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CAPÍTULO VINTE E UM

Percorri as ruas de Sausalito até às duas da manhã. Jillian e Benjamin apareceram para ajudar, bem como Mimi e Ryan. Sophia estava lá. E Neil, se não estivesse cobrindo um jogo importante fora da cidade, também estaria.
Munidos com lanternas, erva-dos-gatos e petiscos, vasculhamos a vizinhança. Perscrutei todos os jardins possíveis, abri caminho por arbustos, subi as escadas secretas, percorri cada trilha nas colinas da cidade à beira-mar. Escutava os meus amigos chamando-o de todos os cantos, chacoalhando as latas de petiscos.
Já fazia tempo que Clive tinha sumido.
Sei que todos teriam passado a noite inteira ao relento, mas, quando o nevoeiro se intensificou, quando os dentes passaram a bater por causa do frio, decidimos parar a busca. Mimi tinha ficado na casa para o caso de Clive voltar e, enquanto esperava, criou um folheto de PROCURA-SE com a foto dele e o meu número de telefone. Imprimiríamos várias cópias pela manhã e às penduraríamos pela cidade.
Me despedi de todos, agradeci mais uma vez pela ajuda e fechei a porta. Me virei para Yibo .
– Estou exausto, vou deitar. Vou levantar cedo. Quero começar a distribuir os folhetos o quanto antes.
– Eu vou com você – ele disse, começando a apagar as luzes.
–  Deixa essa acesa – pedi antes que ele apagasse a lâmpada da sala de jantar. Escutei o plástico balançando sobre o buraco na janela. Eu a tinha fechado com tanta força que uma das vidraças se quebrara.
Yibo  assentiu, e eu comecei a subir a escada.
A minha cabeça doía, os meus olhos estavam vermelhos e ardiam por conta das lágrimas que eu tinha me recusado a derramar. Me arrastei pela escada, parei no final do corredor e olhei em direção ao minúsculo quarto que ficava abaixo do beiral.
Yibo  chegou ao topo da escada e parou atrás de mim.
– Xiao  Zhan?
Senti ele quente e sólido, e tão perto de mim.
– Um quarto de bebê? – perguntei.
– Hum?
– Você e a Ruth estavam falando sobre transformar esse quarto em um quarto de bebê?
– Amor, está tarde. Vamos dormir – Yibo  respondeu, o tom de voz um tanto frio. Ele passou por mim e entrou no nosso quarto. Eu o segui, os meus passos agora mais pesados sobre o piso recém-reformado.
– Está tarde, mas responde a minha pergunta – eu falei quando ele desmoronou no colchão inflável e começou a tirar os sapatos.
– Olha, ela comentou comigo que seria um ótimo espaço para um quarto de bebê, e eu concordei. Foi só isso. Fim da história.
– Errado! Começo da história. Você quer um quarto de bebê?
– Xiao  Zhan, para com isso. Já está tarde. – Ele caminhou até o banheiro, tirando a camiseta.
– Volta aqui. – Fui atrás dele. – A conversa não acabou.
– Acho que acabou. Você está exausto, eu estou exausto, e você está fazendo tempestade em copo d’água – Yibo  retrucou, chutando os sapatos.
–  Tempestade, sim, mas não em copo d’água! Está de brincadeira? Você quer um quarto de bebê e não me fala nada? E prefere conversar com a Ruth sobre isso? Que, aliás, parece ter uma opinião muito bem formada sobre o assunto!
– Eu não disse que quero um quarto de bebê. Que droga, Xiao  Zhan, não foi nada disso!
– Afinal, você quer um quarto de bebê?
– Claro! Sim. Claro que eu quero.
O mundo explodiu.
– Você não quer? – ele questionou. O mundo explodiu pela segunda vez.
– Não sei! Não faço ideia! Por que eu teria que saber agora? Hoje? – perguntei, a minha voz começando a vacilar. Era demais para mim: a casa, o trabalho, o carro, o caos… e Clive.
Cérebro e Espinha Dorsal respiraram fundo e se revigoraram. Coração não poderia se envolver nisso de maneira alguma.
– Por que você não consertou a porra da janela, Yibo ? Silêncio. Do tipo que dá para ouvir as palavras que você acabou de dizer retumbando.
Nós nos encaramos, cada um de um lado do nosso quarto de casal. Como diabos eu tinha parado naquele quarto? Um quarto de casal é algo que se aspira, que se conquista. É coisa de adulto, e eu já não tinha certeza se queria ser adulto. Eu só queria o meu gato de volta.
– Meu Deus, Xiao  Zhan, desculpa!
Não consegui mais encará-lo. Simplesmente não consegui, sabia que iria desabar. E eu estava furioso demais para desabar, confuso demais para desabar.
Me afastei, desci a escada, peguei a chave e saí.
Fui a uma lanchonete. Era o único lugar que estava aberto, e eu não queria ficar dirigindo a noite toda. Além disso, eu precisava de torta.
Era justo culpar Yibo  pelo que havia acontecido com Clive? Dois pontos de vista sobre a questão.
Tecnicamente, sim, eu podia culpá-lo. Ele não tinha consertado a janela, por mais que eu tivesse pedido. Se tivesse consertado, Clive não escaparia. E, neste momento, botar a culpa nele me fazia sentir bem.
Segundo o outro ponto de vista, o adulto e maduro, não havia a menor razão para sequer cogitar culpar Yibo . Ele amava Clive quase tanto quanto eu e já estava se sentindo mal o bastante pelo que tinha acontecido. Assim, o certo seria ligar para ele, chamá-lo para comer torta, pedir desculpas por tê-lo culpado e sair para procurar o nosso garoto.
Eu estava puto. E morrendo de medo de nunca mais ver Clive.
Quando já estava quase amanhecendo e não tinha mais torta, decidi voltar para casa. Saindo da lanchonete, vi Yibo  deixando o Range Rover e caminhando na minha direção. Eu não era a única pessoa puta por ali.
– Caramba, Xiao  Zhan! Faz uma hora que estou te procurando!
– Entra no carro, Yibo . Não consigo conversar agora.
– Pode apostar que consegue – ele advertiu, bloqueando a porta do meu carro.
– Eu não quero fazer isso agora!
– Não estou nem aí! – Ele inclinou o corpo quando tentei afastá-lo.
– Me deixa entrar. – Senti as lágrimas querendo escorrer e, se eu começasse, não conseguiria parar.
– Está começando a chover.
Merda, Clive ia tomar chuva.
– Então a gente vai tomar chuva até você me dizer o que diabos está acontecendo. – Yibo  cruzou os braços e se plantou no lugar.
E então o tempo fechou para valer, e gotas grandes começaram a respingar para todos os lados. Sim, aquilo nas minhas bochechas eram gotas de chuva.
–  Yibo , é sério, me deixa entrar – eu insisti, tentando afastá-lo de novo.
– Engraçado, eu ia dizer a mesma coisa. – Ele me olhou de cima a baixo.
Foi a gota d’água. A barragem se rompeu.
– É demais, ok? É demais pra mim! – Tudo estava vindo à tona; todos os abacaxis.
– O que é demais? – ele perguntou, confuso.
Eu estava oficialmente perdendo a cabeça.
– Ahhhhhhhh! – gritei, batendo os pés no chão e uma mão contra a outra. – Yibo , eu não consigo fazer tudo! Literalmente não consigo fazer tudo.
– Quem disse que você precisa? E o que é tudo exatamente?
– Eu não estou preparado para ser totalmente adulto! Você quer um quarto de bebê? Meu Jesus, eu só quero transar numa praia no Brasil! Você quer deixar de ser fotógrafo? Pois eu acabei de receber um convite pra ser sócio e não posso recusar! Porque seria absurdo! – Comecei a descascar (ou seria disparar?) todos os abacaxis do meu armamento.
– Você foi a um reencontro, se divertiu com a “galera do passado”, e Pá! Largou o trabalho. E a gente comprou essa casa incrível. E agora você e a Ruth estão fazendo planos. E o desgraçado do James Brown me chamou de decorador! De novo! E ele e o esposo já estão com um pãozinho no forno, e eu aposto que a porra do quarto de bebê deles é maravilhoso, então eu falei pra ele que você me fode no balcão da cozinha e…
– Calma. Calma, por favor. – Yibo  agarrou as minhas mãos e as segurou nas laterais do meu corpo.
– Eu nunca vou conseguir fazer tudo. Eu nunca vou ser o esposo e um pai que a sua mãe foi! Eu nunca vou construir um lar tão maravilhoso quanto aquele em que você cresceu! Eu nunca vou ser o designer do século e arrumar tempo pra assar minhas tortas! – eu chorei, botando para fora toda a angústia que estava entalada havia meses. – E o meu gato fugiu, e eu preciso dele de volta!
–  Eu sei, amor – disse Yibo , me apertando contra o seu peito enquanto eu chorava sob a chuva. – Eu sei.
Cinco minutos mais tarde, estávamos numa mesa da lanchonete, sentados de frente um para o outro. Tínhamos pedido café. Diante de mim, além da xícara, havia um maço de guardanapos vagabundos. A expressão de Yibo  era de pura dúvida, mas ele ainda estava ali. Bom sinal.
– Então… uau. – Ele passou as mãos pelo cabelo. – Parece que tem bastante coisa passando pela sua cabeça.
– A-hã. – Mexi o meu café.
– Tem algumas passando pela minha agora, posso falar?
– Sim – respondi baixinho, me preparando para o pior.
– Eu não tive muitos relacionamentos tradicionais, eu sei, mas… o que acabou de acontecer lá fora é normal?
Surpreso, tirei o olhar das minhas unhas e avistei o mais discreto sorriso no rosto de Yibo .
– Xiao  Zhan, eu te amo pra caralho. Então se acalma e me fala o que você precisa falar. Para de segurar. Depois eu falo o que eu preciso, e a gente descobre um jeito de resolver as coisas. – Ele olhou para baixo, e um ar de dúvida suplantou o sorriso discreto.
– Quer dizer, eu espero que a gente possa resolver as coisas. Se você quiser.
– Eu quero – falei ainda baixinho.
– Então vamos conversar.
E assim fizemos.
Descasquei cada um dos abacaxis, mas sem gritaria nem artilharia. É tão mais fácil conversar quando não há gritaria…
E é mais fácil ainda quando somos totalmente sinceros. E Yibo  também estava sendo sincero, o que me deixou feliz.
– Não acredito que você achou que eu tinha abandonado o meu trabalho. Eu jamais pararia de fazer o que faço.
– Mas você cancelou todas as viagens…
– Sim. Mas eu vou acabar voltando à estrada.
– Mas, depois do reencontro, você…
–  Você precisa entender uma coisa. Essa viagem esclareceu algumas coisas pra mim, num sentido positivo. Quero ter um lar de novo, quero ter uma família um dia. Isso não vai mudar. E que fique claro: eu jamais conversaria com a Ruth sobre um assunto desses sem falar com você primeiro. – Ele segurou a minha mão.
– Acho que tem um monte de coisas que a gente deveria ter discutido antes de ter pulado de cabeça nesse lance da casa. Eu me empolguei. Era algo de que eu sentia falta fazia muito tempo.
– Eu também me empolguei. E eu amo a casa, não me entenda mal. Mas são tantas expectativas que vêm junto com um passo como esse que eu não aguentei. Sei o que isso significa pra você, o quanto é importante pra você. Eu só não sei se estou à altura.
– Eu fugi do meu passado por anos porque era muito duro lidar com ele. Agora estou permitindo que algumas das coisas boas retornem. Mas as coisas verdadeiramente boas são com você, amor. O resto é resto. Quer se livrar da casa? A gente se livra. Quer morar numa cabana em Bali? A gente mora.
– Acho que falei em transar numa praia no Brasil…
– A gente transa – ele disse, os olhos dançando.
Olhei para ele, o namorado dos meus sonhos.
– Amo a casa. Nós não vamos nos livrar da casa. – Inclinei o corpo à frente. – E eu quero um quarto de bebê… mas não agora. Tudo bem? – questionei, de repente muito, muito sério. O assunto era muito, muito sério.
– Tudo ótimo! Quem falou que eu quero agora?
Antes que eu pudesse falar alguma coisa, ele apertou a minha mão e sussurrou:
– Por favor, não ponha a coitada da Ruth no meio disso.
– Devo um pedido de desculpas pra ela.
– Provavelmente.
– E pra você.
– Pelo quê?
–  Por não ter confiado em você o bastante pra contar o que estava acontecendo. Eu devia ter contado. Mas eu não queria estragar as coisas. Quem tem coragem de reclamar quando tudo parece tão perfeito?
– Melhor reclamar do que brigar no meio do estacionamento, debaixo da chuva, não acha?
Xeque-mate.
– Eu te devo um pedido de desculpas – Yibo  disse, a testa enrugada. – Você estava certo, eu devia ter consertado a janela.
– Yibo , não. Eu estava furioso e jamais devia ter falado…
– Não, foi culpa minha. Mas eu vou encontrar o Clive, prometo.
Fiz que sim com a cabeça, os olhos cheios de lágrimas de novo.
– Vem cá – ele disse.
Passei para o outro lado da mesa, e Yibo  me puxou para o seu colo. Ele me abraçou com força, e eu o beijei. Então nós saímos para procurar o nosso gato.
Na manhã seguinte, nós ligamos para a Sociedade Protetora dos Animais, para a nossa veterinária da cidade e até para o pet-hotel. Espalhamos a notícia. O meu gato estava oficialmente desaparecido.
A Equipe Clive passou o dia vasculhando a cidade. Falamos com os vizinhos para garantir que eles soubessem a quem ligar caso o vissem.
De mãos dadas e munidos de lanternas, Yibo  e eu continuamos a nossa busca até anoitecer, chamando por Clive até ficarmos roucos. Esse não era o único motivo da minha rouquidão; eu não conseguia parar de chorar. Tentei evitar chorar na frente de Yibo , porque nunca um homem se sentiu tão mal por se esquecer de consertar uma janela. E perceber a minha tristeza só o deixava pior. Assim, procurei guardar as lágrimas para os banheiros dos postos de gasolina e para as muitas vezes em que fingi amarrar o cadarço dos tênis. Breves momentos de pânico necessários para manter uma postura firme. Nós o encontraríamos. Claro que o encontraríamos. Mas então veio o segundo dia. O terceiro. E uma semana inteira. Eu passava as noites acordado, torcendo para ouvir o tic-tic -tic daquelas malditas patinhas revelando que tudo não tinha passado de um pesadelo besta e que Clive ainda dormia aninhado em mim. Ou então um miado irritado vindo da porta dos fundos como que dizendo: “Ei, moço, não era sonho. Eu fugi, mas agora estou de volta. Então me deixa entrar, está congelando aqui fora!”.
Vi os folhetos ficarem molhados e puídos. Colamos novos. E esses também ficaram velhos.
A pior parte era não parar de imaginar as piores possibilidades, como se a minha mente, ao me mostrar lampejos fantasmagóricos do que poderia ter acontecido, tentasse saber o que ela era capaz de suportar. Para saber o que eu era capaz de suportar, imagino.
Clive molhado, com frio e tentando entrar numa lata de lixo à procura de algo para comer.
Clive se aproximando de um estranho e sendo enxotado por uma vassoura.
Clive encurralado contra uma árvore por dois ou três gatos. Ele não tinha garras para se defender; Clive era um gato mimado que dormia em cima de um travesseiro e ganhava erva-dos-gatos à vontade. Voltei ao trabalho; eu precisava. Porque me manter ocupado ajudava; porque eu amava o meu trabalho; e porque o Claremont finalmente estava pronto para o lançamento.
A casa estava começando a tomar forma, assim como as coisas entre mim e Yibo . Nós conversávamos mais agora do que antes, não apenas sobre as bobeiras do dia a dia que nos faziam rir, mas também sobre os assuntos sérios. Esvaziávamos cada vez mais as nossas prateleiras mentais, falando sobre o que realmente importava e sobre o tipo de vida que queríamos para nós. Veja bem, rolavam muitas risadas e sexo, porque assim éramos eu e Yibo . Mas nós estávamos evoluindo.
Eu disse a ele que queria ser o tipo de casal que passa algumas férias de final de ano em um conto de fadas longínquo. Ele disse que queria que fôssemos o tipo de casal que recebe todos os familiares e amigos no Natal – em alguns Natais. Eu falei que queria ser o tipo de ômega que compra o próprio carro. Ele disse que queria ser o tipo de homem que dá um carro de presente para o namorado.
Que fique registrado: quem venceu essa última fui eu. Devolvemos o carro, e eu comprei uma Mercedes conversível usada. Prateada, desta vez. Era usada o bastante para que eu tivesse condições de bancar as prestações mensais e nova o bastante para que Yibo  ainda quisesse dar umas voltas com ela.
Assim, nós estávamos molhando os pés no Mar da Vida Adulta, em vez de mergulhar de cabeça. Eu não tinha desistido de Clive, mas, após duas semanas, um sentimento de resignação me atingiu, um sentimento que eu não podia negar. Eu precisava ser racional. As pessoas passam por tragédias muito piores. Chorar porque o bichinho de estimação sumiu parecia coisa de criancinha.
Claro…

(.....)

Amor entre as paredes ( livro II)Onde histórias criam vida. Descubra agora