ASHLEY
Minha cabeça inteira dói. Meus olhos mal abrem e ainda ardem da noite anterior. A noite anterior. Os sentimentos voltam como uma enxurrada levando meu juízo embora. Simon. Me recuso a acreditar que isso aconteceu.
Acordei em uma cama que não é minha. Observo o lugar onde estou agora, pois estava sonolenta demais para prestar atenção antes. A cama é macia e tem um cheiro gostoso, algo como... pêssego? O quarto é pequeno mas está limpo e organizado. Tem uma janela perto da cama, com cortinas barrando parte da luz. Embora esteja quase escuro, posso ver uma cômoda pequena. A tela de uma vila perto do mar está inacabada e posicionada num cavalete de frente para a janela. Há outra tela pendurada na parede sobre a cômoda com Solares pintado nele. Simon me disse uma vez que o símbolo da Cidade Solar representa esperança.
Antes que eu desabe novamente ao lembrar de Simon, a porta se abre e Emily aparece com uma bandeja do que eu acredito ser suco e algum tipo de torta, bolo talvez? Ela parece surpresa por me ver acordada. Sento na cama, de modo que eu encosto as costas na cabeceira da cama, com as pernas esticadas. É uma posição menos vulnerável do que ficar deitada, mas ainda assim sinto uma pontada de desconforto. Estou com medo e com raiva. Perdi meu melhor amigo e não faço ideia de onde estou ou de quem ela é. Não quero vê-la, não quero ter que falar com ela.
— Não achei que já estivesse acordada. — Ela diz com gentileza e quando eu não respondo ela prossegue. — Trouxe um pouco de comida para você. Eu pretendia deixar na mesa, para quando você acordasse. — Ela diz se explicando. Olho para ela com todo a raiva que consigo reunir. Ela se aproxima, põe a bandeja sobre a cômoda e senta na cama em que estou. Eu encolho minhas pernas, afastando-as dela. — Ashley, sinto muito pelo que houve, mas precisamos conversar.Sei que precisamos, mas ainda não consigo fazer isso. Aparentemente ela entende meu silêncio.
— Vou dar um tempo para você, tudo bem? Se você sair por essa porta, vai encontrar um banheiro logo na porta ao lado. Pode usar tudo o que precisar da minhas coisas. — Ela faz um gesto apontando para a cômoda.— Volto depois de algumas horas. E coma o que eu lhe trouxe, ok? — Depois do monólogo, Emily vai embora me deixando com meus pensamentos.Não quero sair do quarto, mas também sei que se eu ficar aqui enlouquecerei. Sigo as instruções de Emily e tomo um banho. Pego uma T-shirt, e uma calça jeans, e tenho certeza que ela fica mais folgada em mim do que na dona. Calço um tênis e prendo o cabelo num rabo de cavalo. Gosto do conforto da roupa, mas Suzan surtaria se me visse assim. Suzan. Ela deve estar tão preocupada. Preciso dar um jeito de voltar para casa logo.
Não como nada, pois não sinto fome. Reviro as coisas de Emily, não só para matar o tempo, mas porque se eu tiver que fugir, vou precisar de uma arma. Qualquer coisa que eu encontrar vai ser melhor do que ir de mãos vazias. Encontro muitas roupas coloridas e depois de muito esforço, encontro na última gaveta um pedaço cilíndrico de madeira, provavelmente um extensor para pincel. Não é como se fosse um sabre, como os que eu uso na esgrima, mas já me serve.
— Então além da esgrima, você também pinta? — Emily está de novo na porta, com um sorriso de lado. Ela veste uma roupa semelhante a minha, mas sua camisa amarela é exageradamente estampada. Estava ocupada demais para vê-la chegar. Me viro para ela sem jeito.
— Eu só estava olhando. — Digo envergonhada por ter sido flagrada. Guardo o sabre improvisado, com o cuidado para poder ter fácil acesso a ele depois.
— Pode ficar com ele se te fizer sentir segura. — Emily diz se aproximando, puxa um banquinho e se senta. Sei que eu deveria aceitar, mas de qualquer forma vou poder pegá-lo depois. — Eu espero que esteja se sentindo melhor agora, tem muitas coisas que você precisa saber. — Ela me olha séria, e bate na cama para que eu me sente. Ela não parece ser uma má pessoa, mas não a conheço o suficiente para ter certeza. Ainda não me sinto pronta para conversar, mas não posso mais empurrar para depois. Receosa me sento como ela pediu.— Ashley, o que o Simon falou sobre nosso encontro de ontem? — Acho que nunca mais ouvirei esse nome sem um aperto no coração.
— Apenas que ele queria que nos conhecêssemos. — Tento lembrar dos eventos da noite passada. Simon estava nervoso, é a única coisa que eu poderia acrescentar, mas disso ela também já sabe. Ela continua:
— Simon e eu não tínhamos um relacionamento como você acredita. Eu precisava conhecê-la por que tenho interesse em você. — Ela faz uma pausa para que as palavras se acentem. Ouço uma agitação que parece vir de todos os lugares. Estou confusa sobre o que ela quer dizer, mas não questiono e ela volta a falar. — Talvez você tenha se perguntado sobre que lugar é esse. Bem, aqui é um ponto de partida para um lugar maior. Muitas pessoas vem aqui por que desejam mudança para Meridia. A maioria delas só tem força de vontade, tiveram uma vida de miséria nas suas províncias. Mas Simon veio aqui por que tem um senso de justiça aguçado. Ele era uma boa pessoa. — Seus olhos estão carregados de lágrimas, e ela passa o polegar embaixo deles para afastá-las.Embora não tenham tido um relacionamento romântico, como eu acreditava, eles com certeza se tornaram amigos. Simon conquistava todos que cruzavam seu caminho.
— Ele confiava muito em você, Ashley. Ele disse que "sua bússola da justiça apontava para o Norte". — Ela faz um sinal de aspas com os dedos e ri um pouco sem vontade. Não sei como me sentir em relação a tudo isso, mas tenho medo de onde isso está me levando. No que Simon nos meteu? De repente lembro das palavras da noite anterior. Sou um homem de muitos mistérios. Ele estava brincando na hora, mas agora percebo que tinha um fundo de verdade. — Ele quis desde o começo que você viesse para cá. Mas tivemos que esperar um pouco. — Ela faz uma pausa avaliando o que vai dizer. — Não queria que tivesse acontecido assim, Ashley.
São coisas demais para assimilar, e coisas demais que ainda não sei. Reúno coragem para perguntar:
— O que realmente aconteceu com Simon? Como aquilo aconteceu? — Emily balança a cabeça olhando para as mãos que repousam no colo.
— Sabe por que esse lugar existe? — Ela não espera que eu responda e continua. — Aqui, nós aprendemos e desenvolvemos nossas habilidades de combate. Tem pessoas que não querem as mudanças que nós tanto buscamos. E elas podem ser... perigosas. Elas são conhecidas como Fúrias, e perseguem pessoas como nós. Duas delas estavam no restaurante ontem. E durante a luta, uma delas empurrou Simon. Eu consegui pegá-la, mas não fui rápida o suficiente. — Ela fala com a voz carregada de culpa. Simon sempre foi esperto, não entraria nisso sem conhecer os riscos. Ele entendia o que estava fazendo, e não acho que ele ia querer vê-la assim. Ponho a mão no ombro dela.
— Não foi sua culpa. — Falo da maneira mais tranquilizadora que posso. Ela levanta os olhos para mim, grata.— Eu sei que você não é a pessoa superficial que você gosta de aparentar, Ashley. — Ela me diz séria. Eu não gosto de aparentar, mas, que escolha eu tenho? — E eu sei que diferente das pessoas aqui, você não ganha muito se juntando a nós, mas Simon confiava no seu julgamento e eu confio também. Fora da Cidade Solar as pessoas morrem aos montes, de fome, de doenças, de várias maneiras desumanas. Estamos lutando pelo fim de tudo isso, e você tem muito a acrescentar a nossa causa. É importante para nós tê-la ao nosso lado. A verdadeira Ashley, a Ashley que Simon queria aqui. — Ela se levanta e vai em direção a bandeja que continua no lugar em que ela deixou, intocada. — Você pode ir para casa hoje, vou pedir para alguém levá-la. Mas não conte para ninguém o que sabe, temos medidas para delatores que você não vai gostar. Você poderá voltar quando quiser, vou providenciar isso também. Espero que o nosso próximo encontro, seja por que quer ser uma Sombria como eu. Se não pela nossa, faça pela sua liberdade. — Ela vai embora, e minutos depois um homem chega, ele parece ter o dobro da minha idade. Acompanho ele. Chegou a hora de ir para casa.
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Cidade do Sol
Fiksi UmumUma sociedade distópica, com mortes misteriosas acontecendo. Duas mulheres completamente diferentes, unidas por um propósito em comum. Há dois lados de Meridia: a Capital Solar, onde o progresso atingiu seu ápice, e as Províncias Solares, onde tudo...