11 de Junho de 1990 (Segunda-Feira)

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Acompanhei os treinos matutinos daquele dia. Fui para a arquibancada e misturei-me com os adeptos normais. Sentei-me ligeiramente afastada, mas suficientemente perto para que me confundissem com mais uma admiradora de Maradona, de Caniggia, de Ruggeri, de Dezotti, de Burruchaga, de Basualdo. Os novos nomes misturavam-se com os antigos. Escolhi um grupo de raparigas particularmente ruidoso que gritava e chamava pelos jogadores sempre que eles passavam, a correr, junto ao gradeamento que dividia o campo da estrutura que acolhia o público.

Levei o meu caderno, um calhamaço académico sobre o império romano e o panfleto do dia anterior. No fim daquele dia, que esperava que fosse menos agitado, tinha de telefonar para a tia Anita. Ontem falhara a obrigatoriedade de lhe ligar todos os dias, como tinha combinado com ela e com os meus pais. Teria de inventar uma desculpa qualquer credível que não lançasse suspeitas de que me preparava para desdenhar das minhas responsabilidades. A minha reputação deveria manter-se imaculada.

Ao abrir o panfleto tomei a decisão de estudar a coluna de Trajano. Apareceu-me como que realçada na folha, no meio das imagens, das caixas de texto e das cores fortes. Achei que era um sinal que não devia contrariar.

Primeiro, terminei de passar os apontamentos para o caderno. De seguida, deixei uma folha de intervalo, a servir de separador, e criei a secção sobre o monumento, escrevendo o título com letras maiúsculas que realcei com várias passagens da esferográfica. Isolei a informação que conseguira através do panfleto e abri o livro à procura de referências que iria acrescentar ao texto inicial.

Entretanto, no campo, os jogadores argentinos faziam os seus exercícios com e sem bola, orientados pelos adjuntos de Bilardo, muito aclamados pelas pessoas que foram autorizadas a assistir à sessão naquela manhã. Eu não me importava de me distrair entre o que acontecia no relvado e o livro de História, pois tinha outros dias para beneficiar de tal espetáculo. Reparei, pela primeira vez, na presença de Fernando Signorini, o preparador físico de Diego, e em Daniel Arcucci, o jornalista da revista El Grafico, que fazia o seu trabalho de registo e comentário junto a outros colegas de profissão.

As camisolas da Argentina tinham uma nova marca desportiva. A francesa Le Coq Sportif fora substituída pela alemã Adidas. Provavelmente teria apresentado uma proposta mais interessante. Diego continuava a calçar as suas habituais chuteiras Puma e diluía-se entre os seus companheiros. Pretendia diluir-se, fazer o que eles faziam, obedecer às indicações sem nenhum destaque. Porém, as pessoas não o deixavam camuflar-se. Estavam constantemente a chamá-lo, a incentivá-lo e a felicitá-lo.

Havia outras diferenças no conjunto, para além das marcas, dos tecidos, das atitudes, que evidenciavam como o México, de há quatro anos, era um decidido passado. Analisando a lista dos convocados, que fizera brevemente no dia anterior, cerca de metade dos jogadores alinhavam por equipas estrangeiras. Só o campeonato italiano fornecera seis dos onze imigrantes! Diego vinha do Napoli, Sensini e Balbo jogavam na Udinese, Caniggia no Atalanta, Dezotti no Cremonese e, por fim, Troglio no Lazio de Roma. Para além destes, Basualdo era jogador do Estugarda alemão, Pumpido e Ruggeri competiam na liga espanhola, embora o defesa estivesse de saída do Real Madrid e fosse regressar em breve à Argentina, e Jorge Luis Burruchaga continuava no Nantes, em França. Era sinal da vitalidade do futebol argentino que despertava o interesse dos ricos clubes europeus, onde se jogavam os campeonatos mais difíceis e competitivos do mundo. Diego, uma vez, comentara isso mesmo – os grandes jogadores são reconhecidos pela cobiça dos clubes e pelos contratos milionários geridos pelos empresários. Na altura, não percebi se estava orgulhoso, se estava a tecer uma crítica dura eivada de um sarcasmo que lhe era muito próprio.

Apreciava esses aspetos mais pragmáticos do futebol. Adorava criar tabelas, organizar elementos e compilar números que podia apresentar como a estatística que seria comparável e daria para ser utilizada numa apresentação profissional sobre o tema. Tinha, portanto, numa parte do meu caderno, esses dados prosaicos sobre a Argentina, para começar, sobre o campeonato do mundo, para completar, onde também apontava os resultados dos jogos que já tinham acontecido. Apercebia-me que, aos poucos, a veia de gestora que me fora incutida durante aqueles últimos três anos do curso do secundário sobressaía naturalmente. Observava a minha postura criteriosa com algum espanto, mas também não a arredava totalmente pois pretendia seguir a mesma área na universidade.

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