sua irmã em alta consideração. Acabou por me dar autorização, estendendo a admiração à filha que o surpreendia com ideias muito sólidas em relação ao seu futuro. Quando o apanhei distraído, telefonei para a minha tia e contei-lhe a mesma mentira. Ela gostou muito da ideia do intercâmbio cultural, disse que queria ir comigo... gelei por dentro... para depois acrescentar que não podia acompanhar-me, porque tinha a agenda totalmente preenchida com as avaliações da escola onde dava aulas. Lembrou-se que havia quatro anos tínhamos ido juntas para o México e que gostaria de repetir a viagem comigo, agora para Itália, porque havia a coincidência de estar a acontecer o campeonato do mundo de futebol nesses dois países. Fingi que me apercebia do facto apenas quando ela me disse aquilo. Ri-me alto, a dizer que também iria tentar ver alguns jogos de futebol.
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O Outro Lado do Verão
Ficción históricaUma nova viagem, agora a Itália. Um novo campeonato do mundo de futebol. Um novo caderno e um novo diário. O ano é 1990. Desta vez estou sozinha, sem a companhia da minha tia, mas continuo com a desculpa do estudo da História para me manter focada e...