Ao pequeno-almoço fui para o restaurante e sentei-me naquela que era a minha mesa habitual. Estavam os seus ocupantes de sempre – Diego, Ruggeri, Olarticoechea e Caniggia. Este último mostrava-se muito animado e falava pelos sete cotovelos, contando sobre o jogo dos Camarões, sobre notícias que vinham de casa, sobre o mercado de transferências de jogadores, sobre clubes, sobre campeonatos, sobre o que esperava das meias-finais agora que a competição se reduzia às quatro melhores seleções que iriam disputar os lugares do pódio. Eu não escutava metade.
Aliás, todo o ambiente era normal. Evitei procurar por Burruchaga com o olhar – havia aquela tentação de espreitá-lo para saber se adotara a mesma atitude do que eu, afastar-se para calar os boatos e as piadinhas – e, passada a apreensão inicial, quando cruzei a enorme porta aberta de par em par, reencaixei-me na rotina que adotara para mim naquele lugar onde eu não pertencia, nem deveria estar.
Era intervalo no mundial, o penúltimo. Seria apenas de um dia. As meias-finais iriam acontecer na terça e na quarta, à noite, num horário diferente – os jogos começavam às oito. O jogo para o terceiro e quarto lugar e o jogo da final também iriam ser a essa hora, para que a festa a seguir não acontecesse muito tarde.
Eu começava a ficar ansiosa, mas procurava disfarçar para não perturbar a aparente tranquilidade dos jogadores. Talvez a verborreia inédita de Caniggia fosse uma maneira que ele tinha de controlar a sua ansiedade.
A pressão sobre o estágio era, contudo, palpável, derivada das declarações de Diego aos jornalistas no sábado. A imprensa estava ao rubro, para não dizer completamente louca, e tentava a todo o custo obter mais declarações polémicas do capitão argentino. A situação estava incrivelmente complicada, porque Diego colocara o dedo na ferida e dissera que só agora, e porque precisavam do apoio do povo local, é que o resto da Itália se lembrava que Nápoles também era cidade italiana. Obrigado por Bilardo a retratar-se – parcialmente, diga-se –, Diego corrigira o que dissera e, num tom mais calmo, tentando não soar zombeteiro, afirmara que obviamente sabia que Nápoles pertencia a Itália, mas que esperava ser melhor tratado aí do que foi em Milão, Turim e Florença. Em suma, ele confiava nos napolitanos para demonstrarem o seu respeito à Argentina. Respeito não significava apoio. Todos sabiam que, no fundo, Diego quisera dizer que se os napolitanos sentissem, por causa da sua História, que deviam apoiar a Argentina ao invés de a Itália, deveriam fazê-lo livremente, sem que isso acabasse por ferir suscetibilidades e resultar em penalizações vingativas mais tarde. Os Tigres Azuis, todavia, uma das claques mais radicais do Napoli que integrava elementos violentos dos ultras, já tinha feito o anúncio de que iriam aplaudir e apoiar Maradona no jogo de terça. Se isso significava apoiar também a Argentina, logo se veria.
De vez em quando, observava Diego pelo canto do olho e notava-o igual a todos os outros dias. Se estava incomodado com o burburinho que as suas palavras causaram – independentemente do que pudesse dizer haveria sempre de provocar indignação, revolução ou escândalo – não transparecia. Eu sabia, contudo, que tudo o que extravasava o âmbito restrito do futebol irritavam-no, enfastiavam-no e melindravam-no. Acrescentava-se a lesão do tornozelo e era notório que Diego não estava a ter um mundial maravilhoso como o do México.
Ele ria-se do que Caniggia dizia e era como se a alegria de outros tempos estivesse presente no seu espírito. Dedicava-lhe toda a sua atenção, incentivava-o a elaborar esta ou aquela observação, contribuindo ativamente para que o outro não se calasse. E Caniggia prosseguia alegremente no seu monólogo que misturava um sem fim de assuntos. Ruggeri comia como se nada fosse, apenas Olarticoechea franzia ligeiramente a sobrancelha, embora me parecesse que escutava parcialmente as historietas do companheiro. Deu-me um toque no braço e disse-me que hoje podia voltar a usar a máquina de filmar. Estaria ocupado o dia inteiro, que eu não me acanhasse. Retorqui-lhe que iria aproveitar para estudar matemática. O exame seria dali a dois dias e queria ter a certeza de estar bem preparada.
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O Outro Lado do Verão
Ficción históricaUma nova viagem, agora a Itália. Um novo campeonato do mundo de futebol. Um novo caderno e um novo diário. O ano é 1990. Desta vez estou sozinha, sem a companhia da minha tia, mas continuo com a desculpa do estudo da História para me manter focada e...