6 de Julho de 1990 (Sexta-Feira)

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Preguicei muito na cama, mas decidi-me finalmente a levantar quando já passava das onze e a minha mãe me ordenava, nervosa com a minha malandrice, que fosse às compras. Era preciso pão, legumes, arroz e outras mercearias. Não estava a dormir. Resolvera simplesmente fundir-me com os lençóis e imaginar que me tornava invisível, que subitamente tinha sido transportada para Itália. Analisava, em simultâneo, como funcionava a casa na minha ausência.

Num primeiro vislumbre, compreendi que não fazia falta nenhuma. O meu pai saía para trabalhar, a minha mãe empenhava-se nas suas arrumações e passatempos, o meu irmão brincava. Se me mantivesse muito calada, muito quieta, quase sem pestanejar e respirar, percebia que o meu espaço não sofria qualquer alteração, quer o preenchesse ou o esvaziasse. Por um lado, era libertador perceber que não era condicionada por uma vigilância sufocante. Por outro, era lamentável que me dessem tão pouca importância dentro da minha família.

Esses pensamentos surgiam com toda esta maldade fruto da minha melancolia, do meu desnorte, da minha inquietação. Era sexta-feira e eu continuava em Portugal.

Fui ao minimercado perto de casa, comprei tudo o que estava na lista que a minha mãe me dera. Os sacos estavam demasiado pesados, ou teria ido dar uma volta maior ao quarteirão, só para resmungar como uma velha doida contra a minha pouca sorte.

Mas por que motivo Diego não me tinha telefonado ainda?

De hoje não passava. Se ele não me ligasse, ligaria eu. O meu orgulho que fosse para as urtigas!

A minha mãe mandou-me lavar a loiça no fim do almoço. Olhei-a de esguelha. Quis saber que bicho lhe tinha mordido para me estar a pedir tanta coisa. Ela não compreendeu a minha indignação. Se estava em casa tinha de participar na gestão doméstica e sem refilar, que ela fazia tudo sozinha e raramente refilava. Não era bem verdade. A minha mãe sempre que podia queixava-se ao meu pai, ela é que julgava que eu não ouvia o seu azedume contra os meus supostos privilégios. Nessas ocasiões, o meu pai defendia-me. Eu estudava e tinha de me concentrar na escola, não podia ocupar-me com outras questões, apesar de concordar que eu teria de ajudar mais em casa. A minha mãe, apontando a pilha de loiça suja, utilizou esse argumento. Em tempos de escola, deixava-me descansada. Fora da escola estava obrigada a ajudá-la. Não refilei mais e pus as mãos à obra. De resto, gostava de lavar a loiça no verão. Era uma atividade fresca porque envolvia água. Dispensava as luvas que a minha mãe me mostrava, para não estragar as unhas. Eu olhava para as minhas mãos e considerava que tinhas as unhas bonitas, que de vez em quando cuidava com uma camada ligeira de verniz transparente.

Na televisão ligada por cima de mim, o aparelho apoiava-se num suporte alto pregado à parede, davam as últimas notícias que fechavam o telejornal da uma. Olhei por cima do ombro quando se mencionou o mundial. Estranhei, pois as notícias desportivas já tinham sido encerradas. Falava-se no campeonato do mundo, mas como principal motivo para o acontecimento extraordinário que iria juntar em concerto os três maiores tenores da atualidade – Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras. Seriam acompanhados por uma orquestra de duzentos elementos dirigida pelo maestro Zubin Mehta no cenário soberbo das ruínas romanas das termas de Caracala, em Roma. Fechei a torneira e voltei-me para o ecrã, maravilhada. Tudo naquela notícia me cativou. Adorava música clássica e ópera, apreciava a voz romântica de Pavarotti, encantava-me com tudo o que se relacionava com a Antiga Roma e romanos, o espetáculo aconteceria na véspera do jogo da final. Amanhã, portanto.

Molhava o chão, apercebi-me, ao segurar no esfregão encharcado na mão direita enquanto olhava embasbacada para a televisão. O pivô despediu-se a desejar uma boa tarde a todos os telespetadores e o telejornal terminou.

Um grito sobressaltou-me.

– Tina! Telefone!

Pousei o esfregão a borbulhar de espuma na bancada. Limpei apressadamente as mãos no avental. Entrei enfastiada na sala, a arrastar os pés. O meu pai tinha o auscultador na mão que segurava com força, uma perna a tremelicar de nervoso.

O Outro Lado do VerãoOnde histórias criam vida. Descubra agora