ASHLEY
Nos aproximamos do carro. Onde está o motorista? Será que as Fúrias o pegaram? Enquanto estou paralisada Emily abre a porta do motorista e entra.
— Você não vem? — Entendi, Emily é a motorista. Sento no banco do passageiro enquanto meus batimentos normalizam. — Se eu fosse você colocaria esse cinto. — Ela diz com um sorriso suspeito. Spoiler: meus batimentos só normalizaram quando desci do carro.***
— Nunca vou esquecer sua cara! — Emily gargalha agitando a chave na mão. — Talvez a gente deva fazer um passeio como esse mais vezes. — Olho para ela com os olhos arregalados. Não sei se eu sobreviveria a mais uma viagem com Emily. Ela é completamente maluca ao volante.
Passamos pelo portão e o porteiro diz algo a Emily, pela careta que ela faz não parece ser algo agradável. Depois de uma breve caminhada, entramos e dessa vez observo o ambiente em que estou. Da primeira vez que estive aqui cheguei inconsciente, e na saída tinha coisa demais na cabeça para conseguir me atentar a isso. Estamos no que parece uma recepção, tem apenas dois sofás, uma mesa de centro e um quadro de Solares pendurado na parede, quase igual ao do quarto de Emily. Ela me convida a sentar e entra na sala ao lado, depois volta com um caderno na mão e coloca na mesa.
— Então, Ashley, tem algumas regras aqui que todos nós devemos seguir. — Ela senta a minha frente e cruza as pernas, de modo que seus pés estão sobre o próprio sofá. — Antes de qualquer coisa, sua pulseira fica comigo. — Ela estende a mão esperando que eu entregue, a pulseira tem um sistema que impede que ela seja removida por alguém que não seja o dono.*
É difícil me desapegar quando uso ela desde a adolescência. Receber a pulseira é um evento. Tiro do pulso e entrego, relutante.
— Além disso todos aqui ajudam nas tarefas domésticas, e logo você saberá quais serão suas funções. — O modo como ela fala evidencía que ela repete isso com frequência. Algumas tarefas domésticas não serão um problema para mim. Suzan e eu as dividíamos em casa também.— Três refeições por dia serão servidas no refeitório, mas dependendo da sua necessidade você pode solicitar mais alguma coisa para comer. Além disso, sempre terá treinadores na academia, alguns mais vezes que outros, mas independente da presença deles, você pode ficar lá o tempo que quiser. — Ela pega o caderno que pôs na mesa. — Isso nos leva ao próximo tópico. Você pode ficar o tempo que quiser, mas temos um toque de recolher, então se atente ao horário. Nem todo mundo aqui vai ser gentil com você.
Além de Emily, só conheci o motorista e o porteiro, e estes não falaram comigo mais do que o necessário. Sei que não vou receber gentileza por aqui, e isso me frustra um pouco. Ela abre o caderno e procura por algo. — Aqui diz que o quarto... 11 está disponível. E sua colega de quarto chegou ontem à noite. Alguma dúvida? — Ela me olha com atenção. Dividir não é algo que eu precisei fazer muitas vezes. Suzan sempre fez questão que eu tivesse minhas próprias coisas. Ela não é muito boa em dividir. Mas talvez seja legal ter por perto alguém que também acabou de chegar.
— Hum... — Pauso pensando nas melhores palavras para continuar. — Você disse que esse lugar é um ponto de partida para outro. A que outro lugar você se refere? — Seus olhos verdes me encaram com uma expressão que não consigo ler.
— Não é importante agora. Por hora é só isso, Ashley, vou mostrar a você onde ficam os dormitórios.Emily me guia até o corredor dos dormitórios femininos e depois vai embora. Procuro o quarto de número 11. Giro a maçaneta da porta e entro. O quarto minúsculo tem duas camas de solteiro e uma cômoda entre elas. É cedo demais e minha colega ainda dorme. Fico feliz por adiar nossas apresentações. Não consigo vê-la direito, por que os cabelos cobrem parcialmente o rosto virado para a parede. Abro a primeira gaveta da cômoda e já está ocupada. Fecho a gaveta e passo para a terceira, que está vazia. Abro minha mala e começo a guardar minhas coisas.
É tarde demais para voltar a dormir, e muito cedo para comer de novo. Então vou direto para a academia. Não demoro muito para encontrá-la. Um homem já está treinando quando eu chego, ele é alto e mais velho que eu, ele tem um certo charme. Não falo nada e começo meu treino. Minutos depois o homem se aproxima.
— É seu primeiro dia? — Ele pergunta e eu me assusto com a proximidade, não percebi que ele estava tão perto. Respondo que sim e ele continua o treino perto demais. Me afasto, pego minha espada e repito os movimentos até a treinadora chegar. Ela é uma mulher relativamente baixa, tem a pele negra e longos cabelos castanhos e cacheados. Ela me olha feio, mas não diz nada. Mais pessoas chegam para treinar, e esperam as instruções da treinadora.
Uma mulher com mais ou menos a minha idade me chama a atenção. Ela é muito familiar. Parece com Elisa, a mãe de Simon. Seu cabelo é preto e curto. Ela usa uma camiseta cinza, calça jeans preta e coturno. Tem um rosto muito bonito. Está acompanhada de um homem, um pouco mais alto que ela, cabelos na altura dos ombros e a barba de alguns dias por fazer. A mulher olha para mim e eu percebo o motivo da familiaridade. É Haley, a prima de Simon. Será que ela também me reconheceu? Ela desvia os olhos para a treinadora, que começa a falar.
— Estou vendo alguns rostos novos hoje, outros nem tanto. — Ela lança um sorriso atravessado ao homem que acompanha Haley. — Mas acho melhor me apresentar. — Ela faz uma pausa. —Meu nome é Raven, e estarei aqui com um grupo pela manhã e um pela tarde, às terças e quintas. Que são os dias de treino com armas de fogo. Aqueles que já passaram por a aula introdutória podem se dirigir ao estande. James vai auxiliar vocês. — James é o homem que falou comigo mais cedo, ele toma a frente e desce por uma entrada que dá para o subsolo, a maioria dos rebeldes o segue. Nosso grupo foi reduzido a quatro. Além de Haley, uma menina loira e alta de uns dezoito anos, e um homem baixinho que começa a apresentar calvície nos cabelos pretos, que deve ter mais ou menos trinta e cinco anos, e, é claro, eu.
Raven começa a explicar os diferentes tipos de arma e a quais situações elas se adequam melhor. Depois dá para cada um de nós uma pistola, e mostra como carregar, segurar, mirar e disparar a arma corretamente. Tenho certa dificuldade em algumas etapas, mas sei que terei tempo para aprender. Raven, no entanto, olha para mim como se eu fosse um insulto a arte de recarregar pistolas.
— Você não vai durar muito tempo se continuar assim. — Ela me diz e repete o movimento impacientemente. Haley olha para mim mas desvia os olhos e continua sua tarefa de recarregar a arma. Fico um pouco envergonhada. Lembro da última vez que a vi, será que ela ainda se ressente pelo que houve entre nós? Quando o treino acaba tomo um banho e vou almoçar.
Não tive dificuldade em encontrar o refeitório, foi só seguir direto pelo corredor dos dormitórios. Inclusive, descobri que os dormitórios masculinos ficam ao lado, e também dão para o refeitório, fazendo uma perfeita simetria. A sopa de origem duvidosa não tem um gosto muito bom, mas sento sozinha e como mesmo assim. Alguém se aproxima de mim e senta ao meu lado. James, o outro instrutor. Perto demais de novo.
— E aí? Como foi a aula com Raven? — Ele pergunta com uma vontade de conversar que não tenho.
— Foi legal. — Respondo me esforçando para demonstrar desinteresse.
— Posso dar umas aulas extras a você se quiser. — Não sei o que ele quer, mas normalmente as pessoas não saem oferecendo nada sem querer algo em troca.
— Estou indo bem na aula da Raven. Obrigada. — Respondo torcendo para que ele vá embora logo.
— Eu posso ser um ótimo professor. — Ele insiste e pisca tentando parecer sedutor. Que droga. Não gosto disso mas não quero causar alvoroço e causar uma má primeira impressão.— Você é o James, não é? — Alguém fala e ele vira para ver quem é. Tento olhar também mas minha visão está bloqueada por ele. — Ouvi alguém chamando por você na academia. — Me esforço um pouco mais e vejo minha salvadora. É Haley, com os braços cruzados. O homem olha para ela e semi cerra os olhos.
— Não deve ser nada importante. E eu estou ocupado. — Ele vira para mim com um sorriso, que estou começando a odiar.
— Não sei, parecia bem importante sim. — Haley insiste. Ele olha para ela claramente insatisfeito, mas ela parece não se importar. James se volta para mim de novo.
— A gente conversa depois, ok? — Ele me diz com uma simpatia forçada que me irrita e vai embora. Fico aliviada por vê-lo ir, e nervosa por ter que encarar Haley de novo. Ela toma o lugar dele ao meu lado.— Há quanto tempo, Ashley? — Ela olha para mim com um sorriso desconcertado enquanto brinca com o pingente no pescoço. Acho que agora teremos a conversa que deveríamos ter tido há muito tempo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Cidade do Sol
General FictionUma sociedade distópica, com mortes misteriosas acontecendo. Duas mulheres completamente diferentes, unidas por um propósito em comum. Há dois lados de Meridia: a Capital Solar, onde o progresso atingiu seu ápice, e as Províncias Solares, onde tudo...