Começou o verão!
Com a ideia de que hoje aconteceria o solstício levantei-me cheia de energia.
Ao pequeno-almoço avisei que iria passar o dia fechada no quarto. Diego já tinha voltado à nossa mesa e não queria que ele andasse a perguntar por mim pelos cantos. Pelos vistos, o meu anúncio não o perturbou ou lhe causou qualquer indignação, nem manifestou ter intenções de me chamar se eu não aparecesse. Continuou a beber o seu chá mate como se nada fosse. Ruggeri mostrou-se mais interessado. Expliquei-lhe que precisava de estudar matemática e de finalizar o trabalho sobre a coluna de Trajano. Agradeci os livros a Diego e ele esbugalhou os olhos, retirando o pequeno tubo da boca por onde sorvia o chá. Foi para comentar qualquer coisa, mas calou-se e encolheu os ombros. Compreendi que Signorini tratara de tudo sem lhe pedir a opinião e pedi-lhe que esquecesse. Ele fez exatamente isso, esqueceu.
Diego estava demasiado alheado, perdido em altos pensamentos, um pouco indolente para o seu feitio tempestuoso. Desconfiava de que não tinha dormido bem por saber que o adversário da Argentina nos oitavos-de-final seria o Brasil, o poderoso Brasil, o eterno candidato a campeão, o mesmo Brasil que perseguia havia vinte anos o tetracampeonato. Pressentia essa tensão dissimulada naquela manhã. A sua bazófia da noite anterior fora substituída por um pragmatismo cáustico quando se viu sozinho, certamente, porque era o capitão e não demonstrava as suas fraquezas diante daqueles que liderava. Aquele ar mais sombrio indicava que pensava no desafio com persistência, desconstruindo-o em pedaços mais inofensivos que fosse capaz de controlar, para depois mostrar aos outros que eram controláveis. Gostaria que Diego tivesse querido falar comigo sobre as suas dúvidas, mas obviamente que ele não confiava em mim a esse ponto. Da minha parte ficara preocupada e a insónia ameaçara-me, mas eu conseguia dormir com facilidade e acabei por ter uma noite muito boa. Usava como escudo o meu otimismo crónico, a felicidade do início do verão, e não via razões para me incomodar com o que determinava ser um acontecimento demasiado longínquo.
Se acreditava na vitória da Argentina? A parte apaixonada de mim queria acreditar, tinha essa fé inabalável, essa crença fanática. A parte cínica sentenciava com um rotundo não, não acreditava. A Argentina iria perder com o Brasil e nem valia a pensa argumentar contra esse facto.
Para além de existir uma evidente diferença entre os atributos e o rendimento das duas seleções naquele mundial, havia ainda a antiga rivalidade entre as duas nações, que se antagonizavam em grandes e pequenas questões, desde disputas mais ou menos inócuas em várias áreas da sociedade, até ao campo desportivo onde o futebol se assumia como rei. Portanto, o jogo de Turim no próximo domingo começava a desenvolver-se como o embate mais importante no mundial até ali e a imprensa, farejando o sangue, eletrificava-se.
O dia prometia ser recheado de acontecimentos e de pequenos incidentes. Depois dos treinos iria haver uma conferência de imprensa alargada, com jornalistas de todo o mundo, e esperavam-se provocações maldosas e declarações polémicas. Eu fazia muito bem em afastar-me daquele circo, comentara Ruggeri. Diego coibiu-se de fazer qualquer observação. Olarticoechea fez-me sinal que não devia insistir. Mas eu não iria insistir e neguei perentoriamente, fechando a boca numa linha. Caniggia limitava-se a assistir, fazendo saltitar o olhar entre todos da mesa.
Já no meu quarto liguei a televisão para me fazer companhia e atirei-me primeiro ao trabalho de História. Finalizei o texto sobre o monumento romano até à hora do almoço e depois foi só transcrevê-lo, em duplicado, para as folhas. Deixei espaços para as imagens, mas não adotei o mesmo desenho para os dois trabalhos, para que existissem pequenas diferenças entre aquele que entregaria à tia Anita e aquele da professora São. Com o almoço pedi uma tesoura e cola. Estive depois a recortar os postais em formas mais ou menos artísticas, para não ilustrar o trabalho com simples postais, naquele formato quadrangular reconhecível. Colei tudo, inseri as folhas nas capas e larguei um berro libertador:
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O Outro Lado do Verão
Narrativa StoricaUma nova viagem, agora a Itália. Um novo campeonato do mundo de futebol. Um novo caderno e um novo diário. O ano é 1990. Desta vez estou sozinha, sem a companhia da minha tia, mas continuo com a desculpa do estudo da História para me manter focada e...