9 de Junho de 1990 (Sábado)

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Ao acordar tive um sobressalto. Uma leve impressão de terror insinuou-se por não estar a reconhecer a cama, o travesseiro e as imagens emolduradas que ornamentavam a parede do quarto estranho. Depois lembrei-me que estava no centro de estágio da seleção da Argentina e fechei os olhos, aliviada. Conferi as horas no meu relógio de pulso que pousara na mesa-de-cabeceira e voltei a assustar-me. Eram quase dez da manhã e não podia mandriar, ou ainda me expulsavam da concentração.

Tinha vindo na noite anterior de Milão para Roma, depois do jogo inaugural do mundial em que a Argentina perdeu por um a zero frente aos Camarões. A minha tristeza tornou-me calada e não interagi com ninguém. Entregaram-me a chave do meu quarto e a mala que trouxera de Portugal. Segui as indicações sumárias que me conduziram à ala onde iria ficar alojada. Tomei um duche rápido, vesti o pijama e adormeci. Deveria ser por volta da meia-noite, ou qualquer hora que considerei demasiado tarde para me manter acordada, e enfiei-me na cama sem delongas.

Já de manhã, tomei um segundo duche, vesti uma roupa prática e decidi ir à procura do pequeno-almoço. Atravessei o corredor ladrilhado a guardar no bolso das calças a chave presa numa placa redonda com o número do quarto.

Encontrava-me em Trigoria, uma localidade que albergava um complexo desportivo identificado com o mesmo nome e que pertencia ao clube Associazione Sportiva Roma, ou simplesmente o Roma, um dos clubes principais da capital italiana. Era nesta estrutura que a Argentina iria residir enquanto estivesse em competição no mundial. Estranhei que tivéssemos vindo para Roma, quando a sede oficial do grupo B, que integrava a seleção alviceleste, era Nápoles. Contava estar na Campânia e não em pleno Lácio. Não fiz a pergunta, não achei ninguém disponível para me dar uma resposta simpática e guardei a dúvida para mais tarde. Lembrei-me outra vez da falta que um Jacques Blanche me fazia.

O centro de treinos do Roma nasceu em 1979, e recebeu obras de melhoramento em 1984. Era composto por três edifícios. O maior deles tinha capacidade para alojar sessenta jogadores em quartos individuais. No primeiro piso tinha uma enfermaria apetrechada com diversos equipamentos de última geração associados à medicina desportiva, uma piscina coberta, balneários, salas de massagem, ginásio, salas de apoio, um restaurante, um bar, espaços amplos de convívio e escritórios para tarefas administrativas. No exterior existiam quatro campos de futebol, todos relvados, sendo que dois deles tinham arquibancadas com capacidade para mil espetadores, e o principal estava ainda equipado com iluminação para prática noturna. Existiam também campos de ténis e pistas de corrida para exercícios de atletismo.

Era um sítio muito diferente das modestas instalações do clube América, no México, pelo que pressupus que a federação argentina, desta vez, já teria mais dinheiro. As minhas acomodações e de outros convidados, que incluíam jornalistas, ficavam num segundo edifício mais pequeno perto dos campos de jogos, nas traseiras do edifício principal. Vim a descobrir que era Diego que me pagava a estadia. Fiquei acabrunhada. Era generosidade a mais. Pelos vistos, as contas do capitão eram aparte das contas da federação e só assim eu podia estar a acompanhar a seleção de perto, mesmo que tivesse recebido uma espécie de convocatória do diretor técnico argentino em novembro de 1989 no meio da festa do casamento do século. O de Maradona, leia-se.

Os jogadores e os técnicos dormiam num lugar, o restante pessoal noutro, o que me deixou também sossegada quanto a insinuações que pudessem aparecer em relação a mim e à minha ligação a Diego. Detestava boatos e abominava ainda mais confusões infundadas, baseadas em mentiras maldosas e piadas de mau gosto. Se fosse necessário, podia desaparecer airosamente para o meu quarto e afastar-me subtilmente de algum momento eventual de tensão.

As refeições eram servidas no edifício principal, na sala do restaurante. Estava esfomeada. Comera só algumas bolachas salgadas a bordo do avião e não tivera barriga para mais. Para chegar ao restaurante tinha de atravessar um pequeno pátio e uma estrada estreita alcatroada que ligava os dois prédios. Dessa passagem conseguia ver o parque de estacionamento do complexo e o meu olho caiu imediatamente nos dois Ferrari, um vermelho, outro preto, que estavam parqueados aí. O seu lugar não era de destaque, mas os automóveis da fábrica de Maranello destacavam-se por si só. O meu estômago embrulhou-se. Os Ferrari pertenciam a Diego. E eu conhecia demasiado bem o couro macio do assento do pendura do testarossa preto... Baixei a cabeça e segui caminho, afastando de mim pensamentos pecaminosos.

O Outro Lado do VerãoOnde histórias criam vida. Descubra agora