Lavei-me demoradamente debaixo do chuveiro, mas mesmo assim parecia que conservava ainda na pele e dentro de mim o cheiro de Jorge Burruchaga. Por muito que esfregasse só me cheirava a homem. De manhã, o que ele e eu tínhamos feito parecia-me um momento estúpido e embaraçoso. Não sabia muito bem como lidar com aquela memória que me picava com uma culpa estranha.
Dormira pouco, mas dormira ferrada, e sentia-me suficientemente descansada. Foi-me relativamente fácil acordar às oito da manhã para retomar as rotinas habituais do centro de estágio. Demorei muito tempo até me decidir a sair do quarto, mão na maçaneta, impreparada para o momento em que reencontrasse o futebolista. O que diríamos um ao outro? Ao fim de uma hesitação atroz e de um pânico paralisante decidi-me que o melhor seria fingir que nada se tinha passado. Ele dissera que não iria contar a ninguém que me tivera no seu quarto e eu também não faria a revelação.
O mundial continuava e havia mais um jogo no próximo fim-de-semana. Os quartos-de-final, em que a Argentina iria jogar com a Espanha ou com a Jugoslávia. Mantinha a minha preferência – que fossem os espanhóis.
No entanto, ao franquear a entrada da sala de refeições onde iria tomar o pequeno-almoço, a primeira pessoa que vi foi precisamente Jorge Burruchaga. Era provável que o tivesse procurado instintivamente, borrando os rostos dos demais da minha mente. Ao cruzar o meu olhar com o dele, uma coleção involuntária de sensações ardentes arrepiou-me e puseram-me a tremer. Ofeguei. Forcei um sorriso que depois escondi timidamente com os dedos. Guarneci o meu tabuleiro. Uma chávena de café, dois pães, queijo e um copo de água. Sentei-me na mesa habitual. Diego não estava, nem Caniggia, nem Olarticoechea. Cumprimentei Ruggeri e comecei a comer, cabisbaixa.
Ele não estava com vontade de falar e eu mantive-me calada. Apesar da noitada todos tinham, como eu, se levantado à hora normal. Mostravam-se sonolentos, silenciosos, mal-humorados, mas obedientes, ainda com resquícios nos rostos e nos gestos da felicidade da vitória contra o Brasil.
Comi com pressa, aflita, distraída. Quando me preparava para levar a loiça usada para a bancada onde esta era recolhida pelas empregadas do centro, Ruggeri informou-me de que seria dia de folga. Conferência de imprensa de manhã e a visita da família à tarde. Uma maneira indireta de me dizer que podia passear e fazer as coisas que costumava fazer quando não havia treinos, jogos ou outras obrigações relacionadas com o mundial. Respondi-lhe qualquer coisa vaga, do tipo que iria ver, sim. Ao levantar a cabeça, eu e Burruchaga voltámos a entreolhar-nos. Demorei-me na observação. Corei. Tentei ajeitar o cabelo curto atrás da orelha. Disfarcei novo sorriso enjeitado e malandro. Ao deixar a sala de refeições apercebi-me de um olhar carrancudo de Diego. Marcava os meus passos, as bochechas cheias do chá mate que sorvera e não engolira. Fiz-lhe um aceno, dei-lhe os bons-dias e, com um par de saltinhos, saí do restaurante.
Esfreguei os dentes vigorosamente, a pensar no que podia fazer naquele dia. Tinha de me afastar, era o mais ajuizado. O meu desejo fora espicaçado e a minha mente enchia-se de pensamentos impuros e malditos, nas minhas entranhas ardia um incêndio devastador, a boca humedecia-se para depois secar abruptamente. Relembrava a noite anterior e recordava também as outras vezes com Diego. A minha vontade era seduzir qualquer um deles para que me pudesse dar o que não tivera nos escassos minutos que durara o encontro com Burruchaga. Mas não podíamos ser indulgentes com todas as nossas vontades, nem ceder aos nossos desejos.
Iria visitar Roma e ficaria por lá o dia inteiro, até que caísse a noite, para que, quando regressasse, não visse ninguém, não encontrasse ninguém, não falasse com ninguém. Na terça-feira contava ter aplacada aquela inquietação imprevista e indecorosa. Lera brevemente, no painel dos jogos do dia, que a Itália iria jogar contra o Uruguai no estádio Olímpico. Podia tentar ir ver o jogo. Sabia que os bilhetes estavam esgotados, mas antes de sair perguntava se havia algum convite que não iria ser utilizado pela federação que me podiam dispensar. Era um bom programa. Quando os italianos jogavam havia sempre uma enorme festa pelo país afora, muito especialmente na capital.
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O Outro Lado do Verão
Fiksi SejarahUma nova viagem, agora a Itália. Um novo campeonato do mundo de futebol. Um novo caderno e um novo diário. O ano é 1990. Desta vez estou sozinha, sem a companhia da minha tia, mas continuo com a desculpa do estudo da História para me manter focada e...