23 - Uma Van

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– Ele nunca se assumiu. Diferente de mim que sempre soube o que eu queria e o que sentia, ele sempre negou. Eu me assumi gay aos 14 anos, e foi fácil entender que, apesar de nunca me sentir atraído por mulheres, nunca deixei de ser homem por isso. Nunca fiquei confuso sobre minha masculinidade, não desejei ser mulher ou agir como tal, pois amo meu corpo, amo minha força, amo tudo em mim, e amo isso no outro. Isso chamou minha atenção para você, porque você é todo homem, todo força, não tem nada suave ou delicado em você e eu... bom, fez o meu tipo, mas não quero falar de mim.

Fiquei esperando. Eu estava meio que surtando por dentro e me perguntando onde ele viu força em mim. Meus bíceps, tríceps e peitoral malhados corroborariam o comentário, mas senti que ele não se referia a isso.

– Ele era casado, pai de uma garotinha. A esposa dele, Daiane, é uma loira fenomenal, digna de capa de revista. Ele sempre fez essas escolhas extravagantes para tudo, como se quisesse provar pro mundo que estava no controle dos próprios impulsos. Existe uma história ruim por trás das atitudes dele, de quando ainda éramos adolescentes, mas isso te conto outra hora. O caso é que ele queria ser livre como eu e a prova disso é que ele me espelhava em tudo. Se eu deixava a barba, ele deixava também. Se eu cortava o cabelo, ele também cortava. Ele gostava do mesmo tipo de roupa, era como o meu reflexo, e era muito comum mesmo as pessoas que nos conheciam nos confundir, porque ainda que ele fosse apenas um pouquinho mais forte do que eu, de fato éramos idênticos, por mais que eu buscasse ser diferente dele. Uma ou outra vez trocamos os papéis e eu deixei ele ficar com algum cara que eu estava pegando só para ele se aliviar. Sei que parece horrível, mas não espero que você entenda.

Sim, era bizarro. Puxei o ar com força quando me dei conta de que da primeira vez que eu o vi na padaria com a loira, não se tratava do Samuel mas sim do irmão, Daniel. Puta merda!

– Ele também trabalhava por perto? – Tive que perguntar.

Samuel sorriu. Ele evidentemente era muito mais inteligente do que eu e já tinha deduzido a confusão que fiz.

– Ele trabalhava comigo. Tenho um estúdio fotográfico e ele era fotógrafo. Eu também sou, mas cuido muito mais da gestão e do casting.

– Então... dias atrás, quando pensei ter te encontrado na padaria...

– Não era eu.

Inacreditável! Que merda! Foi por isso que ele me perguntou se a gente se conhecia, mas me reconheceu quando me viu. Claramente ficou assustado, e eu fazendo um papel ridículo de ciúmes online! Se tivesse uma pá perto de mim, cavaria um buraco e me enterraria nele.

–  Você poderia ter elucidado o caso. Eu não tinha como saber.

– Eu sei que não havia como você saber, mas eu só percebi a confusão depois, quando você passou a agir estranho na nossa live. Dias antes, quando cheguei no estúdio, meu irmão estava transtornado. Dizia estar diante de um dilema que não podia mais ignorar e que precisava tomar uma atitude sobre si mesmo. Acho que foi o dia em que ele te viu na padaria.

Fiquei assustado de fato, e um gelo começou a subir pelo meu peito.

– Acha que eu tive alguma culpa no que aconteceu com ele...?

Ele me olhou com olhos de águia. Não queria nem pensar no que ele leu em mim.

– Não. Claro que não. O problema era antigo e totalmente diferente. O problema foi comigo. Sempre fui eu. Quando você o abordou, ele entendeu que eu entrei no seu perfil e concluiu que, como sempre, eu fiz tudo o que tive vontade de fazer, diferente dele. Eu agi exatamente como queria agir com você, e tudo o que ele queria ter feito eu fui lá e fiz, e tomei para mim a fantasia dele. Ele nunca conseguiu, não só em relação a você mas em relação a tudo, e isso o matava por dentro a cada dia. Eu conversei com ele, tentei entender e tentei fazê-lo entender. Ele disse que tinha chegado num limite e eu pensei que falava só sobre a própria sexualidade, então o incentivei a dar um basta e se assumir, a assumir o que amava, que isso não era vergonha para ninguém. Falei para ele que já que sempre olhava para mim, que enxergasse em mim não um modelo, mas um apoio, alguém que sempre entenderia e aceitaria quem ele era e como ele se sentia. Não foi suficiente...

Cara, se tivesse um jeito de parar o mundo, eu pararia para descer nessa hora. Segurei sua mão e resolvi deixar de ser covarde. Se ele estava ali, na minha casa, no meu sofá, eu devia significar alguma coisa, e ele devia estar esperando algo melhor de mim.

– O que aconteceu depois? – perguntei.

– Ele saiu do escritório, entrou no carro, pegou uma rodovia na contra-mão a mais de cem por hora e... colidiu com uma van. A van foi arrastada para a encosta da pista e capotou. Ela transportava um grupo de estudantes, cinco adolescentes. Todos morreram na hora, menos o Daniel.

Minha cabeça explodiu. Meu peito doeu e o ar desapareceu da sala. Eu saí de perto dele num pulo porque não tinha como ficar no mesmo lugar. Sei que devo tê-lo chocado, que devo ter parecido um lunático, mas eu precisava de ar. Eu saí do apartamento como um tornado, saí do prédio e o deixei lá, sozinho e confuso.

Caminhei pelas ruas por um tempo, não pude determinar quanto, mas foi um tempo bem longo em que precisei recolocar tudo no lugar dentro de mim. Eu não podia lidar com aquela história. Não eu. Não mais. Eu vaguei sem rumo até perceber que tinha controle das minhas emoções, e só quando pensei que Samuel já teria ido embora, voltei para casa.

Do lado de lá (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora