7 de Julho de 1990 (Sábado)

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A imprensa estava mais descarada e insistente do que nunca. Assaltavam Trigoria com a sanha de uma matilha de cães raivosos que farejaram sangue, raspando e guinchando como ratazanas a disputar um pedaço bolorento de pão. Queriam fazer a reportagem sobre a seleção finalista, mas também queriam apanhar defeitos e pecados que lhes proporcionasse um texto sumarento e polémico que lhes rendesse muitas vendas e visibilidade. Diego continuava a ser perseguido implacavelmente, provocado para responder e dar-lhes as palavras que incendiariam o ambiente. Os demais, jogadores e técnicos, até a mulher da limpeza, eram chamados para esclarecerem sobre como se sentia Maradona. Felizmente, estavam todos cientes do seu papel e não caíam na armadilha. O jogo contra a Alemanha, por ser uma repetição do jogo da final do mundial no México, acabava por ser pacífico, sem arestas esquisitas e pendências irresolutas. Os argentinos tratavam a questão com muito desportivismo, diplomacia e contenção.

Eu, que podia passar relativamente ao lado daquele tumulto por não fazer parte do estágio de forma oficial, sentia-me também acossada e encurralada, possessa e irritada com a desfaçatez dos jornalistas que não olhavam a meios para conseguirem o seu furo jornalístico.

A palavra circo fez mais sentido do que nunca.

Ao aperceber-me da barafunda nos treinos, evitei o lugar e fui refugiar-me a ler um livro na sala de convívio que estava a ser limpa. A meio da manhã deu-me fome. Ao dirigir-me ao bar para pedir um sumo ou um bolo cruzei-me com Daniel Arcucci. Fiz-lhe uma cara feia e ele levantou os braços, a dizer que se rendia. Pedia-me paciência, ele não era como os outros, e eu percebi imediatamente que se estava a distanciar dos seus colegas mais inconvenientes. Naquela fase, porém, qualquer um que exibisse o cartão de jornalista era alguém detestável.

– Tinhas razão – disse-me.

– Tinha razão com o quê? – indaguei, arisca.

– Ui, Tina... Dá-me lá um desconto. Não estou a falar contigo como jornalista.

– O que queres?

– Também vim lanchar. Posso acompanhar-te? E, por favor, suaviza os teus modos. Não sou o inimigo, não sou daqueles que querem crucificar Maradona.

Cedi. De qualquer modo, não o conseguiria afastar e ficaria esquisito se nos sentássemos cada um na sua mesa num espaço vazio. Pedi uma limonada, ele pediu um cappuccino. Desisti de comer alguma coisa, ficara enjoada só de o ver. Era uma reação exagerada, admitia-o, mas pareceu-me ser prudente evitar encontros desnecessariamente amistosos naquela fase crucial da campanha da seleção argentina no mundial. Estávamos muito perto do fim e qualquer passo em falso mancharia tudo o que já acontecera.

– Em abril estivemos juntos por causa do segundo scudetto do Napoli. Lembras-te? – começou ele, após um pequeno gole na sua chávena.

Pousei o copo gelado do qual bebera uma porção generosa.

– Sim, lembro-me. Claro que me lembro.

– E nessa altura disseste-me que a Argentina iria ser campeã do mundo.

– Disse isso?

– Sim, disseste. Tinhas razão. Cá estamos nós, na véspera do jogo da final. Quando ninguém acreditava, tu acreditaste.

– Tenho ouvido muito essa palavra recentemente. Acreditar. – Inclinei-me sobre a mesa. – Eu acredito que a Argentina vai derrotar outra vez a Alemanha, como há quatro anos. A Argentina vai ser campeã amanhã e vai levar a terceira taça de ouro da FIFA para casa, depois de 1978 e 1986. Acredito tanto ou mais como acreditava em abril. E tu, Daniel?

– Sou um jornalista e o meu dever é ser isento.

– Tu não és isento, Daniel – acusei. – Tu és argentino e torces pela Argentina.

O Outro Lado do VerãoOnde histórias criam vida. Descubra agora