Depois de entregar nossa colheita abundante de sobras de carne para os não caçadores – os Ossudos, as crianças e as donas de casa – levo Izuku para minha casa.
Meus colegas Mortos me olham com curiosidade enquanto vamos embora. Por requerer muita força de vontade e controle, o ato de converter intencionalmente os Vivos quase nunca é realizado. A maioria das conversões acontece por acidente: o zumbi que está se alimentando é morto ou distraído antes de terminar o serviço, voro in-terruptus. O resto dos convertidos vêm de mortes tradicionais, doenças, azar ou a clássica violência de Vivos contra Vivos que ocorre fora de nossa esfera de interesses. Então, o fato de eu ter trazido este garoto não consumido e de propósito é algo misterioso, um milagre do mesmo nível de um nascimento tradicional. Kiri e os outros me dão bastante espaço nos saguões e corredores, me olhando confusos e maravilhados. Se soubessem a verdade a respeito do que estou fazendo, suas reações seriam... bem menos moderadas.
Segurando Izuku pela mão, eu o apresso para longe dos olhares que nos examinam. O levo pelo portão 12, passando pelo túnel de embarque até a minha casa, um 747 comercial. Não é muito espaçosa, a planta da aeronave não é nem um pouco prática, mas é o local mais isolado do aeroporto, e gosto de ter privacidade. Às vezes isso ativa minha memória entorpecida. Olhando para minhas roupas eu diria que era o tipo de pessoa que viajava bastante. Às vezes quando “durmo” aqui, sinto aquela sensação de quase desmaio do decolar, os jatos de ar reciclados em meu rosto e o nojo dos sanduíches frios. E então sinto a acidez do molho de limão do poisson em Paris. O queimar do tajine no Marrocos. Será que esses lugares não existem mais? Viraram ruas vazias e cafés cheios de esqueletos empoeirados?
Izuku e eu paramos no corredor central e olhamos um para o outro. Aponto para uma poltrona de janela e levanto as sobrancelhas. Mantendo os olhos fixos em mim, ele anda de costas até a fileira e se senta. Suas mãos apertam os braços da poltrona como se o avião estivesse em chamas e caindo.
Sento na poltrona do corredor e solto um chiado involuntário, olhando diretamente para as pilhas de coisas que coleciono e que estão à minha frente. Sempre que vou até a cidade, acabo trazendo comigo algo que me chama a atenção. Um quebra-cabeça. Um copo de tequila. Uma Barbie. Um vibrador. Flores. Revistas. Livros. Trago tudo para minha casa, espalho pelas poltronas e corredores e fico olhando para eles durante horas. As pilhas já chegam ao teto. Kiri sempre me pergunta porque faço isso, mas não tenho uma resposta.
— Não... comer, — grunho para Izuku olhando em seus olhos. — Eu... não comer.
Ele fica me encarando. Seus lábios estão comprimidos e pálidos. Aponto para ele, para minha boca e depois para os meus dentes ensanguentados. Faço que não com a cabeça. Ele se encolhe mais para perto da janela. Um grito de terror começa a aparecer na garganta dele. Isso não está dando certo.
— Seguro — falo para ele, soltando um suspiro. — Manter... você seguro.
Fico em pé e vou até o meu toca-discos. Abro o maleiro e procuro na minha coleção até pegar um LP. Levo o fone de ouvido comigo até a minha poltrona e coloco em Izuku. Ele continua paralisado com os olhos arregalados.
A vitrola toca Frank Sinatra. Consigo ouvir um pouco da música que sai dos fones, como um elogio distante que flutua no ar do outono. Last night... when we were young...
Fecho os olhos e me inclino para a frente. Minha cabeça balança no ritmo da música enquanto os versos flutuam pela cabine do avião, se misturando em meus ouvidos.
Life was so new... so real, so right...
— Seguro — eu sussurro. — Manter você... seguro.
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Warm Bodies | •BakuDeku•
Fanfiction[Concluído ✓] ━─────•●•─────━ Kat é um jovem vivendo uma crise existencial. Ele é um zumbi. Perambula por um Japão destruído pela guerra, colapso social e a fome voraz de seus companheiros mortos-vivos, mas Kat busca mais do que sangue e cérebros. E...