Capítulo 02 - Encontros e Despedidas

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ASHLEY

Saio do banho, com as energias renovadas, aliviada por tirar todo aquele suor do meu corpo. Minha aula de esgrima hoje foi mais intensa que o normal. Meu ataque tem melhorado muito, fruto de toda minha determinação e esforço.

Me preparo para sair com Simon, meu melhor amigo. Nos conhecemos desde os oito anos. Ele estava acanhado por estar numa escola nova, mas ainda assim sentou comigo no almoço. No dia seguinte também. E foi assim até a nossa formatura. Hoje estamos indo a um jantar, ele quer que eu conheça uma pessoa especial. Depois de muita insistência, eu acabei cedendo.

Faço uma maquiagem simples, prendo meu cabelo em um coque, mas desfaço e o deixo semi preso. Depois de vestir o vestido azul claro que vai até meus joelhos, calço meus saltos, que apertam meus dedos, mas combinam com a bolsa. Não gosto disso, mas ser diferente das pessoas por aqui atrai muito mais atenção. E atenção, definitivamente, não é algo que eu queira.

Saio do quarto, desço as escadas e encontro Simon no sofá da sala, com a elegância de sempre e um sorriso no rosto. O suéter de gola alta o veste perfeitamente bem, mas esse não é o único motivo para usá-lo. Ele tem os números 0070 gravados na nuca. Uma tatuagem que ele fez escondido meses atrás e agora é um segredo nosso. Ironicamente a Cidade do Sol, é fria o ano inteiro, então ninguém nunca suspeitou.

Minha irmã mais velha, Suzan, faz companhia a ele. Ela trabalha na área de TI, mais especificamente em desenvolvimento de Software. Somos o completo oposto uma da outra. Meus cabelos são ondulados e castanhos cobre, os dela são lisos e pretos. Minha pele é bronzeada, a dela completamente pálida. Meus olhos são redondos, e os dela são amendoados. Me pareço com nosso pai, ela com a nossa mãe. Temos sido só nós duas há bastante tempo.

— Espero que Emily não se sinta intimidada, Ash. Você está linda, como sempre. — Apesar das brincadeiras, Simon é sempre educado.

— Emily? Sério, Simon? Depois de meses saindo juntos, descubro o nome dela por que você falou sem querer? — Digo em um tom descontraído.

— Meses? Como um tagarela como você conseguiu manter a boca fechada por tanto tempo? Ou, o que é mais intrigante ainda, como não foi dispensado no primeiro encontro? — Suzan não mede as palavras, mas nós três sabemos que ela está apenas brincando. Simon ri, e responde:

— O que posso fazer? Sou um homem de muitos mistérios. — Ele finge olhar para o nada, como se isso provasse suas palavras.

— Se apresse, Houdini. Não quero causar uma má impressão em Emily. — Digo puxando ele para fora.

Saímos e avistamos nossa esfera se aproximar, ela é completamente branca. Simon aproxima a pulseira da esfera e uma abertura surge. Damos tchau para e entramos. Diferente dos carros antigos, uma esfera não precisa de motorista e como quase tudo na capital, é movido a energia solar. Seu interior é limpo e confortável, e toca uma música suave. Simon marca nosso destino no minimapa, e então estamos em movimento. Ao meu lado, Simon parece ficar tenso.

— Algum problema? — Pergunto preocupada.

— Não, mas espero que vocês se deem bem. Não quero ver vocês brigando pela minha atenção. — Reviro os olhos e ele sorri.

Sei que ele está nervoso, e não quero forçar. Emily deve ser mais importante do que ele deixou transparecer. Isso explica a insistência para que eu o acompanhasse hoje. Ele me conhece bem e sabe que não sou muito boa em conhecer pessoas novas.

A vista da Cidade Solar é linda. O Rio Espelhado, a corta de uma extremidade a outra e sua água é tão limpa, que se eu estivesse perto conseguiria ver a areia branca no fundo. Mas dessa distância, o que consigo ver é o reflexo dos prédios altos com os formatos ousados cobertos por vegetação. Esferas vem e vão.

Chegamos ao destino, nosso prédio não é tão alto. Olho para cima, e avisto algumas pessoas em cima do prédio, suas cabeças cobertas por capuzes. Elas me veem e se afastam do parapeito. Estranho.

Simon e eu pegamos o elevador para a cobertura, e entramos no restaurante onde esperamos por Emily.

— Por que não estava na esgrima hoje? — Pergunto, pois isso não é algo comum. Estamos sentados, em uma mesa ao lado da janela de vidro, que nos dá uma visão do Rio Espelhado e dos prédios iluminados da cidade.

— Meu pai pediu ajuda com assuntos da família. — O pai de Simon não é um homem simpático, então eu sei que "pediu" significa que ele mandou. Simon é uma pessoa muito justa, a natureza contrária do pai é algo que sempre o incomodou.

Joseph é, na verdade, padrasto dele, mas ele ainda o respeita como pai, embora saiba eu ache que o padrasto não merece. Não sei exatamente no que ele trabalha, assim como todos os cargos políticos, sua função no prédio executivo é um segredo. Mas ele tem

— Na verdade você está sendo modesta, Ash. Nossos duelos sempre acabam em um empate e muita exaustão. — Começo a ficar sem graça. Não gosto da atenção, e ela nota meu desconforto.

O garçom se aproxima com nosso jantar. Respiro aliviada por não precisar continuar com o assunto. Olho para o conteúdo do prato, o verde complementando o laranja: carpaccio. De peixe, não de carne. Esta é sempre a entrada que Suzan pede, e agora é a minha também.

— Você sabe por que eu precisava conhecê-la, não sabe, Ashley? — Que tipo de pergunta é essa?

— Bem, as coisas parecem ter evoluído no relacionamento entre vocês dois. Simon e eu somos como família. Então... — Paro de falar por que ela começa a rir. Olho para Simon mas, de repente a vista do rio é importante demais para que seus olhos encontrem os meus. Percebo que algo não está certo.

No pulso de Emily a tela de sua pulseira acende. Uma mensagem. Ela verifica ainda rindo, seu sorriso se desfaz e em seguida ela troca um olhar nervoso com Simon. Não entendo o que está acontecendo.

— A gente vai precisar sair um pouco, mas voltamos logo. Espere aqui, ok? — Emily está tensa.

— Aonde vocês vão? — O que está havendo?

— Sinto muito, Ash, voltamos logo. — Preocupado como eu nunca vi, Simon sai no encalço de Emily. Os dois somem na escada que leva para o terraço.

Minutos depois algo pesado e grande cai de cima do prédio, passando pela minha janela. Me levanto assustada e Emily surge ao meu lado, me puxando para a saída. Seu rosto está machucado e seu coque se soltou. Mechas douradas emolduram seu rosto.

— Onde está Simon? — Pergunto, pois ele não está com ela.

— Precisamos sair daqui! — Penso em recusar, mas o desespero de suas palavras e as pessoas que começam a nos olhar me fazem ceder.

Na saída do prédio uma multidão se acumula. Minha intuição grita para que eu me aproxime também. Emily tenta me segurar, mas me solto e abro caminho em direção ao centro do tumulto.

Nada no mundo poderia ter me preparado para a aquela cena. NÃO, NÃO, NÃO. Não consigo mover um só músculo. Aos meus pés, uma enorme poça de sangue se espalha, e sobre ela, está o corpo sem vida de Simon.

Não posso acreditar no que vejo. Seu rosto deformado pelo impacto está encostado no chão. Os dentes brancos e perfeitos agora estão cobertos pelo sangue que escorre da sua boca. Os olhos sem vida encaram os prédios.

O desespero toma conta de mim, e me atiro sobre ele. As lágrimas molham meu vestido, e o sangue pegajoso alcança meus dedos. Minutos ou horas podem ter passado, mas as lágrimas continuam a vir.

Não entendo. Como isso pode ter acontecido? Por que isso está acontecendo?

Contra minha vontade, Emily me leva, e eu paro de lutar.

Não há nada que eu possa fazer agora.

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