Capítulo 01 - Solares

101 19 87
                                    


HALEY

Não posso acreditar que meu pingente foi roubado. Se ainda estiver nessa porcaria de província sei que ele não deve estar longe. A Província de Saturno é a menor das oito. E para minha sorte, há apenas um lugar onde ele teria utilidade para alguém aqui.

Meus cabelos se acomodam no capacete, e se não fosse pela jaqueta que uso, o vento frio congelaria minha pele. Passo ao lado do Rio Frades, a água preta está coberta por lixo, seu fedor chega ao meu nariz como um lembrete azedo da vida aqui. Fomos abandonados para morrer.

O céu assume uma coloração alaranjada, embora tenha chovido o dia inteiro e o frio continue. Paro em frente à loja de velharias, coloco meu capacete no guidom, desço da moto, que eu carinhosamente batizei de Dalila e ponho minhas mãos nos bolsos. Há sujeira por toda parte, ratos brigam por pedaços de comida que não consigo identificar.

Abro a porta e dou de cara com livros empoeirados, luminárias velhas e uma bela vitrola sobre um criado mudo. O ambiente mal iluminado é estranhamente acolhedor.

Atrás do balcão olhando para mim, está Lewis, o dono da velha loja, que também é detentor do título de meu avô. As sobrancelhas são grisalhas e estão despenteadas assim como o cabelo, que dão a ele uma aparência meio louca. O que de certa forma, ele é.

— Estava esperando por você, Haley.

— Então isso significa que o senhor já sabe o que eu quero — respondo com um sorriso aliviado no rosto.

— Pensei que tinha vindo visitar seu velho vô. — Ele põe a mão no peito em uma tristeza fingida. Lewis é minha pessoa favorita.

Ele se vira para pôr um livro caindo aos pedaços na estante atrás dele, que provavelmente lia antes de eu chegar. Há décadas, todo conhecimento é documentado digitalmente, e obviamente pessoas como eu não tem acesso. E sinceramente, a maioria cansou de se importar. Mas meu avô se importa. Então o que nos resta são alguns livros amarelados. De costas para mim, Lewis avalia o estado do exemplar ainda em mãos.

— Então o desgraçado veio mesmo direto pra cá! — digo colocando as mãos no balcão. — O que você fez com ele? — pergunto e Lewis sabe a quem me refiro. Ele olha para mim e seus olhos brilham.

— Agora que ele tem uns dedos a menos, acho que nunca mais vai roubar ninguém. — A velha loucura do meu avô dá as caras.

— Bem, talvez ele pare apenas de roubar anéis — digo, e ele ri enquanto coça a cabeça. Ao fundo vejo a silhueta alta e forte de um homem. É Ryan. Ele trabalha para o meu avô há mais ou menos um ano. Eu prefiro não saber a natureza de algumas das tarefas dele. Sempre houve uma tensão entre nós, mas nenhum de nós deu o primeiro passo. Não faz diferença para mim. Ryan é uma pessoa de poucas palavras, então ele não fala nada quando me vê, ao invés disso ele acena com a cabeça. Aceno de volta.

Lewis abre uma gaveta e tira um pequeno pano vermelho dobrado, e quando desdobra descobre um pingente. É uma esfera dourada, com três anéis em volta. Meu pequeno tesouro roubado.

— Sei o quanto ele é importante para você, Haley — ele diz, enquanto suspende o pingente na frente do rosto. O sorriso agora dando espaço a um olhar triste.

— Não tenho mais nada dela, quer dizer, nada que ela mesma tenha me dado — respondo.

Depois de tantos anos, ainda dói como se fosse ontem. A memória do pingente ensanguentado me vem à mente. Ryan parece intrigado ao ver o pingente, depois finge estar ocupado, tentando nos dar privacidade. Fito o pingente assim como Lewis. "Não é só o símbolo da Cidade Solar" as palavras da minha mãe ecoam na minha cabeça.

— Você parece muito com ela, sabe? Com exceção desses cabelos curtíssimos. Mas os seus olhos são castanhos como os dela, e estas maçãs do rosto... Aliás, não é só isso. Digo, Maeve sempre teve essa força de vontade, e não deixava nada no caminho dela. Antes de tudo o que aconteceu. — Meu avô não é um cara sensível, mas a morte da minha mãe é uma ferida que nunca sarou para ele. Não tenho resposta, e não sei se conseguiria dá-la se tivesse. As lágrimas ameaçam cair e o silêncio paira sobre nós. Minutos se passam e descido que é hora de ir embora.

— Se você tiver mais entregas para amanhã, é só separar. Que horas quer que eu esteja aqui?

— Esteja às oito.

— Então estarei às oito e quinze.

— Vou descontar do seu salário! — ele grita se recompondo.

— Você não faria isso com a sua neta preferida. — Rio da audácia e saio pela porta.

Tenho trabalhado com entregas para ele desde que fui morar sozinha. Não há muita demanda de entregas, a maioria das vendas é feita direto na loja. Não ganho muito, mas também não tenho muitas despesas. Gosto de ter meu próprio espaço, embora eu passe a maior parte do tempo na estrada.

Estou com o pingente de novo, mas a conversa me deixou com os nervos à flor da pele. Percebo que a chuva já passou agora. Me dirijo ao beco ao lado da loja, e acendo um cigarro para voltar aos eixos. Embora eu tente descontrair, o que houve com a minha mãe é um assunto que ainda me tira o sono.

Depois de tudo que aconteceu, meu pai me entregou para Lewis e nunca mais voltou. A dor que isso me trouxe é completamente diferente da morte da minha mãe. Está carregada de ressentimento.

Jogo a bituca no chão, viro para ir embora e me assusto. É Ryan de novo. Seus cabelos pretos na altura do ombro, sempre soltos, hoje estão presos. Ele tem olhos de cores diferentes, um castanho e um verde. Sempre achei que essa característica deixa ele mais bonito. Nos encaramos em um silêncio estranho. Por que diabos ele está aqui? Ele levanta um saco preto. Lixo, entendi, estou bloqueando a passagem para o lixeiro. Passo por ele e subo na moto. Enquanto ponho o capacete, olho uma última vez para ele, que agora está com uma das mãos na nuca. Parece nervoso.

***

Chego ao meu apartamento, e sou recebida pelo familiar cheiro de mofo. O papel de parede descascando, para combinar com o piso marrom escuro, que não tenho certeza se deveria ter essa cor. O tempo fez um belo trabalho.

Minha cama ainda desfeita, está um pouco iluminada pela luz que vem da janela atrás dela. Penduro minha jaqueta atrás da porta e tomo um banho frio. Visto a primeira peça que encontro: uma camisola pequena demais para o meu tamanho. Encosto uma cadeira na maçaneta da porta, agora que sei como a segurança do apartamento é ruim. Não quero acordar e perceber que levaram todos os meus móveis. Volto para a cama e demoro a pegar no sono.

***

Acordo horas depois com batidas apressadas na porta. O relógio de parede me informa que são quatro da manhã. Por quê tem alguém me chamando a essa hora? Me levanto e na pressa acabo não usando nada para cobrir melhor o corpo. Afasto a cadeira e abro a porta apenas o suficiente para ver quem é.

— Ryan? — Abro mais a porta e percebo meu erro no mesmo instante. Ryan passa os olhos por mim. Me encolho, com o constrangimento, e puxo um sobretudo de trás da porta para vestir. Ele pigarreia, e se pensa algo sobre o que viu, ele não diz.

— Lewis quer que você me acompanhe.

— Está tudo bem com ele? — Começo a me desesperar.

— Está, mas seu pai está esperando na casa dele.

Como eu disse, diálogos não são o forte de Ryan. A casualidade com que ele fala isso faz parecer que eu vi meu pai ontem, e não há mais de doze anos. Não quero vê-lo. Ainda assim me preparo para sair, com um mau pressentimento do que me aguarda. Como se refletisse meus sentimentos, a chuva lá fora volta a cair.

Cidade do SolOnde histórias criam vida. Descubra agora