XXX. A Voz da Morte

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Kieran ainda não sabia como reagir, senão só apreciar a bela visão diante de si. Idris tinha mantido a postura curvada por uns breves instantes, até o outro homem se aproximar e estender a mão para apoiá-la no ombro dele, com um sorriso mais notável dessa vez.

― Não achei que ia demorar tanto para voltar.

Idris finalmente voltou a erguer o tronco e encarou o homem a sua frente como se tivessem voltado subitamente ao mesmo nível.

― Fala como se dez anos fossem muito tempo para você. ― Idris respondeu, e o modo como falava era como se ele nunca tivesse se curvado para o outro.

― Dependendo do que fazemos, um ano pode ser uma eternidade, cem anos podem ser um piscar de olhos. Eu senti falta de nossas conversas. ― o moreno tirou a mão do ombro de Idris, unindo as pontas dos dedos diante do corpo e voltou o olhar incisivo para Kieran. ― Trouxe uma pessoa interessante dessa vez. Eu achei que você não andasse escoltado.

― Eu não ando. ― respondeu Idris, prontamente, voltando-se para Kieran. ― Este é...

― Kieran de Brymoor, Sua Santidade. ― o ladrão fez questão de completar a apresentação num gracejo, fazendo uma reverência breve que beirava o desrespeito, considerando que até Idris tinha se curvado apropriadamente para o homem. ― Mais conhecido como Mago da Noite, ou Manto dos Sídhe, ou—

― Ladrão dos 13 corações. ― o complemento já não mais tão inesperado veio de Akshay, com um sorriso ainda mais evidente, e se Kieran pudesse arriscar, parecia muito entretido.

― Mas isso já chegou até aqui?!

― Muitas coisas chegam aqui, como pode ver, as fontes de informações são inesgotáveis. ― o homem fez um gesto para indicar a multidão de súditos que ainda estavam curvados em sua presença. ― Então é verdade que você roubou o coração dessa criança?

― Eu posso garantir que não tenho um coração dentro de um baú mágico, se é essa a pergunta. ― Kieran respondeu, dando de ombros ao olhar de lado para Idris. ― As tranças e a coroa, por outro lado, já são minhas.

― Arrumou uma companhia muito espirituosa, criança. ― Akshay se voltou para Idris, com o mesmo sorriso. ― Eu gostei dele.

― Eu vim discutir assuntos políticos, Akshay. ― o comentário de Idris quase soou num tom de quem estava querendo mudar logo de assunto, e Kieran continuou acompanhando a conversa, interessado. ― A princesa Lisellot de Na'im foi em missão diplomática a Arcallis para conseguir reaver o território dos Manas, dadas as circunstâncias atuais do reino dela, nós chegamos a um acordo e vim acertar os detalhes com você.

― Pessoalmente? ― a descrença no tom de Akshay era óbvia, mas ainda havia o mesmo quê de quem estava se divertindo com a conversa. ― Esperava uma visita de Radulf, não sua.

― Sabe que não é o meu único propósito vindo aqui.

― Sei? ― daquela vez, o olhar se estreitou um pouco, de um modo talvez desafiador, mas a expressão toda do outro se suavizou de uma vez. ― Demorou dez anos, mas estou feliz que tenha voltado. Me acompanhem, se ficarmos aqui fora, os visitantes não vão terminar suas preces.

Akshay não entrou em detalhes sobre a descrença dele com o propósito da visita de Idris, mas só de avaliar a situação superficialmente e olhar de Idris para o outro, Kieran imaginou que o motivo da ausência tinha que estar relacionado à falecida rainha. Eles começaram a subir os lances restantes de escadaria e com um breve aceno de mão, Akshay dispensou a companhia do servo que antes guiava o caminho do regente.

Kieran ainda deu uma boa olhada ao redor depois que eles terminaram de subir mais um lance de escadas, e só quando estavam longe o suficiente foi que as pessoas ao redor pareceram sair do estado de inércia e adoração diante da presença de Akshay. Imortal ou não, aquele era um efeito que não se via todo dia, nem mesmo o pronunciamento oficial de Idris na capital tinha causado aquele tipo de reação, então Kieran não podia deixar de julgá-la impressionante.

No caminho até entrarem no prédio principal do templo, cheio de paredes e tetos altos, salões amplos e iluminados por luz natural, Idris e Akshay começaram a trocar algumas palavras sobre assuntos políticos e econômicos, pelo que Kieran captou das primeiras perguntas do regente sobre como estavam as visitas ao templo, como eram os caminhos até lá, se eles estavam recebendo o suficiente para se manter, entre outros detalhes que foram prontamente respondidos pelo imortal com informações apenas necessárias.

Não demorou muito até Kieran divagar da conversa técnica dos dois e começar a prestar mais atenção no cenário ao redor. A construção ampla lembrava muito os prédios majestosos de Arcallis, embora com metade da delicadeza e elegância das peças que pareciam ter sido esculpidas em pedra. Embora houvesse alguns claros detalhes entalhados em metais preciosos, não era nada de tanto destaque quanto os palácios de Arcallis, ou sequer comparados às roupas intrincadas de Akshay. Havia uma beleza natural interessante no prédio e onde ele esperava que houvesse estruturas de metal, havia troncos de árvores, plantas trepadeiras, pássaros e borboletas voando para dentro e fora do prédio e cruzando os tetos altos.

Todo o cenário era de certa forma calmante, e diferente dos pátios e jardins externos, a quantidade de pessoas ali era muito reduzida, todos usando as roupas simples e em tons verdes dos servos do templo. Eles também não pareciam tão preocupados com a presença de Akshay, apenas dirigiam breves reverências ao homem quando ele passava próximo. Logo Kieran notou que não havia mais ninguém com roupas tão elegantes quanto as de Akshay, ou alguém que estivesse sequer numa postura que denunciasse que estavam no mesmo nível de hierarquia.

Mas talvez o ambiente tranquilo do templo tivesse deixado os instintos ladinos de Kieran um pouco dormentes, porque quando ele notou uma aproximação rápida, já era tarde demais e ele só se virou no susto para tentar se defender de um possível ataque. O ataque não foi em sua direção, o que talvez fosse ainda mais preocupante, porque foi na direção de Idris. No meio da conversa com Akshay, o regente também pareceu ser pego desprevenido, embora aquilo não lhe afetasse em nada.

A sensação que Kieran teve foi de uma onda de energia perpassando todo o seu corpo por estar perto demais do regente. Idris só virou o rosto para o lado e no momento seguinte, ouviu-se o som de um baque surdo, acompanhado do barulho estridente do metal tintilando contra o chão de pedra e o farfalhar intenso das asas dos pássaros assustados que voaram de seus ninhos para fugir do som.

― Mas o quê...?

Kieran piscou algumas vezes para tentar fazer sentido da situação, quando ele olhou na mesma direção em que Idris e Akshay olhavam, logo avistou um longo rastro de sangue que cobria o chão, uma espada caída ao lado, e um corpo de um rapaz que não parecia ter nem seus quinze anos de idade, totalmente dilacerado por cortes tão precisos que não teriam sido feitos por uma mão humana.

Ele demorou alguns instantes para processar todo o cenário inusitado e levou uma mão para cobrir os lábios diante da visão desagradável. O rapaz não tinha sequer idade suficiente para segurar uma arma e tinha atentado contra a vida de Idris daquele jeito? Será que a ilusão de estar dentro de um templo religioso o tinha dado esperanças vãs? Kieran ficou tão imerso na cena a sua frente que ele deixou passar o fato de que Idris e Akshay encaravam o corpo do jovem com expressões totalmente inabaladas. Os demais servos que estavam ao redor e tinham presenciado a cena, por outro lado, tiveram reações parecidas com a do ladrão: entre surpresa, desviar o olhar e se sentir desconfortáveis com a imagem de uma criança morta pela magia do Anjo da Morte.

― Eu apreciaria muito se você parasse de me receber desse jeito, Harel.

A voz de Idris quebrou a tensão do momento e despertou a curiosidade e surpresa de Kieran. Ele piscou algumas vezes, mas logo confirmou que o regente estava mesmo olhando para o rapaz morto pela sua magia a alguns passos de distância.

― Espere... o quê? Com quem você está falando, Idr—

― Eu ainda vou conseguir ultrapassar essa sua magia, Taika. E você não aparece há dez anos, eu tenho que descontar.

Kieran talvez estivesse ficando louco. Talvez o templo fosse na verdade cercado de plantas alucinógenas que tivessem afetado o seu discernimento sem que ele percebesse, mas ele teve certeza de que a voz tinha vindo do corpo. Ele engoliu em seco como se tivesse visto um fantasma, e aquela suposição só se confirmou quando o rapaz dilacerado se sentou, a despeito do corte assombroso que tinha no rosto e no peito.

― Puta que pariu! O morto falou!

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O Ladrão dos 13 Corações [Parte II]Onde histórias criam vida. Descubra agora