Recuperei o sono perdido.
Saltei da cama. Ainda de pijama corri até à sala e acendi a televisão para ver as notícias sobre o jogo da noite anterior entre a RFA e a Inglaterra para saber quem seria o adversário que a Argentina iria derrotar na final. Perante a aridez da programação televisiva lusa, de manhã ou eram desenhos animados para os mais novos ou um programa de variedades que entretinha velhotes, os meus ombros murcharam e desalentei-me. Esqueci-me de que não estava em Itália e que teria de esperar até à uma e meia da tarde para conhecer as novidades desportivas.
Vesti-me e fui sair. Estava habituada a uma certa liberdade e independência, e custava-me ficar em casa sem ter nada para fazer, sujeita aos pedidos da minha mãe para realizar tarefas domésticas que detestava. Tratava-se de uma atitude egoísta, mas considerava-me de férias e não me apetecia amarrar-me a obrigações entediantes, para além de considerar um desperdício gastar os meus últimos dias livres, antes do estágio que seria uma simulação de emprego, a brincar contrariada às donas de casa. Infelizmente, a minha mãe continuava a achar que o melhor futuro para uma mulher era casar com um homem que ganhasse um excelente salário.
Resolvi dar um passeio até à baixa. Mesmo correndo o risco de perder o telefonema com as indicações para regressar a Trigoria, fui espairecer, apanhar sol, ver montras de lojas. Ao passar por um quiosque reparei nos títulos dos jornais diários. Havia um que mencionava o mundial na primeira página e o jogo extraordinário e surpreendente de Nápoles entre argentinos e italianos. Comprei-o só para ler o que diziam os jornalistas portugueses, sempre muito sérios, sempre muito fleumáticos, sempre muito intransigentes. Conversei brevemente com o homem do quiosque. Confirmou-me que o jornal que eu escolhera também tinha um espaço que falava do jogo entre alemães e ingleses. Tinha ganhado a RFA, nos penáltis.
– A sério? Nos penáltis? – perguntei, genuinamente espantada.
Pelos vistos, os dois jogos das meias-finais tiveram resultados idênticos. Um empate a uma bola ao fim de noventa mais trinta minutos, uma série de grandes penalidades em que uma das equipas venceu por ter transformado quatro pontapés contra três do adversário. Assim, as duas finalistas que iriam disputar a taça no domingo tinham o mesmo peso nas pernas derivado de jogos muito longos. Teoricamente, a Argentina estava em vantagem, pois jogara um dia antes.
– Com que então... será a Alemanha outra vez... – murmurei pensativa. – Vai repetir-se a final do México. É irónico, assustador ou uma brincadeira dos deuses? Não se pode regressar ao lugar onde fomos felizes, costuma dizer-se. Uma vez o Jorge Valdano disse-me isso! Mas se acreditarmos muito, muito... a felicidade pode repetir-se. – Enchi os pulmões de ar e exclamei, recordando a canção oficial do mundial: – E vai repetir-se, sob o magnífico céu de um verão italiano!
O homem do quiosque olhava para mim como se eu tivesse um parafuso a menos. Paguei-lhe o periódico, ainda comprei uma caixa de pastilhas elásticas e continuei o meu caminho.
No jardim próximo, sentei-me no banco e abri o jornal. Segui diretamente para o jogo da Alemanha. Tinha acontecido em Turim. Fora muito intenso, muito bem disputado, era bastante elogiado. Quando a competição começara em junho, as casas das apostas não acreditavam na Alemanha, conferi numa nota de rodapé, e agora podia ser campeã. Também deixaram de acreditar na Argentina depois do desastroso jogo inaugural frente aos Camarões e os argentinos estavam na mesma final onde poderiam revalidar o título. O futebol, imprevisível e mágico, era realmente um desporto único!
Passei à notícia que realmente me interessava. O rescaldo do jogo entre a Itália e a Argentina. Li que o silêncio no San Paolo fora cúmplice de Maradona, que os italianos choraram rios de lágrimas, que a squadra azurra ressentiu-se por ter deixado Roma e ter jogado em Nápoles onde o ambiente estranho, potenciado pelas declarações de Diego, afetara os nervos dos jogadores. Tinha pena dos italianos, não o negava, mas quem tinha ganhado fora a Argentina e a minha compaixão esvaía-se rapidamente quando pensava na possibilidade fantástica de ver Diego elevar a taça de ouro da FIFA pela segunda vez.
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O Outro Lado do Verão
Ficción históricaUma nova viagem, agora a Itália. Um novo campeonato do mundo de futebol. Um novo caderno e um novo diário. O ano é 1990. Desta vez estou sozinha, sem a companhia da minha tia, mas continuo com a desculpa do estudo da História para me manter focada e...