𝖨𝖬𝖮𝖱𝖳𝖠𝖨𝖲 𝖤 𝖥𝖠𝖳𝖠𝖨𝖲.

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Comunidade Calabar, Salvador, outubro de 2008.

Era cinco da tarde quando eu saía da escola, subia o morro com livros e livros em uma mochila rasgada e rezava para que a polícia não aparecesse

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Era cinco da tarde quando eu saía da escola, subia o morro com livros e livros em uma mochila rasgada e rezava para que a polícia não aparecesse. Era cinco da tarde que eu percebia o quanto eu era sortuda por poder estudar, mesmo que sejam horas esperando um ônibus e em tempo integral. Era cinco da tarde que eu estava com minha irmã, debaixo de um sol normalmente quente e nunca nos separavamos, para que não fôssemos vítimas de violência.

Conversávamos entre si, como se em nossa volta não tivessem famílias desmoronando, mas ao mesmo tempo, se dedicando por uma comunidade melhor e pacífica. Estávamos acostumadas, mas nunca iriamos nos acostumar com todas as vezes que ouvíamos tiros, mortes vidradas em nossos olhos amedrontados.

A gente não se cansa de soltar pipa pela quebrada, a gente não se cansa de pegar latas de tinta e pixar muros, a gente não se cansa de querer um direcionamento melhor, e não continuar morando aqui. Não que seja ruim, até porque meus amigos são os melhores que eu poderia ter, mas todo o Brasil vêem as pessoas que moram em comunidades assim, armados favelados que não querem nada com o próprio país.

Esse é um dos dramas de uma pessoa negra da periferia da Bahia. Nossa esperança é uma estrela, longe e meio ofuscada.

Hoje eu tenho catorze anos e odeio matemática, entretanto, odeio mais ser rebaixada por ser uma menina de pele escura e cabelo crespo, que gosta de arte de rua e muito rap dos Racionais.

― Bora bater um baba? - meu irmão perguntou assim que chegamos em casa, com um sorriso e uma bola de futebol murcha em suas mãos.

Eu respirei fundo, dando meu melhor sorriso para a criança de oito anos.

― Só vou colocar uma roupa e aí vai eu, sua irmã e você pra quadra lá em baixo.

― Mas os caras maus não estão lá? - sua voz saiu trêmula.

― Eles saíram, não se preocupe.

Seu rosto voltou a se iluminar com um sorriso, deu um beijo em minha testa e saiu correndo pela porta, não esperando eu trocar de roupa para poder jogar com ele.

― Iandara, temo que levar o Kauê pra quadra, ele saiu correndo!

― Mermã, tamo logo atrás! - ela falou de volta, saindo junto a mim da casa e correndo para ficar ao lado de Kauê.

Eu amava meus irmãos acima de tudo, meus pais também, mesmo que não sejam tão presentes por sempre estarem trabalhando. Aos poucos, quando íamos descendo, escutamos barulhos de sirenes. Escutamos barulhos de coturnos batendo no chão com força.

E as últimas coisas que eu vi, foram como flashs obscuros em minha memória.

E as últimas coisas que eu vi, foram como flashs obscuros em minha memória

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Rio de Janeiro, outubro de 2018.

A exatos dez anos meu irmão morria por uma bala perdida, a exatos dez anos eu chorei noites e noites achando que era minha culpa. A exatos dez anos eu nunca fui mais a mesma. Com quatorze anos, eu deixei de pensar que minha matéria mais odiada era matemática para pensar em como eu ia processar a morte de Kauê.

Fé que ele tá em um lugar melhor, com os muleque de oito anos que tinham tantos sonhos quanto ele.

E todos esses sonhos estavam aqui, em minhas mãos, de frente para um muro no Rio de Janeiro e prestes a se tornarem arte.

Eu balançava as latas de tinta de diversas cores e traçava traços, linhas de pensamentos, frases transformadas em um desenho elaborado desde do dia em que seu sangue estava em minhas palmas.

As vezes eu tirava um tempo para amarrar minhas tranças, as vezes colocava um boné pra tampar esse sol de esculhambar. Atualmente, tenho vinte e quatro anos e sou grafiteira e artista de rua. Minha maior paixão, minha vida é a minha arte, são meus sentimentos ali, e o mundo inteiro está sabendo quem sou eu.

Alguns deles estão em Londres, outros espalhados pelo Brasil, África do Sul, Estados Unidos, Chile, Polônia. Eu queria chorar de felicidade apenas de imaginar onde eu pude chegar em cinco anos. A brasileira que subiu, grafitou sua assinatura pelo mundo, e nunca esqueceu de onde elas começaram.

A luva que ficava em minha mão começou a abafar, então a retirei e voltei ao trabalho, detalhes ali e aqui, era um muro alto e largo, demoraria mais ou menos dois dias para acabar se eu me esforçasse. A equipe da prefeitura me ofereceu um balancim para quando eu chegasse ao final, e eu aceitei de bom grado, é bem melhor do que uma escada veia catinguenta.

Me afastando um pouco, sorri ao ver aquele trabalho bem construído. Era uma grande crítica social a violência nas favelas, e o Rio de Janeiro não foi escolhido por acaso, já que era o lugar que meu irmão queria morar quando virasse jogador de futebol pelo Vasco da Gama, o seu time do coração. Dei uma risada me recordando do dia em que ele disse isso para nosso pai flamenguista, e quase apanhou.

As boas memórias não haviam desaparecido afinal. Eu te amo irmão, fica com Deus.

Rio de Janeiro, outubro de 2018

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Rio de Janeiro, outubro de 2018.

Eu estava surtando completamente. Isso tudo por culpa de uma mensagem da minha assessora, empresária e melhor amiga, Agatha. Eu mandava um áudio gritando com a boca enfiada no travesseiro, pulando pelo quarto de hotel e sorrindo de orelha a orelha animadamente.

― Isso não é possível!

Acho que eu explodiria de felicidade se eu pudesse. Essa foi uma das melhores propostas que eu já recebi na minha vida.

Talvez a melhor, mas que infelizmente, só aconteceria em novembro.

Era um tanto quanto impossível de acreditar.

Lewis Hamilton, pentacampeão de fórmula um, acabou de me pedir para que em sua chegada no Brasil em novembro, eu desenhasse o seu capacete. Eu desenhasse tudo o que ficaria por fora daquilo que iria o proteger durante a corrida, desenhasse inspirações brasileiras, mas em formato de grafite. O que mais me impactou é, eu vou conhecer ele. Eu vou falar com ele, eu vou mostrar meu trabalho. Abrir caminhos em esportes internacionais é maravilhoso.

Agatha não teve que adivinhar ou esperar muito para que eu aceitasse. Ademais, quem não aceitaria?

As memórias tristes e os dias que passei chorando me transformaram em quem eu sou hoje. Me fizeram perceber o horizonte de ideias e de vida que há bem a minha frente. 

Me fizeram perceber que, mesmo que aos poucos, estou sendo a melhor versão de mim mesma. A Uyara de quatorze anos se orgulharia de mim, se orgulharia de ter saído da pressão posta por minha família e sendo feliz com aquilo que eu mais amo.

Arte.

1111 palavras.

BUTTERFLY EFFECT ⸻ LEWIS HAMILTON Onde histórias criam vida. Descubra agora