26 - Outra Van

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Samuel estava pálido. Tenho certeza de que não existia hora pior para mencionar isso, mas a verdade escapou tão fluída da minha boca que quando percebi, já tinha falado.

– Você pode ir embora agora. – Sugeri.

Eu no lugar dele teria feito isso. Na verdade, eu fiz isso. Eu larguei ele sozinho numa hora ruim, dentro da minha própria casa, depois de ter aberto a porta e ter usado seu corpo para me consolar.

– Nem fodendo, Diego. Conversa comigo.

Era óbvio que ele era um cara muito melhor do que eu. Ele, a Laura, até o cachorro chato da vizinha era melhor do que eu. Eu falei merda, fiz merda, ele apareceu, me fez ver estrelas, limpou meu vômito e me fez um chá. Como eu poderia lidar com isso?

– Não tem o que conversar. É passado, não preciso falar disso.

– É claro que precisa. Olha como isso ainda te afeta!

– É só por causa da história do seu irmão. Ouvir me fez lembrar, daí eu surtei no meio do sono. Logo eu esqueço e tudo passa.

– Não tem como esquecer essas coisas, Diego.

Ele tinha razão, como sempre. Suspirei e passei as mãos no meu cabelo. Os fios pareciam um caos depois do banho e de ter me largado de qualquer jeito no sofá. Alcancei um elástico que estava no chão e prendi as mechas na nuca. Pensei em falar. Cogitei de verdade, mas minha boca não funcionava.

– Eu não consigo...

Senti vontade de chorar. Mas que merda! Por isso que eu não gostava de falar disso ou de qualquer outra coisa. Falar tornava tudo real de novo. Falar era como arrancar a casca da ferida e ver o sangue escorrer. A cicatriz já era feia demais, não precisava piorar as coisas.

– Como aconteceu? – Ele estendeu o braço e segurou minha mão.

Ele não ia desistir. Conhecia esse cara há o que, três meses? Um pouco mais? E ele já sabia coisas ao meu respeito melhor do que qualquer outra pessoa. Ele estava me virando do avesso.

– Minha mãe era depressiva. – Comecei e fiz uma pausa. Senti ele apertar minha mão me incentivando a continuar. – Desde que meu pai faleceu, ela ficou assim. Ele era bombeiro, morreu numa ocorrência, um acidente de trânsito envolvendo um caminhão pipa que transportava combustível. O caminhão explodiu enquanto tentavam evacuar a pista. Eu tinha dois anos de idade na época.

Ouvi ele suspirar e senti o tremor da mão que envolvia a minha.

– Quantos anos ela tinha?

– 26 anos. Depois do ocorrido, sempre fomos só eu e ela. Não havia parentes, e depois de um tempo, nem amigos. Ela foi afastando todo mundo então não havia o que fazer. Eu cresci muito isolado e convivi com os picos de tristeza dela, quando ela ficava semanas deitada sem reagir. Aprendi a me virar muito novo porque os episódios eram cada vez mais frequentes e longos. Eu queria fazer alguma coisa, eu amava minha mãe acima de tudo, ela era a única pessoa que eu tinha.

Ele levantou minha mão e depositou um beijo na palma. Não me lembro de nenhum gesto que tenha feito eu me sentir tão aquecido e frágil ao mesmo tempo. Não consegui olhar para ele. Pensei se minha história fazia eu parecer fraco, incapaz ou digno de pena. Senti medo. Senti vergonha, então resumi o máximo que consegui. Já era difícil o suficiente falar disso sem minha autoestima me jogando ainda mais para baixo.

– Talvez por isso sempre fui muito fechado. Eu sempre entendi que era demais para ela ter que cuidar de mim sozinha. Ninguém merece ficar sozinho com um bebê para criar. Mesmo eu fazendo de tudo para não piorar a vida dela... ela não melhorava.

– Você era um bebê, Diego. Depois uma criança. Sabe que não tinha como facilitar as coisas, certo? Você nem deveria pensar nessas coisas.

– Mas eu pensava. Eu a ouvia chorar e reclamar o tempo todo. Ouvia ela perguntar pro universo, para Deus ou sei lá para quem, o que ia fazer comigo e por que ela tinha que passar por aquilo. Ela não me queria. Ela nunca quis.

– Isso não pode ser verdade...

– Samuel... essa é a minha história, ok? Você pode ouvi-la, não pode mudá-la.

Ele se calou e eu percebi que ficou abalado. Bom, foda-se. Eu continuei.

– Bom, o que aconteceu é que eu cresci assim, um mal necessário ou um bem indesejado, algo entre um e outro. Ela foi piorando, não buscou ajuda, não se abriu para ninguém e o resultado foi que, quando eu estava com 13 anos, ela pegou o carro velho que tínhamos desde quando meu pai era vivo, e acessou a mesma rodovia onde ele morrera no acidente. Ela fez questão de me colocar no banco do passageiro. Disse que não podia me deixar para trás, que tinha que fazer isso, que íamos finalmente ficar todos juntos novamente. Quando percebi o modo como ela acelerava, entendi o que ela pretendia. Entrei em pânico e pulei pro banco de traz do carro, sem deixar de implorar para ela parar. Nunca pedi para descer do carro, eu nunca a abandonaria. Ela não me ouviu e afundou o pé no acelerador até o chão. Nunca vou me esquecer da chuva, do barulho, de...

Merda! Eu estava tremendo. Meu estômago embrulhou de novo e tive certeza de que estava prestes a vomitar o chá. Tudo ainda era muito nítido. Era dia, e chovia. Lembrava do cheiro do asfalto, do óleo, da borracha e do sangue. Quase 20 anos depois e parecia que tinha acabado de acontecer.

Samuel não reagiu, ele só me olhava com o rosto lívido. Só então ele entendeu o que era ficar remoendo a histórias dos outros. Devia ter ficado na dele. Faltava pouco, então eu terminei a história.

– Chovia muito, e pela velocidade que ela estava, terminou por perder o controle. O carro rodou da pista e capotou, não sem antes atingir uma van, um transporte escolar, e tirá-lo da pista. Diferente da história do seu irmão, não havia crianças a bordo, só o motorista morreu. Entende a semelhança? Entende por que eu fiquei abalado com a história do seu irmão?

Vi uma lágrima correr no seu rosto. Senti meus olhos molhados, mas não quis me render.

– Sua mãe...?

– Morreu na hora. Eu fiquei preso entre os bancos. O fato do carro ser antigo ajudou a absorver o impacto. Não ajudou minha mãe, que ficou esmagada no banco da frente. Eu tive mais sorte, só quebrei as duas pernas, um braço, costelas e tive apenas algumas escoriações leves porque o estofado dos bancos me protegeu das ferragens. Não sei se dá para chamar três cirurgias e quase um ano de fisioterapia de sorte. – Mostrei as duas cicatrizes nas minhas pernas, quase invisíveis por baixo dos pelos.  – Não carrego muitas marcas. Ao menos não no corpo. Se estar vivo é ter sorte, bom, que seja.

Ele ficou um tempo absorvendo o relato. Confesso que foi bom falar com alguém maduro, alguém que não julgava ou surtava. Ele parecia uma fortaleza perto de mim e me senti seguro pela primeira vez desde o acidente.

­– Sinto muito, Diego. – Ele pareceu sincero. – O que aconteceu com você depois?

– Eu ia entrar no sistema. Ia ser colocado para adoção. Como meu pai era militar, conseguiram me enfiar numa família provisória que acabou virando permanente. Vivi com eles até os 18 anos, então vim pra capital estudar e é isso. Fim da história.

Ele se moveu e me abraçou. Ele realmente era o meu oposto. Um oposto firme e macio ao mesmo tempo. Eu senti uma lágrima correr no meu rosto mas engoli as demais. Se eu desse o braço a torcer, assumiria que estava feliz por dividir a história com ele, estava feliz porque ele estava comigo e não foi embora.

Se eu desse o braço a torcer, assumiria que precisava desse homem, e que talvez a culpa que eu carregava por ter sobrevivido à morte da minha mãe pudesse ser, aos poucos, suplantada por um sentimento novo. Talvez gratidão, talvez alegria.

Talvez amor.

Do lado de lá (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora