Capítulo dois

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- Você ouviu as notícias?

Dei um aperto extra nos cadarços da minha bota no vestiário antes do nó nas pontas, com força suficiente para sobreviver à próxima hora.

Não precisava me virar para saber que havia duas adolescentes do outro lado do banco à minha frente em seus armários. Elas ficavam lá todas as manhãs, geralmente falando merda. Elas poderiam passar mais tempo na pista se não falassem tanto, mas não importava. Não era eu quem pagava suas mensalidades. Se tivessem minha mãe em sua cola, mudariam de hábito rapidamente.

- Minha mãe me disse ontem à noite - revelou a mais alta das duas, enquanto ficava de pé.

Levantei-me e mantive minha atenção à frente, revirando os ombros, mesmo que já tivesse passado uma hora me aquecendo e alongando.

Talvez não estivesse patinando seis ou sete horas por dia como costumava fazer ― quando alongar por pelo menos uma hora era absolutamente necessário ―, mas os velhos hábitos são difíceis de perder. E sofrer por dias ou semanas com um músculo distendido não valia a hora que eu economizaria ao pular o aquecimento.

- Ela me contou que ouviu alguém falar que acha que a alfa está se aposentando porque teve muitos problemas com seus parceiros.

Aquilo, sim, chamava a minha atenção.

Ela. Aposentando-se. Tendo problemas.

Fora um milagre que eu tivesse conseguido me formar no ensino médio sem reprovações, mas até eu sabia de quem elas estavam falando. Lauren. Quem diabos mais? Além de alguns alfas mais novos, e de Paul, que passou três anos treinando comigo no Complexo Jauregui de Patinação Artística no Gelo, não havia outro alfa sobre o qual alguém falasse. Havia dois alfas adolescentes, mas nenhum deles tinha o potencial de ir muito longe, se alguém se importasse com a minha opinião. Não que se importassem.

- Talvez, quando ela se aposentar, vire treinadora - disse uma das ômegas. - Eu não me importaria se ela gritasse comigo o dia todo.

Eu quase ri. Lauren se aposentando? De jeito nenhum. Não havia chance de isso acontecer aos 29 anos, especialmente quando ela ainda estava arrebentando. Meses atrás, ganhara um campeonato nacional.E, um mês antes disso, ficou em segundo lugar na final do Grande Prêmio.

Por que diabos eu estava prestando atenção, afinal?

Eu não ligava para o que ela fazia. A vida dela era da conta dela.

Todos nós tínhamos que nos aposentar algum dia. E, quanto menos eu tivesse que olhar para o rosto irritante dela, melhor.

Decidindo que não precisava me distrair no início das poucas duas horas que eu tinha no dia para praticar ― principalmente por uma distração como Lauren, logo ela! ―, saí do vestiário, deixando as duas adolescentes lá para perderem seu tempo fofocando. Mesmo sendo cedo, havia seis pessoas na pista, como sempre. Eu não chegava mais tão cedo quanto antes ― não havia sentido ―, mas eram todas as mesmas caras que eu via há anos.

Algumas mais do que outras.

Galina já estava sentada em uma das arquibancadas do lado de fora da pista com sua garrafa térmica de café, e eu sabia por experiência própria que a bebida era tão forte que parecia e tinha gosto de piche.

Com seu lenço vermelho favorito enrolado no pescoço e nas orelhas, ela usava um suéter que eu tinha visto pelo menos cem vezes no passado e o que parecia um xale por cima. Juro que ela começou a adicionar outra peça de roupa ao que vestia a cada ano. Quando ela me tirou das aulas quase quatorze anos atrás, usava apenas uma camisa de mangas compridas e um xale; agora provavelmente teria morrido de frio.

De Jauregui, Com AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora