Eu não conseguia esquecer o sorriso maldoso de Francisco quando ele disse que acabaria com o nosso noivado.
O desgraçado estava brincando comigo, me provocando. Ele sabia que eu não tinha escapado das garras da família Ribeiro.
A perspectiva de um casamento com o coronel era angustiante. A ameaça que ele fez a mim e a minha irmã dominava os meus pensamentos.
O ar escapou dos meus pulmões.
Era como se eles estivessem sendo comprimidos.
Quando a aflição me dominava, eu encontrava refúgio em desenhar e pintar. Através das linhas, traços e pinceladas, eu conseguia me distanciar dos meus problemas.
Uma lâmpada a óleo bruxuleava iluminando o meu quarto e criando uma atmosfera suave e aconchegante. A noite lá fora estava escura e silenciosa. Retirei um pedaço de carvão e uma folha de papel da gaveta da minha mesa. Segurei o carvão em minhas mãos e concentrei minha atenção no cervo que desejava retratar. Fechei os olhos por um momento, e visualizei a majestosa criatura em minha mente.
Se a janela da alma eram os olhos, então os olhos dele era a essência do pantanal.
Eram olhos dourados.
Tão brilhantes como o sol que tocava a planície alagada no alvorecer.
Os traços iniciais eram leves e suaves, como se o carvão estivesse dançando na folha em branco. À medida que desenho ganhava vida, o suaçuetê emergia das linhas, revelando sua forma majestosa e imponente. Porém, eram os olhos que mais me fascinavam. Coloquei o carvão de lado para admirar o desenho.
Os olhos do cervo faiscavam como duas estrelas em meio à escuridão.
Eu já tinha visto olhos assim antes.
Tão brilhantes como ouro polido.
Eram os olhos de Tomás Lacerda.
Era impossível parar de pensar no meu irmão e em Tomás. Eu sentia tanto a falta deles. De todos os momentos que poderíamos ter vivido e foram tirados de nós pela guerra. Enquanto eu mergulhava em minhas reflexões, a porta rangeu e minha irmã adentrou o meu quarto, interrompendo meus devaneios.
— Fiquei sabendo que Francisco esteve aqui acompanhado do Coronel... — Os olhos de Mariana brilhavam com curiosidade.
Levantei da minha mesa e girei nos calcanhares para encará-la.
— Onde você estava? — Interrompi ela de fazer mais perguntas que eu não queria responder.
A minha irmã usava um vestido luxuoso que devia estar na moda na Europa algumas estações atrás. Mariana era motivo de brincadeira entre mim e Tomás, já que, mesmo no calor tórrido de Cuiabá, ela insistia em usar vestidos elaborados para o clima europeu.
— Estava na cidade. — Ela alisava a saia do vestido para disfarçar o nervosismo.
— Mariana... — comecei a falar e soltei um longo suspiro. — Você sabe que não podemos pagar por vestidos caros. — O vestido de seda que ela vestia valorizava sua cintura, marcada por um espartilho. A saia ampla, em formato de sino, descia abaixo dos tornozelos. As mangas eram longas e com detalhes de rendas.
O vestido era lindo.
— Isso é um investimento. Será recompensado quando eu me casar com uma família rica e influente.
— Mariana...
— Não seja hipócrita, Miranda. — O franzir de suas sobrancelhas douradas denotou seu descontentamento. — A única saída que temos dessa situação é casar bem. — Meu estômago revirou com a menção da palavra casamento. Lembrei da mão pegajosa do Coronel agarrada ao meu antebraço. — Se você tivesse um pouco mais de consciência. Se se importasse um pouco com a nossa família... — Ela olhou com desprezo para minha saia longa e larga, que protegia minhas pernas dos arbustos e vegetação. Suspirou ao ver minha blusa de mangas compridas sujas de terra e pequi. Eu ainda vestia a mesma roupa da manhã, quando espantei a suçuarana. — Você não usaria esses trapos. Quem vai querer casar com você, Miranda? E se você não casar... eu também não poderei. Você só pensa em si.
Pela primeira vez, senti pena da minha irmã. Apesar de eu ter apenas vinte e dois anos, eu compreendia que a vida ia além de simplesmente obedecer às regras e satisfazer as expectativas da sociedade. Sabia que tínhamos um propósito maior, algo além do que era imposto pela sociedade, e que quando descobríssemos esse propósito, deveríamos nos agarrar a ele e lutar até o último suspiro.
— Isso não é verdade. Tudo que faço é pensando em você e na nossa família.
— Você age como bem entende. Tem um temperamento inadequado para uma dama. Por isso, apenas o insensato do Tomás deseja se casar com você! — Ela vociferou.
Minha irmã herdara a personalidade dura e distante da minha mãe, mas envolver Tomás, o rapaz que jurara vingança contra nossa família, era ir longe demais. Havia uma probabilidade maior de que ele alimentasse novamente o fogo da vingança contra a família Andrada do que nutrisse o desejo de se unir a mim em matrimônio.
Mariana estava sendo cruel, descontando suas frustrações em cima de mim.
— Se você precisa descontar sua frustração em mim... — Rosnei, deixando escapar meu lado selvagem. Ela se encolheu diante de mim. — Não envolva Tomás! Ele não está nem aqui para se defender. — Uma dor perpassou o meu coração. Uma das últimas vezes que vi Tomás estávamos equilibrados na cerca da fazenda, devorando guaviras. Era nosso ritual: afastávamos os felinos que ameaçavam os animais da fazenda e depois contemplávamos o pôr do sol, degustando as frutas que encontrávamos pelo caminho.
Ela se calou, ciente de que havia tocado em um assunto proibido. Não falávamos de Tomás ou de meu irmão. Era como se eles não existissem. Assim era mais fácil lidar com a saudade que corroía nossos corações.
— Me desculpe. Eu não deveria ter falado assim com você. — Ela mordeu os lábios, expressando remorso. — Não tem sido fácil para mim. Descobri que o homem que amo está noivo... novamente.
— Sinto muito — murmurei, fazendo menção de me aproximar, mas ela se afastou.
— Está tudo bem. Ele sempre foi inalcançável para mim — ela disse com a voz trêmula. — Nunca fomos destinados a ficar juntos. Eu me contentava em apenas observá-lo à distância. Amar à distância. Assim como o mãe-da-lua ama a Lua.
A lenda do Mãe-da-Lua era contada há gerações na família Andrada, transmitida de minha bisavó para nós. A lenda contava a história de um pássaro chamado mãe-da-lua que se apaixonou pela Lua. Mas a Lua já estava comprometida com o Sol e não pôde corresponder ao amor do pássaro. O mãe-da-lua, mergulhado em tristeza e desespero, começou a propagar seu sofrimento com um canto triste e arrepiante que cortava a noite e entristecia a floresta.
Eu sentia pena da minha irmã por sofrer a dor de não ter o amor correspondido. Ao contrário de Mariana, eu nunca me permiti me apaixonar. Eu tinha medo de sofrer a desilusão de um amor não correspondido, pois o nome Andrada me obrigava a um casamento por razões que não incluíam o amor verdadeiro.
— Meu casamento foi marcado para daqui a um ano, Mariana. Espero que, agora que sua irmã mais velha tem uma data definida, você também consiga realizar seus planos de casamento.
Seja o grande herói da sua escritora, deixe seu comentário e voto ⭐ nos capítulos. Quando você deixa seu comentário/voto ⭐ nos capítulos, me incentiva a continuar escrevendo. Por favor, deixe sugestões nos comentários, mural ou no meu privado, elas são importantes para que eu possa aprimorar cada vez mais O canto do Yporá e transformá-lo em um livro que possamos chamar de nosso! Sua opinião é muito valiosa para mim!
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Canto do Yporá
Narrativa Storica🏆 Classificado no concurso do Governo Federal Carolina Maria de Jesus🏆 Após a trágica morte do pai, o Visconde de Cuiabá, Miranda Andrada é obrigada a tomar medidas drásticas para proteger a mãe e os irmãos da gananciosa família Ribeiro. Para salv...