Passado.

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O café passou tranquilo, sem muitas conversas entre as três mulheres. Verônica tentava controlar a ansiedade, Anita tentava pensar em coisas boas do passado; quase pondo um lacinho rosa num monte de espinhos, Júlia tentava fazer a alma voltar ao corpo.

Anita comeu a quantidade que comia normalmente, Verônica se forçava a comer algo para não acabar passando mal de fraqueza, Júlia tomou seu café como de costume e apenas isso. Anita e Verônica continuaram sentadas, a mais nova levantou para levar as louças sujas.

As três tentavam pensar em como começar, mesmo não sendo do tipo que se intimida facil, Verônica podia sentir a tensão das paredes em seus ombros.
Júlia esperava pacientemente acabar a musica de seu fone, sem muitas preocupações. Anita deu graças a Deus quando recebeu uma chamada de Carvana. Atendendo o celular depois do segundo toque, Anita diz.

-Bom dia, tudo certo?- segundos se passaram, e a mais nova estava de volta.

-Ah ok, sem problemas. Ja estou a caminho.- a essa altura na cara de Verônica so tinha um enorme ponto de interrogação.

-Deixa eu adivinhar, o caquético quer dar uma geral nas coisas da festa e você vai ter que assumir?!- Júlia fala com desdém, retirando os fones por completo.

-Exatamente isso, acho impressionante a lerdeza desses homens, olha sinceramente é uma palhaçada- Anita declara. Logo olhando seu celular para verificar as horas.
-Ja vou, são quase 9. Vocês se entendem ai- Anita levanta e vai em direção a sala.

-Perai porra, que se resolvam oque. Eu vou ter mesmo que explicar tudo sozinha para ela?!- Júlia seguia Anita, ja mostrando sinais de irritação.

-Eu ainda tô ouvindo, vocês tão achando oque? Eu dormi em um lugar totalmente desconhecido com criminosas, depois de descobrir que querem me matar. Calma ai vocês, que porra ta fazendo Anita?- Verônica falava apressada, tentando acompanhar os passos das outras duas.

-Vou trabalhar. Bisous je t'aime, mon ancre.- Anita deposita um beijo castro na testa da mais nova.

-Je t'aime espèce de canaille- A cacheada retruca, vendo a loira saindo pela porta fora.

-Que showzinho é esse? São Paulo virou Paris?- Verônica pergunta.
Depois de um longo suspiro ja caminhando ao sofá, a cacheada responde.

-Vou explicar do começo. Eu entrei nisso bem antes de conhecer o Matias, no Rio de Janeiro tem duas realidades. Ou você mora na zona sul e tem dinheiro por ser famoso, ou seja la qualquer motivo. Ou você é um pobre fudido, que mora em favela, ou só mora perto de uma mas não tem nenhum sentavo para sair.-
Verônica ouvia atenta, ja a mais alta falava com pesar enquanto tentava com afinco procurar uma posição menos desconfortável.

-E uma coisa que não contam nas novelas, é que se você não for pro crime, você não tem meios mais "fáceis" de arrumar dinheiro. E la em casa tinha muita falta de dinheiro. Nos dias difíceis, eu não tinha oque comer, muitas vezes oque me levantou foram filmes; musica; series; livros; futebol.- a cacheada deu um leve sorriso. Se sentia ridicula falando isso.

-O Matias foi fazer um projeto no Rio, e ele não era la tão popular como hoje. Mas se você tem dinheiro e anda de terninho, você tem respeito. E convenhamos, o Matias tinha armamento para fazer o respeito rastejar ate ele.

Eu tinha 6 anos. E mesmo que no Rio você nasça com a maldade das ruas no sangue, eu não tinha noção da merda que iria acontecer.- Verônica ja sentia um aperto no peito, parecia que todo o sentimento na voz da outra mulher havia morrido.

-Eu fui pega pelos braços e arrastada para dentro de um carro, quase um mine ônibus. Eu tava tentando socializar com as crianças da rua, e eu fui enfiada la a força. Tinham mais 2 crianças junto, fizeram questão de matar minha mãe na minha frente. So para que eu visse, que eu não tinha forças para ir contra. E eu sabia que minha mãe não me amava, se é que eu posso chamar ela disso-. O tom de frieza, era quase de um velório, quando a vítima morreu a um mês e o orador parece entediado de ver gente chorando.

-Eu conheci o Matias e ele me adorou logo de cara, disse que iria me levar do Rio e que eu seria o braço esquerdo dele. O braço direito era Anita, mas nem eu nem ela sabíamos disso. Ele dizia que eu era forte, que eu poderia me tornar parte do que ele era.- As lágrimas de Verônica pareciam presas nos olhos, o estômago se revirava.

-E eu fui, não tive escolha. Aqui em São Paulo ele me treinou, no início eram inúmeros exercícios físicos; jogos mentais; tiros; linguas, coisas assim. Era o básico, e assim foi ate os meus 10 anos. Anita ja tinha 15, o presente dela foi matar a sangue frio. Ja o meu foi aprender a responsabilidade de alianças.-

-Nos orfanatos o Matias era um puta Deus, a gente queria a atenção dele. Ele sabia que não poderia me controlar por muito tempo, eu não desobedecia para evitar conflitos. Mas só isso, eu nunca tive medo do Matias, ele me bateria, mataria, ou me abusaria. E ele fazia os três todas as vezes que tentava qualquer coisa.-

Verônica sentia suas primeiras lágrimas descerem, imaginava como seria a Lila nisso, a Júlia mesmo que tava falando na frente dela, e a Anita que era frágil de aparência e nada de personalidade. Verônica sentia a firmeza e frieza da outra na sua espinha, a falta de expressão e o olhar vazio eram um choque de realidade muito bruto.

-Com 10 anos o Matias passou a me treinar com Anita, logo formamos uma certa parceria. Eu a ajudava nas crises de ansiedade e pânico, ela fazia a vontade de morrer diminuir dentro de mim-

-Sabe Verônica, o Matias não é burro. Ele fez isso porque eu seria o lado racional dele, hoje eu sou o braço esquerdo e ela o direito. Anita é muito inteligente, mas no fundo muito sentimental. Eu sou uma casca vazia, não sinto mais nada.-

-Aos 15 fui abusada pelos 3 grandes, e isso repetiu muitas vezes para que Anita não fosse. E aconteceu tanto que eles fizeram questão de tirar todos meus órgãos reprodutores. E ela só foi poupada em certas partes, eu tento proteger a Anita por uma única razão. Ela é o mais próximo de família que eu provei.

-Eu tô cansada, eu quero dar um jeito de tirar ela disso, me tirar disso. O Brandão provavelmente vai matar a Janete e vai sumir, como o pai dele. E com a abertura do novo orfanato no Rio, a festa do Carvana vai ser ofuscada, dois coelhos numa cajadada só. E você, você é uma pedra do caralho no sapato do Matias. A pouco tempo eu ouvi ele dizendo que o Doúm quer sua cabeça, então a máfia toda vai estar em sua busca.-
Depois de um tempo em silêncio, Júlia continua.

-Não acho justo com você, e você seria de ótima ajuda. Foge com a gente, no sábado mesmo. A gente consegue pegar ele de longe, tenho um pessoal aqui para tomar conta.- Verônica tinha receio.

-E como posso confiar em você?- Verônica pergunta apreensiva, tentando manter a voz o menos falha possivel.

-Eu te contei a história da minha vida, você se descide sozinha. E para de chorar, parece que deu e não gostou. Pensa e se descide, se quiser virar estampa de camisa é com você mesmo. Estamos esclarecidas, vou tentar ler um pouco, se for para casa vê se fecha a porta-

E assim sem mais nem menos, a mais alta voltou para o quarto. Verônica queria chorar copiosamente, mas não podia. Se recompos e foi embora, pelo menos tinha que se despedir dos filhos antes de ser muito tarde.

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