Cuiabá, Império do Brasil
Fevereiro de 1867Respirei fundo sentindo o toque gelado do gatilho entre meus dedos. O suaçuetê pastava tranquilamente às margens do rio. Era uma criatura majestosa. Seus chifres que pareciam galhos retorcidos cresciam em direção ao céu. A pelagem castanho-dourado brilhava sob a luz do sol. Quando prendi a respiração, apertei o gatilho. O disparo ecoou pela mata, e a suçuarana, que se preparava para atacar o suaçuetê, fugiu.
Não errei o tiro.
Eu era uma ótima caçadora. Mas meu objetivo era simples: afugentar a suçuarana que atacava os poucos animais que ainda restavam na fazenda.
Quando o olhar do suaçuetê cruzou o meu antes dele sumir na mata, eu sabia que aqueles olhos dourados ficariam para sempre gravados na minha memória. Os olhos dele emitiam um brilho cativante, como estrelas na escuridão.
Quando eu era criança, minha mãe costumava dizer que os olhos eram a janela da alma, e naquele momento, enquanto o encarava, pude constatar a veracidade de suas palavras. Eu podia ver sua alma através de seus olhos. E ele a minha.
Desejei ter o meu caderno de desenhos em mãos.
Eu queria imortalizar os olhos de ouro líquido em um retrato.
Caminhei pela mata fechada desde o alvorecer, com o fuzil em punho e a respiração controlada. Eu não era supersticiosa, mas os pelos da minha nuca se arrepiaram quando ouvi o canto do Yporá - o pássaro de canto agourento. Diziam que o canto do pássaro era o presságio de que algo ruim aconteceria. Mas o ignorei e continuei a minha caçada.
Suçuaranas eram conhecidas por sua incrível capacidade de camuflagem e por sua habilidade de se movimentar sem fazer barulho. Eu precisava me manter atenta a qualquer movimento que indicasse a presença do felino que atacava os animais da fazenda. Após horas na mata, avistei um pequeno grupo de suaçuetês forrageando próximo a um córrego. Foi então que o felino tentou atacar um suaçuetê que se separou do grupo.
O meu cervo de olhos dourados.
Após afugentar o felino, senti a bandoleira do fuzil de percussão do meu pai apertar a minha pele suada. O peso do rifle parecia multiplicar-se sob o sol escaldante do pantanal, dificultando minha tarefa de carregá-lo. Eu ainda teria uma caminhada de cerca de seis quilômetros até chegar à fazenda. As caçadas frequentes que eu fazia na planície alagada deixaram minha pele bronzeada e meu rosto com tantas sardas como uma constelação prestes a entrar em colapso.
A cor da minha pele e meu nome não eram como os das damas do Império.
O meu nome Miranda foi escolhido pelo meu pai em homenagem a minha bisavó que morava perto do rio Miranda. Meu pai dizia que ela era uma Índia Kadiwéu que foi laçada pelo meu bisavô. Laçada amenizava a realidade: ela havia sido violentada. E eu carregava o sangue dessa violação.
Apesar da origem nobre do nome Andrada, eu era desprezada pela minha aparência. Meus cabelos escuros e lisos e pele dourada, heranças da minha origem indígena, nunca seriam aceitos pela aristocracia. Eu não recebia convites para os clubes, bailes, festas e salões que eles frequentavam. Somente minha irmã Mariana recebia esses convites por ter a aparência pálida e delicada. E eu não poderia me importar menos. Eu me importava em cuidar dos únicos bens que meu pai deixou: a minha família e a fazenda Bom Retiro.
Fazia quase dois anos que meu pai partiu.
Mas eu ainda sentia um aperto no peito em pensar nele.
E agora meu coração doía em lembrar do meu irmão.
O governo imperial começou a exigir dos presidentes das províncias cotas de combatentes de, no mínimo, um por cento de sua população. E assim o meu irmão gêmeo, Luís Andrada, foi enviado para a Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai, um mês depois da morte do meu pai.
Eu não tinha notícias do meu irmão há quase um ano.
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O Canto do Yporá
Ficción histórica🏆 Classificado no concurso do Governo Federal Carolina Maria de Jesus🏆 Após a trágica morte do pai, o Visconde de Cuiabá, Miranda Andrada é obrigada a tomar medidas drásticas para proteger a mãe e os irmãos da gananciosa família Ribeiro. Para salv...