HALEY
Tinha que fazer tanto frio nessa droga? Dirigi por pelo menos duas horas (numa estrada terrivelmente esburacada) e meus dentes estão quase batendo de frio. Sempre me senti melhor dirigindo, a liberdade de poder ir para qualquer lugar me acalma os nervos. Mas imaginei que hoje não seria suficiente, por isso vim para um lugar especial.
Ainda na moto mas já parada, acendo um cigarro, enquanto olho a paisagem. Consigo ver minha província e a província vizinha daqui de cima. A Província de Marte. Mais ao longe os prédios da Cidade Solar se destacam, o Rio Espelhado serpenteando entre eles. É uma visão e tanto.
Desço e vou em direção ao pequeno monte de pedras adornado de flores, onde o nome de Maeve Storm está gravado em uma placa de madeira. É aqui que eu venho quando sinto saudades, e tudo parece demais pra mim. Ponha mais uma flor ao lado.
Minha mãe me trouxe aqui uma vez, ela amava esse lugar. Lembro que na ocasião eu só conseguia pensar em como estava cansada depois da caminhada que fizemos após descer do trem. Meus pensamentos infantis vagueavam pela vontade de ter algo que me levasse a qualquer lugar.
Depois disso comecei a ajudar meu avô em tudo que ele precisava, então pude guardar uns trocados. Muitos anos depois comprei minha moto, uma Royal Enfield Himalayan. Minha Dalila. Somos inseparáveis desde então.Trago meu cigarro e a fumaça dança pelos meus pulmões. Penso na conversa de hoje cedo. Eu não deixaria Lewis sozinho agora. Embora eu tenha certeza que Ryan cuidaria bem dele, já que tem sido uma ótima companhia para o meu avô, e os dois se dão realmente bem. Tudo seria mais fácil se minha mãe ainda estivesse aqui.
Fico olhando a vista por um tempo, a diferença entre as províncias e a capital é gritante. Jogo meu cigarro na grama úmida da manhã. Dou partida na moto e me preparo para voltar a estrada. Passo minha mão sobre o tanque da moto.
— Dalila, nosso passeio ainda não acabou.***
As ruas da Província de Marte estão piores do que eu lembrava. As casinhas modestas, que abrigam pessoas simples parecem que vão desabar. A lama causada pela chuva cobre toda a estrada.
Encontro a casa sem dificuldade, apesar de simples, tem todo tipo de planta enfeitando sua entrada. Uma cerca baixa com uma pintura branca descascada separa o singelo jardim da rua. Guardo Dalila no espaço que Helena reservou para ela.
Minha mãe tinha uma única amiga. E sempre me arrastava junto nas suas visitas a ela. Helena é filha dessa amiga, ela é um pouco mais velha que eu, mas com o tempo acabamos ficando amigas também. Da última vez que a vi, ela me contou que estava grávida do segundo filho. Ela e o marido estavam radiantes. Então, na vinda para cá passei no mercado e comprei algumas coisinhas para o bebê.
Bato na porta e sou recebida por Oliver, o filho mais velho de Helena. O garoto deve ter por volta de cinco anos, ele parece inquieto.
— Oliver! Como você está? Sua mãe está em casa? — Pergunto ao menino.
— Oi, Haley. Ela está, vou avisar que você está aqui. — Ele entra correndo e em seguida Helena aparece, ela dá um sorriso triste.
— Haley, que surpresa boa! Venha, entre. — Ela se afasta da porta me dando espaço para entrar.A casa é menor que o meu apartamento. Há uma sala que é ao mesmo tempo quarto. E os outros cômodos são uma cozinha e o que eu acredito que seja um banheiro. O pouco espaço deixa tudo muito próximo.
— Eu trouxe algumas coisinhas para o bebê, espero que goste. — Os olhos de Helena estão tão tristes que não sei como reagir. Então percebo algo que não vi antes, Helena não tem mais a barriga de grávida. Puxo ela para um abraço e ela desaba em choro. Depois de um tempo ela se acalma e começa a falar.
— Aconteceu muita coisa desde aquele dia, Haley. — Ela se afasta limpando as lágrimas do rosto com as mãos. O que poderia ter acontecido para a situação chegar a esse ponto? — Eu estive doente a pouco menos de dois meses e o vírus acabou afetando o bebê.
— Vocês não conseguiram uma curandeira? — Lembro-me de como ela estava feliz com a vinda do filho e sinto uma pontada no coração.
— Sim, conseguimos, ela tentou ajudar. Eu repousei e tive o cuidado que pude ter, mas a dieta era um problema. — Ela não consegue olhar para mim enquanto fala, mas imagino o quanto está sendo doloroso contar tudo isso. Reviver um pesadelo. — Ela disse que sem o acompanhamento de um médico seria muito difícil que o bebê sobrevivesse. E ainda que isso fosse possível, talvez ele ainda teria que conviver com as sequelas.
— Sinto muito pela sua perda, Helena.Sem clima para continuar a conversa, não demoro muito e vou embora. É lamentável a situação em que as pessoas das províncias vivem. Volto pelo caminho mais longo, por que sinto que minha cabeça está mais cheia agora do que quando saí da casa do meu avô.
***
As primeiras estrelas aparecem no céu quando chego em casa. Abro a porta e quando acendo a luz meu coração quase pula pela boca.
— Esperei a tarde inteira. — Ryan está sentado na minha cama com as costas na cabeceira e cruza mãos atrás da cabeça. Os cabelos se rebelando com o ato. Pelo menos tirou as botas.
— Que inferno, Ryan! Você quase me matou de susto! — Meu coração volta ao compasso normal e então me dou conta de que ele não deveria estar aqui.
— Antes que pergunte, eu estou aqui por que não concordo com a sua decisão. — Mas é muita coragem. Cruzo os braços sobre o peito.
— Não vejo como isso pode ser da sua conta. — Respondo fechando a porta. — E levanta da minha cama. Tem um sofá bem aqui. — Digo apontando para o sofá. Ele levanta as mãos em rendição, calça as botas e senta onde eu sugeri.— Só estou dizendo que não é a escolha certa, Haley. — Ele abre os braços sobre o apoio de costas do sofá. Não tem jeito.
— Para alguém que não fala nada você está muito tagarela hoje. — Falo enquanto eu sento na cama. Ainda de braços cruzados.
— Eu falo quando é necessário, por exemplo quando alguém está prestes a fazer uma burrice. — Não estou acreditando no que estou ouvindo.
— Você não sabe do que está falando. — Respondo perdendo a paciência. Ele balança a cabeça.
— Haley, você não quer viver a vida inteira nesse buraco. Ninguém quer.— Ele diz e tem algo nos seus olhos que não consigo identificar.
— E se eu quiser, Ryan? Por que você se importa? — Respondo ficando de pé. Ele não levanta mas se projeta um pouco mais pra frente, tirando os braços do apoio, juntando as mãos e colocando-as sobre os joelhos. As perna entreabertas.
— Por que eu também vou. — Por que ele acha que isso muda alguma coisa? Se bem que eu não estaria mais sozinha com Jason. Mas ainda tem a questão de Lewis.
— Não posso deixar meu avô sozinho. — Ele começa a rir e volta pra posição de antes.
— Haley, Lewis não está sozinho há muito tempo! — Não entendo o que ele quer dizer e ele interpreta minha expressão de dúvida. — Lewis tem uma namorada. Agora, por que há uns meses atrás ele tinha duas. Mas ele já se decidiu e agora está tudo certo. — Não estava esperando por isso. Mas que velho...
— Coisas grandes estão prestes a acontecer, Haley. — Ryan diz interrompendo meus pensamentos. Ele levanta e vai em direção a porta. — Você tem a chance de fazer a diferença. Não a desperdice. — E então ele vai embora.Penso em tudo que aconteceu hoje, desde a conversa com Jason, saber o que realmente aconteceu com a minha mãe, como a Cidade Solar vista do alto parecia zombar das províncias, a minha visita a Helena, e a aleatória visita de Ryan. Eu concordo com ele, e me odeio por deixar que meus problemas com Jason me cegassem para isso. Não sei se quero viver em um lugar como esse. E agora eu finalmente tenho a chance de mudar isso.
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Cidade do Sol
General FictionUma sociedade distópica, com mortes misteriosas acontecendo. Duas mulheres completamente diferentes, unidas por um propósito em comum. Há dois lados de Meridia: a Capital Solar, onde o progresso atingiu seu ápice, e as Províncias Solares, onde tudo...