24 de Junho de 1990 (Domingo)

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Este dia ameaçava ser interminável.

E, realmente, foi interminável!

Acordámos relativamente cedo ou fui eu que já não conseguia dormir mais, excitada e impaciente por causa do jogo. Eram seis da manhã. Tomei um duche longo com água tépida. Ainda assim continuei a sentir os músculos demasiado tensos e a cabeça demasiado aérea.

O dia estava muito quente e a jornada ameaçava ser tórrida. Vesti as minhas roupas mais leves. Coloquei a camisola da Argentina sobre a t-shirt, atei o cachecol do Napoli no braço esquerdo, cobri a boneca mexicana de beijos. Fiz-lhe uma prece a solicitar-lhe os maiores favores divinos que conseguisse conjurar. Lembrei-me da noiva e pedi-lhe perdão por ter duvidado da sua dignidade. Também me lembrei que era dia de São João, e achei que o santo iria fazer o milagre a favor dos argentinos que tinham sido campeões, em 1986, no dia de São Pedro.

Estava muito ansiosa e não consegui comer nada ao pequeno-almoço. Evitei os jogadores, pedi a Giusti que dissesse a Diego que iria passear. Apanhava um táxi, ficaria a almoçar na cidade, regressaria para me juntar a eles para seguirmos para o estádio. Ele assegurou-me de que iria passar o recado. De resto, iriam estar muito ocupados. De manhã iriam fazer um último treino de adaptação no relvado do estádio, depois do almoço teriam que se preparar para o jogo.

– Cristina...

– Diz, Ricardo.

– Acalma-te. Nós vamos ganhar.

Forcei um sorriso.

– Claro que vamos ganhar!

A minha desonestidade incomodava-me como um prurido que não podia coçar em público por ser demasiado escabroso. Antes de sair do hotel, o Cristóbal entregou-me o passe que me permitia ver o jogo, pois achava que eu já não regressaria. Contava apanhar boleia no autocarro da seleção, mas se o falhasse podia ir diretamente para o estádio e agradeci-lhe a lembrança.

O passeio no centro de Turim fez-me bem, ajudou-me a distrair e a não pensar tanto no jogo. Comecei devagar a criar dentro de mim a certeza de uma vitória alviceleste e a afastar qualquer réstia de dúvida em relação a outro resultado que não fosse a classificação da Argentina para os quartos-de-final. O facto de a cidade cosmopolita, que era tida como a capital dos Alpes italianos, se pintar de um opressivo e constante amarelo ajudou-me à teimosia de persistir na defesa incondicional de Diego e dos demais argentinos.

Os jornais daquele dia estavam todos, sem exceção, do lado do Brasil. Vi alguns títulos que acreditavam piamente na vitória brasileira e folheei o que me pareceu mais acessível sem que o homem do quiosque desse por isso, eles não gostavam que se mexesse nos jornais sem os comprar, ficavam muito irritados, mas não me alonguei na leitura quando me apercebi que destruíam completamente Maradona e lhe impunham adjetivos injustos, horríveis e desdenhosos.

Se bem me lembrava, o Brasil estava a ser muito criticado antes, até pelo Pelé, e não se mostrara com argumentos suficientes para ser considerado um candidato inegável ao título. A sua maneira de jogar era entediante, previsível, amorfa, os resultados da primeira fase da prova foram dececionantes malgrado as vitórias. Aquela vaga súbita de elogio ao Brasil nascia da animosidade que sentiam por Diego e pelos argentinos que se tinham classificado para os oitavos-de-final contra todos os prognósticos, e que se mostravam menos inspirados e autênticos do que os seus rivais sul-americanos. Portanto, não dei qualquer crédito aos jornais. Senti-me mais segura naquela convicção louca e arrebatadora, ingénua e também bastante ilusória de que a Argentina iria ganhar.

Vestia a camisola da seleção das Pampas com vaidade e ignorei olimpicamente todos os assobios, apupos e repreensões que sofri ao longo do meu passeio. Que se danassem todos! Jamais iria esconder a cor do meu coração. Já tinha bastado o meu ceticismo sombrio da noite anterior. Naquele dia enfrentaria o mundo, de pés fincados na terra e punhos fechados, dentes arreganhados e olhar determinado. Naquele dia, eu estava contra o mundo e percebi, numa amostra mais minúscula que um grão de areia, o que Diego sofria, dia após dia, no seu percurso de lutador e de rebelde.

O Outro Lado do VerãoOnde histórias criam vida. Descubra agora