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Naquela noite, deitado no chão do Portão 12, acabo dormindo. O novo sono é diferente do antigo, claro. Nossos corpos não se cansam e por isso não descansamos. Mas, de vez em quando, depois de dias ou semanas de consciência inexorável, nossas mentes simplesmente não conseguem mais carregar tamanho peso e entramos em colapso. Nós nos permitimos morrer, desligar e não ter pensamentos durante horas, dias ou até semanas. Qualquer que seja o tempo necessário para recarregar os elétrons de nosso id e nos manter intactos por mais um tempo. Não há nada de adorável ou de sereno nesse processo; é feio e compulsório, um pulmão artificial para os chiados falsos de nossas almas. Mas, esta noite, algo diferente acontece.

Eu sonho.

Subdesenvolvido, sombrio e meio desbotado como os filmes antigos, vejo cenas da minha antiga vida passarem pelo vórtice do meu sono. Figuras amorfas caminham por portas que derretem e entram em salas escuras.

Vozes rastejam pela minha cabeça, profundas e ameaçadoras, como se fossem gigantes bêbados. Jogo esportes ambíguos, assisto a filmes incoerentes, falo e rio com sinônimos obscuros. No meio desses flashes de vida incompreensíveis, consigo ver fragmentos do passado, uma busca apaixonada que foi sacrificada no altar sangrento do pragmatismo. Guitarra? Dança? Bicicletas sujas? O que quer que fosse, não consegue penetrar na densa névoa que sufoca minha memória.

Tudo continua escuro. Vazio. Sem nome. Comecei a imaginar de onde vim. A pessoa que sou agora, este suplicante desastrado e hesitante... será que fui construído a partir das fundações da minha antiga vida, ou levantei do túmulo como uma lousa em branco? Quanto de mim foi herdado e quanto foi criado por mim nesta vida? Perguntas que antes eram apenas reflexões preguiçosas começaram a ficar estranhamente urgentes. Será que estou completamente enraizado ao que veio antes? Ou posso escolher outro caminho?

Acordo olhando para o teto lá no alto. Minhas memórias, vazias como sempre foram, tinham evaporado completamente. Ainda é noite e posso ouvir minha irmã com o novo irmão dela atrás da porta de uma sala próxima e meus pais transando na outra esquerda. Tento ignorá-los.

Infelizmente, os peguei fazendo isso mais cedo. Ouvi o barulho, a porta estava aberta e por isso eu entrei. E lá estavam eles, nus, roçando seus corpos de forma constrangedora, grunhindo e apalpando a carne pálida um do outro. Ele era flácido. Ela seca. Eles se olhavam com expressões de espanto, como se uma força desconhecida os tivesse juntado neste emaranhado de membros. Seus olhos pareciam perguntar: “Quem diabos é você?” enquanto seus corpos se mexiam como marionetes de carne.

Eles não pararam e nem mesmo tiveram nenhuma reação quando perceberam que eu estava ali. Apenas olharam para mim e continuaram se movendo. Acenei com a cabeça horrorizado e voltei ao Portão 12, e isso foi a última informação que rompeu os ligamentos da minha mente. Me larguei no chão e dormi.

Não sei porque já acordei, depois de apenas algumas horas febris. Ainda sinto o peso do acúmulo de pensamentos sendo suportados pelo meu cérebro macio, mas não acho que vou conseguir dormir mais. Um barulho de broca e um zumbido arranham minha mente, me deixando alerta. Procuro pela única coisa que já me ajudou em horas como esta.

Ponho a mão no bolso e pego o último pedaço de cérebro. Quando a energia vital começa a desaparecer do cérebro, os ruídos inúteis são os primeiros a sumir. Frases de filmes, propagandas de rádio e TV, fofocas de celebridades e slogans políticos, todos se derretem, deixando apenas as memórias mais fortes e potentes. Quando o cérebro morre, a vida dentro dele é purificada e destilada. Melhora com o tempo, como um bom vinho. O pedaço que está na minha mão murchou um pouco, ficando com um tom cinza-amarronzado. Ele quase perdeu a validade. Terei sorte se conseguir mais alguns minutos da vida de Shoto com isto, mas serão minutos ardentes e intensos.

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