— Será feito. — Eu não sabia se podia confiar nas palavras do presidente do Paraguai, assim como não sabia se poderia confiar nas palavras de Tomás. Na dúvida, era melhor ter mais de uma opção. — Quero que você traduza tudo o que os prisioneiros disserem para meus oficiais. Mas antes disso, proponho celebrarmos esta reunião com homens de honra e fibra. Minha mãe enviou minhas comidas favoritas: uma cesta com chipas... — Ele me olhou e acrescentou: — É uma espécie de pão de queijo feito com polvilho doce muito popular no Paraguai, além de um delicioso puchero, um cozido de carnes com legumes.
As comidas foram postas no centro da mesa e todos começaram a se servir. Os oficiais se deliciavam com a comida. Antes de saborear suas guloseimas preferidas, López jogou uma delas ao seu cão. E fez sinal para eu me servir. Estendi minha mão trêmula e peguei uma chipa, levando-a cuidadosamente à boca.
O sabor único e levemente adocicado que invadiu meu paladar foi tão maravilhoso que jamais esqueceria. Era como se aquele pequeno pedaço de chipa me transportasse para um lugar onde eu não sofria tantas perdas e decepções. Como se restaurasse a minha esperança e renovasse as minhas energias.
Quando os oficiais terminaram a refeição, José adentrou a sala acompanhado por uma mulher. Seus olhos cansados e angustiados revelavam que ela carregava consigo uma história de sofrimento. Durante o interrogatório, descobri que era a esposa de um respeitado Coronel brasileiro. A cada grito dela que reverberava no ambiente, uma sensação de aflição invadia minha alma, como se uma parte de mim se rompesse diante da crueldade presenciada. Era doloroso testemunhar o que eles estavam fazendo com aquela mulher indefesa.
Respeitando as ordens do Mariscal, eles se abstiveram de violá-la, mas o tormento a que ela foi submetida durante horas era angustiante. Mesmo tendo traduzido cada palavra da mulher, percebi que Solano López não se mostrava satisfeito com a situação.
— Tragam o próximo prisioneiro — ordenou o Mariscal com sua voz grave e autoritária.
Um homem foi arrastado para dentro da sala, seu corpo exausto e ferido. A dor era evidente em seu rosto e sua perna sangrava, dificultando sua capacidade de se manter em pé. Com uma brutalidade desumana, José o forçou a se sentar em uma cadeira. O Toro Pichai segurava um martelo enquanto sorria. Os soldados de López eram conhecidos por suas práticas de tortura, como esmagar os dedos dos prisioneiros com golpes de martelo, seja aqueles considerados traidores, desertores ou inimigos nos campos de batalhas.
O homem, um tenente do exército do Império do Brasil, foi interrogado e acabou revelando os planos das tropas brasileiras para atacar a fortaleza de Humaitá, seguido por Lomas Valentinas, Avaí e Itororó. Por fim, atacariam Assunção, a capital do Paraguai. Enquanto traduzia cada palavra do prisioneiro, senti seu olhar suplicante, implorando-me para distorcer as informações.
No entanto, eu não podia arriscar distorcer a verdade e enfrentar a fúria do presidente. Sabia que López era um homem instruído e poliglota, capaz de se comunicar sem a necessidade de um intérprete. Eram seus subordinados que dependiam de minha tradução. Cada frase que eu traduzia, Solano arqueava a sobrancelha, o que me deixava angustiada. Ele não estava satisfeito com a minha tradução? Assim que o tenente desmaiado foi arrastado para fora da sala, Solano López proferiu:
— Saiam todos!
Os oficiais prontamente começaram a se retirar, e eu me juntei a eles em sua partida. No entanto, antes que eu pudesse sair da sala, Solano López estalou a língua e apontou para mim.
— Você. Fique aqui.
Eu me mantive imóvel, com os olhos fixos no presidente do Paraguai. Naquele momento, éramos os únicos na sala. Ele se acomodou em uma poltrona em frente à mesa, abrindo uma gaveta de onde retirou um charuto. Acendeu-o e expulsou dos pulmões uma fumaça que serpenteava pelo ar. Em seguida, ele dirigiu-se a mim com seriedade e disse:
— Esse é um puro, uma obra-prima artesanal confeccionada exclusivamente com folhas nativas do Paraguai. Consigo discernir entre um puro autêntico e uma falsificação. — Seus olhos escuros me encararam com desconfiança. — Não tolero ser enganado. E sei quando estão mentindo para mim, Miranda.
— Não sei do que está falando... — respondi com a voz trêmula.
— Conte-me o que está escondendo! Caso contrário, seu irmão doente será deixado para dormir no relento. — O Mariscal colocou a mão em seu coldre, pronto para agir com base em minha resposta.
Fiquei em silêncio, lutando para encontrar as palavras certas. O peso da escolha recaía sobre mim. Deveria revelar minha verdadeira identidade como mulher ou entregar o acordo que fiz com Tomás? A carta queimava em meu peito, guardada entre o uniforme e as faixas que achatavam meus seios.
— Não sou o gêmeo do meu irmão. Sou sua irmã gêmea — declarei com coragem, deixando a revelação pairar no ar.
O presidente soltou um suspiro aliviado, e eu me surpreendi com sua reação.
— Soube que você conheceu Tomás Caballero quando ele ainda atendia pelo nome de Tomás Lacerda. Tenho um olho aguçado para traidores e traições. Cheguei a desconfiar do rapaz.
— Não tenho conhecimento de qualquer traição vinda dele, senhor.
— Acredito em você. Você já provou seu valor ao traduzir as palavras da mulher e do tenente com precisão. Agora, ao revelar seu próprio segredo, percebo sua intenção de conquistar minha confiança. Se continuar desempenhando um bom trabalho, prometo que em breve enviarei você, seu irmão e a vivandeira de volta para o Império.
— Obrigada, senhor — respondi, surpreendida. Eu o encarava atônita, pois parecia que ele não se importava com o fato de eu ser uma mulher.
— Não me importo com você ser mulher, Miranda Andrada. As mulheres estão desempenhando papéis essenciais na guerra. Enquanto a maioria dos homens está na linha de frente, elas estão trabalhando nas fábricas de armamentos e na produção de alimentos. Elas também atuam como enfermeiras, cozinheiras, fornecedoras de água e até mesmo como combatentes. Temos unidades militares formadas exclusivamente por mulheres, conhecidas como Companhias Femininas. Essas companhias são lideradas por mulheres treinadas para lutar com armas e também com objetos improvisados, como facas e pedras. — Ele fez uma pausa para recuperar o fôlego. — Espero que você continue realizando um ótimo trabalho. Prometi nunca abandonar meu país. Lutarei pelo Paraguai até o fim. O verdadeiro vencedor não é aquele que sobrevive no campo de batalha, mas sim aquele que morre por uma causa justa e nobre.
Assenti.
Suspirei aliviada quando ele deixou a sala. Apesar dele não ter me punido por ser mulher, eu não me deixaria enganar pelas palavras dele. Conhecia as histórias sobre Solano López, que ele mandava fuzilar estrangeiros, paraguaios e inclusive parentes que considerava traidores.
Voltei apressada para o quarto, ansiosa para contar ao meu irmão a notícia de que havia conhecido o presidente do Paraguai e que em breve estaríamos retornando ao Império. Fechei a porta suavemente, tentando não perturbar seu descanso, mas meu irmão permanecia inerte, imóvel como uma estátua.
Aproximei-me dele e percebi que sua palidez ultrapassava o normal. Seu peito não subia e descia. Com o coração aflito, coloquei meu rosto sobre seu peito, buscando algum sinal de vida, mas ele não respirava mais.
O silêncio confirmava que meu irmão havia morrido.
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O Canto do Yporá
Historical Fiction🏆 Classificado no concurso do Governo Federal Carolina Maria de Jesus🏆 Após a trágica morte do pai, o Visconde de Cuiabá, Miranda Andrada é obrigada a tomar medidas drásticas para proteger a mãe e os irmãos da gananciosa família Ribeiro. Para salv...