ASHLEY
Haley espera por minha resposta enquanto olha para mim ao meu lado. O refeitório está quase vazio agora. Tomo coragem e respondo:
— Já fazem muitos anos.
— Confesso que estou surpresa de vê-la aqui, Ashley. — Ela diz amigavelmente. O tom dela não me tranquiliza, muito pelo contrário, me deixa alerta. Limpo a garganta e pergunto:
— E por que não? — Afasto o prato porque não há possibilidade de continuar meu almoço. Pelo brilho nos olhos de Haley eu fiz a pergunta que ela queria ouvir.
— Você não é o tipo de pessoa que sai da zona de conforto. E aqui... — Ela olha em volta. — Não é um lugar muito confortável. — Ela não está errada. E eu sabia que as pessoas pensariam isso de mim aqui, só não imaginei que a primeira vez que eu ia ouvir isso sairia da boca dela.
— Algumas mudanças são necessárias. — Respondo querendo por fim a provocação. Gosto de Haley, mas não tenho que aceitar isso.
— Sabe, Ashley, tem muita coisa ruim acontecendo por Meridia. Qualquer um que esteja aqui tem muitos motivos para isso. Mas você saiu da capital, e está aqui lutando pela mesma causa que nós... — Ela faz uma pausa e fico ansiosa pelo que vem depois. — Você tem muita coragem, e eu respeito isso. — Solto o ar que não percebi que prendia, a opinião dela não deveria importar, mas fico feliz mesmo assim.— Mas ainda acho que isso é mais a cara de Simon. — Ela diz com um sorriso, e algo se quebra dentro de mim. A tensão que eu sentia diminuir, volta a aumentar. — Como ele está? Continuam inseparáveis? — Meus olhos buscam o chão. Ela não sabe. Como saberia?
— Simon foi um de nós, mas as Fúrias... — As palavras entalam. Não consigo continuar, e sei que não preciso. Todos nós sabemos o que acontece quando uma Fúria cruza o caminho de um Sombrio. Quando Haley não responde olho para ela. Seus olhos estão distantes e consigo sentir a tristeza no ar. — Sinto muito, Haley.
— Obrigada. — Ela diz depois de um tempo, enquanto esfrega o dorso da mão nos olhos, afastando a umidade. — Isso deve ter sido mais difícil ainda para você.
— Ainda está sendo. — Ficamos em silêncio por alguns minutos. Ela brinca com o colar no pescoço, com um pingente de Solares.— Você já passou pelo Rito? — Haley pergunta deixando o assunto anterior para trás. Não sei do que se trata, e minha expressão deve ser de confusão por que ela começa a explicar.
— Todos os Sombrios tem uma tatuagem com os números 0070. A maioria faz na nuca, mas você pode escolher onde faz. — Lembro da tatuagem de Simon, então foi assim que ele conseguiu. —Nós até podemos ser rebeldes, mas não seremos Sombrios até que o Rito aconteça, pelo menos foi isso o que Ryan me contou. — Ryan deve ser o homem que estava com ela no treino mais cedo. Será que são... — Ele não é meu namorado. Se é isso que está pensando. — Era exatamente o que estava pensando antes dela interromper meu raciocínio, mas não comento. Ao invés disso pergunto:— Você sabe para onde as pessoas vão a partir daqui? — Emily me disse que este lugar é um ponto de partida, mas se recusou a compartilhar mais do que isso. Mas Haley parece ter informações que eu não tenho, e eu vou tê-las de qualquer forma.
— Uma fortaleza ao Norte, dizem que há centenas de Sombrios por lá. — Ela tem uma expressão de incredulidade enquanto fala. — Lá é o coração da revolução. É pra isso que nós somos treinados, é lá que as coisas realmente acontecem. Como você ainda não sabia?
— Não devo ter me atentado, talvez. — Me pergunto por que Emily me escondeu isso. — Tive dias agitados.— Eu entendo. — Ela assente, sabe a que agitação eu me refiro. Ela verifica o relógio de parede do refeitório. — Droga! Tenho um compromisso agora, Ashley. A gente se vê logo, certo?
— Claro. — Respondo e quando penso que ela vai embora, ela vira de novo e pergunta:
— Qual é o seu quarto mesmo?
— Número 11. — Minha língua age mais rápido do que meu cérebro. Ela sai com passos apressados. O que será que ela vai fazer com a informação? Embora, isso não tenha sido o desastre que eu achei que seria. Talvez eu esteja criando desgraça onde não existe. Ou talvez, ela só não quis ter a conversa agora. Não consigo afastar a sensação de que ela vai tocar no assunto em breve. Afinal, ela acabou perdendo muito por minha causa.***
Volto para o quarto sem saber direito para onde mais ir. Não quero encontrar James na academia de novo. Aparentemente minha colega pensou em fazer a mesma coisa. É a menina que estava na academia hoje. Talvez "menina" não seja o termo mais adequado para descrevê-la. Ela estranhamente parece jovem e mais velha ao mesmo tempo. Está cantarolando enquanto olha um papel. Ela dá um pulo quando me vê e abre um largo sorriso.
— Ei, você deve ser a Ashley, certo? — Ela estende a mão na minha direção. — Eu sou a Jessica, vou ficar nesse quarto também. — Jessica tem uma alegria contagiante. Gosto dela imediatamente.
— Sou a Ashley sim. — Respondo tentando parecer amigável.
— Emily passou aqui a alguns minutos atrás, ela trouxe a lista de tarefas. — Ela vira o papel na minha direção. Terça-feira: Louça do almoço. Leio as palavras à minha frente. — Nós vamos fazer isso juntas. — Ela diz com empolgação.
Quando chegamos a cozinha encontramos pilhas enormes de pratos e muitas panelas. Suzan e eu nunca tivemos tanta louça. Levamos muito tempo para terminar mas Jessica preenche com muita conversa. Como eu disse, Jessica parece jovem mas não é tanto assim, na verdade ela é mais velha que eu. O que eu achei que fosse dezoito pulou para vinte e seis. Ela acabou deixando a filha pequena com o pai. Ela diz que não foi uma decisão fácil, mas acabou tendo que fazer isso. Não acho justo com a criança, mas também não acho que seja da minha conta. Pelo que tenho ouvido, a vida nas Províncias obriga as pessoas a fazerem muitas coisas difíceis.
Penso em treinar um pouco, mas quando chego na academia James e Raven estão juntos, as duas pessoas que eu menos quero ver. Sentados no tatame, ambos parecendo cansados, talvez tenham acabado uma luta. Eles conversam tão próximos que por um segundo me preocupo que ela esteja na mesma situação que eu estive mais cedo. Mas então ela põe a mão na perna dele e começa a rir de algo que ele falou. Volto para o quarto antes que eles me vejam. O resto do dia voa depois disso.
Os dias seguintes não foram tão diferentes, na quarta tivemos aula de combate corpo a corpo, e me saí bem melhor do que na aula anterior. Pela tarde, Jessica, uma dupla de homens e eu ficamos responsáveis pelo jantar, descobri aí que somos por volta de 60 pessoas na base. Na quinta, tivemos nossas atividades pela manhã, e cuidamos da horta. Emily apareceu para nos dar uma força, e Jessica tagarelava quando eu cheguei. As duas se olharam e começaram a rir da minha roupa, um macacão jeans, uma T-shirt branca e um tênis branco. Alguns minutos depois a cor original do tênis era um mistério para quem visse. Jardinagem não era uma tarefa dividida entre mim e Suzan. Pela tarde, aula de tiro com James e Raven. James sempre parecia ter algo para corrigir no meu jeito de atirar, embora eu saiba que era só uma desculpa para se aproximar. Depois de algumas vezes recusando ajuda ele se deu por vencido e me deixou em paz. Haley tem uma mira muito boa, cheguei a pensar que ela já atirava antes, mas ela não pulou a aula introdutória, então acredito que é um talento nato. Não conversamos mais depois do encontro no refeitório, e me sinto um pouco desapontada. Dessa vez eu mesma tomarei iniciativa. Amanhã, penso.
Hoje é sexta, dia de lavar banheiro. Eba. Fico mais tranquila quando penso que pelo menos a aula hoje é de comunicação segura e não é tão cansativa como combate e defesa. Banheiros lavados, banho tomado, almoço devorado, me dirijo a aula. Com uma breve espiada constato que Haley não está, deve ter feito a aula pela manhã. Os principais tópicos são sobre criptografia e uso de códigos. Parece o tipo de coisa que se aprende e nunca é usado, mas sendo um rebelde, nunca se sabe.
Mais tarde, acordo com alguém entrando no quarto. Meu coração se agita. É Emily, está escuro mas reconheço a silhueta pela luz que vaza da porta. Ela não deveria estar aqui essa hora da noite. O horário do toque de recolher ficou para trás há bom tempo. Ela chega tão perto que consigo sentir o calor dela, acompanhado de um cheiro bom. Pêssego, definitivamente. O mesmo que eu senti na cama quando vim aqui pela primeira vez.
— Preciso falar com você. — Ela diz no meu ouvido. — Na minha sala. — O que seria tão importante que ela não pode esperar até de manhã? Levanto sonolenta e a acompanho.
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Cidade do Sol
Ficción GeneralUma sociedade distópica, com mortes misteriosas acontecendo. Duas mulheres completamente diferentes, unidas por um propósito em comum. Há dois lados de Meridia: a Capital Solar, onde o progresso atingiu seu ápice, e as Províncias Solares, onde tudo...