— Não seja tão curioso, tenente. — O homem soltou uma risada sombria e então disse em guarani: — Se é que você é mesmo um tenente. Em breve, descobriremos a verdade sobre sua identidade. Tenho minhas dúvidas de que esteja falando a verdade. E quando nosso comandante aplicar o cepo-uruguaiana em você por suas mentiras, vou me deliciar com o espetáculo.
Eu nunca havia ouvido falar do cepo-uruguaiana, mas a expressão divertida no rosto do soldado deixava claro que não era nada agradável. Um calafrio percorreu minha espinha, mas eu engoli o pânico e o desespero que ameaçavam me consumir. Eu precisava manter a calma e encontrar uma forma de escapar dessa situação.
— Não sou um mentiroso. Posso garantir, senhor... — respondi em guarani, provocando uma reação imediata no homem. Seu semblante se alterou, revelando um misto de surpresa e desconfiança. Seus olhos se arregalaram mais do que a boca do cano da arma.
Eu sabia que era uma boa mentirosa, afinal, havia passado anos enganando minha mãe ao dizer que estava bordando e recitando poemas, quando, na verdade, eu estava nas profundezas da mata ao lado de Luís e Tomás.
— José... — ele pronunciou seu nome com uma pausa calculada, observando-me de perto. Parou de rodar a arma nos dedos e guardou no coldre. — Pode me chamar de José, mas também sou conhecido como Toro Pichai, em homenagem à espécie mais feroz de bovinos no Paraguai. — Ele tinha um sorriso satisfeito no rosto. — Não sabia que você falava Guarani. E o faz com pouquíssimo sotaque. Impressionante. Talvez você não seja completamente inútil... talvez tenha, de fato, uma utilidade.
— Eu também sei falar espanhol.
Ele arqueou uma sobrancelha escura, revelando seu interesse e curiosidade.
— Com quem você aprendeu a falar? — questionou, inclinando a cabeça para o lado.
— Uma pessoa especial, alguém que admiro, me ensinou quando eu ainda era criança — respondi, escolhendo com cuidado as palavras. — Posso ser o intérprete oficial do exército
— Veremos — ele disse desconfiado. — Levem os prisioneiros para o acampamento agora mesmo! — A ordem foi dada e os soldados se apressaram em recolher nossas armas, deixando-nos desarmados e vulneráveis. Em seguida, amarraram nossas mãos sem deixar espaço para escapar. No entanto, aqueles gravemente feridos, impossibilitados de serem levados como prisioneiros pelas forças guaranis, foram executados com golpes fatais de baioneta. Era uma cruel maneira de economizar munição que se tornava cada vez mais escassa conforme a guerra se estendia.
Eu temia pela segurança de Ana. Enquanto minha verdadeira identidade permanecesse oculta, eu estava relativamente segura. A vivandeira havia se colocado em risco ao me proteger da bala que o Toro Pichai ameaçava disparar contra mim, e agora era minha vez de protegê-la da violência que tantas mulheres sofriam em tempos de guerra. O estupro era um crime recorrente, utilizado para desmoralizar e subjugar mulheres e meninas.
A cada passo que dávamos, eu permanecia ao lado de Ana, vigilante e temerosa de qualquer ameaça que pudesse surgir. Os dias se arrastavam enquanto atravessávamos terras alagadas e florestas carbonizadas, testemunhando os estragos da guerra ao nosso redor. Finalmente, vislumbramos ao longe um forte. Os homens e as mulheres paraguaios nos encaravam com hostilidade enquanto éramos arrastados no pátio. Senti um arrepio percorrer minha espinha diante daquela atmosfera hostil.
Era como se estivesse de volta à capital, onde a aristocracia me olhava com desprezo por não possuir traços tão europeus como os de minha irmã ou mãe. Ali, meus traços eram considerados excessivamente europeus, enquanto na capital eram tidos como demasiadamente indígenas. Sentia-me como se não pertencesse a lugar algum. Um pássaro sem ninho. Como se eu não tivesse uma origem. Um lar.
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O Canto do Yporá
Historical Fiction🏆 Classificado no concurso do Governo Federal Carolina Maria de Jesus🏆 Após a trágica morte do pai, o Visconde de Cuiabá, Miranda Andrada é obrigada a tomar medidas drásticas para proteger a mãe e os irmãos da gananciosa família Ribeiro. Para salv...