17

124 22 2
                                    

CAPÍTULO DEZESSETE

Na manhã seguinte, recebi um e-mail de Jillian. Ela e Benjamin voltariam dali a três semanas.
E durante essas semanas o meu mundo virou de cabeça para baixo. Por meses, eu vinha administrando tudo e tinha pegado o ritmo das coisas. Mas não nas duas últimas semanas. Não, senhor. Foi como se os deuses do design tivessem se juntado, esfregado as mãos e dito: “Vamos ver o que podemos fazer para foder com o  Xiao Zhan”.
E, caso você esteja se perguntando, sim, os deuses do design existem. E, caso esteja se perguntando, sim, eles são fa-bu-lo-sos.
A princípio, o projeto novo que eu tinha fechado em Sausalito era para ser a reforma de uma cozinha. Que se transformou na reforma de uma sala. Que se transformou em: “Será que podemos trocar as portas que dão pro terraço por portas francesas?” e “Acho que podemos trocar o pátio inteiro, não acha?” e “Eu vi uma coisa chamada pérgula no Discovery Home and Health, será que podemos colocar uma no terraço?”. Isso tudo era ótimo para o bolso, mas significava muito mais trabalho do que eu tinha planejado. Nós revisamos o prazo, nós re-re-revisamos o orçamento, e eu comecei a trabalhar na remodelação quase total que esse projeto agora requeria.
Enfrentamos um sprinkler defeituoso no escritório, o que resultou na inundação do terceiro andar inteiro. O aparelho simplesmente despirocou numa tarde e espirrou água durante quinze minutos antes que conseguíssemos desligá-lo. As salas precisaram ser arejadas, uma equipe precisou ser chamada para secar os carpetes, e alguns formulários da declaração de imposto ficaram ilegivelmente borrados. Felizmente eu havia feito cópias, mas e o pânico ao ver aqueles formulários molhados? Acho que ganhei o meu primeiro fio de cabelo branco.
A maldita instalação de arte finalmente foi montada no saguão do Claremont. Max Camden deu uma olhada nela, disse que estava tudo errado e ordenou que encontrássemos outra coisa. O que fizemos. Todas as partes concordaram que a nova arte era melhor para o ambiente, mas agora todo o resto precisava ser reconfigurado para acomodá-la. O que me fez repensar os pontos de iluminação. E a iluminação como um todo. Foi como puxar um fio solto de um suéter e, Pá, cadê o suéter? Do nada, você se vê pelado em um hotel novo com uma iluminação de bosta.
Eu não tinha tempo para ficar pelado.
Porque a próxima bomba era que o nosso prédio realmente se transformaria num condomínio comercial. Jillian me encaminhou um e -mail do proprietário, e eu fiquei sabendo que o prédio seria colocado no mercado em trinta dias. Trinta dias… Isso é permitido? Durante esse período, o proprietário do edifício apareceria para fazer reparos e manutenção em todos os apartamentos.
Yibo aceitou tudo numa boa, dizendo que era um sinal de que deveríamos mesmo mudar para Sausalito. Sinal ou não, eu então tinha de encarar uma nova casa que precisaríamos reformar de cima a baixo, e havíamos perdido os apartamentos em que moraríamos durante essa reforma. E, com o retorno de Jillian, a casa dela em Sausalito não era uma opção.
Então, para completar, Yibo e eu precisávamos desmontar os nossos apartamentos e mover tudo para um depósito até que a casa nova estivesse pronta para receber os móveis e pertences. Sério! Contratei uma empresa para me ajudar, claro, mas ainda precisava fazer uma triagem, uma limpa, empacotar algumas coisas. Existem determinadas coisas no apartamento de um ômega que ele prefere empacotar por conta própria. Você sabe do que eu estou falando.
Ninguém encostaria um dedo sequer na minha KitchenAid! Recapitulando. A minha já frenética vida no trabalho estava ficando cada vez mais alucinante, e não mais calma, como deveria ser. A minha chefe estava retornando de viagem em poucos dias, e havia ventiladores espalhados por todo o terceiro andar do escritório dela, numa mansão histórica em Russian Hill. E eu precisava gastar algumas horas que não tinha para embalar as coisas do meu glorioso apartamento e me mudar para uma casa inglória a qual passaria por uma reforma monstruosa.
Adendo: eu iria morar dentro dela durante a reforma monstruosa.
Podem rir, deuses do design. Eu aguento. Não aguento?
Cérebro riu. Espinha Dorsal se contorceu como se tivesse escoliose. Coração continuou desenhando o próprio reflexo no espelho imaginário do banheiro da nova suíte principal.
E Yibo? Yibo era um… abacaxi. Encaixotando as coisas no seu apartamento neste exato momento e fazendo um barulho desgraçado. Eu estava no meu quarto, esvaziando a gaveta de meias, quando ouvi um som familiar vindo do outro lado da parede. Batidas. Sorri ao recordar as primeiras vezes em que escutei essas batidas.
Clive subiu na cama e olhou curioso para a parede.
Certeza que ele ainda tinha a esperança de ouvir Purina miando. Sem chance.
Me aproximei da parede compartilhada e coloquei a mão no ponto em que deveria estar a cabeceira da cama de Yibo. Ouvi mais uma batida. O que diabos ele estava fazendo?
Peguei o celular e mandei uma mensagem:
Z: O q vc tá fazendo?
Y: Pondo a cama abaixo.
Z: Ah! Ñ é de estranhar q eu esteja tendo uns flashbacks…
Ele respondeu com uma batida na parede. Eu bati de volta.
Tum, pá, pá, tum, tum. Tum, tum.
Dei uma risadinha, então fiquei escutando. Será que ele…? Sim, um minuto depois, Glenn Miller atravessou a parede. Boa, Yibo.
Voltei a encaixotar as coisas, Yibo voltou a pôr a cama abaixo. Clive atacou um rolo de plástico-bolha e fez dele a sua putinha. Algumas horas depois, Yibo voltou para o meu apartamento e observou o ínfimo progresso que eu tinha feito na preparação da mudança.
– Quando o caminhão vai voltar?
– Dois dias. – Verifiquei a data no meu calendário. – Então, você precisa se livrar de tudo que não quer que eles levem, pois eles vão levar o que virem pela frente.
Ainda era estranho pensar na casa nova. Eu quase não era capaz de pensar nela, com tudo o que estava acontecendo. Um passo de cada vez.
– Vamos passar esta noite aqui? – Yibo perguntou, olhando o calendário por cima do meu ombro.
– Eu gostaria, se não tiver problema pra você… Mais uma noite onde tudo começou? Além disso, tem alguém bem animadinho aqui – brinquei.
Entendendo a deixa, Clive saiu correndo até a cozinha e voltou como se os cães do inferno estivessem no seu encalço, arrastando um pedaço enorme de plástico que pendia dele como uma capa ruidosa.
– Você sabe que assim eu não resisto – Yibo murmurou no meu ouvido, os braços envolvendo a minha cintura. – Aliás, pode riscar essa viagem.
– Que viagem? – indaguei todo meloso. Os braços dele provocam isso em mim.
– Belize. Eu cancelei. – Ele apontou para a data que eu tinha marcado com um círculo no calendário.
– Você cancelou Belize?
Com isso, já eram três viagens seguidas.
– Sim, quero estar aqui pra ajudar nas coisas da casa. – Ele enfiou o nariz no meu pescoço. – Não sei se você lembra, mas eu sou muito bom com o martelo. – Ele chocou os quadris contra os meus.
Eu retribuí. Com maior força do que o necessário? Talvez. Um pouco.
– Vou conferir se peguei tudo no meu quarto – eu falei, afastando-o e indo para o quarto.
Eu sabia que Yibo não gostava que eu questionasse os seus planos. E, se ele percebeu que o meu tom deixou de ser meloso, não comentou nada.
Abacaxi.
Todos os meus mundos resolveram colidir no mesmo dia. A sexta-feira amanheceu fria e clara. Ainda bem que não havia qualquer sinal de névoa, porque o nevoeiro que pairava na minha cabeça por volta do meio-dia era suficiente para cobrir toda a região da baía. Jillian e Benjamin chegariam às seis horas. Yibo e eu queríamos que os dois aproveitassem a primeira noite em casa sem ninguém por perto, então, antes de sair para trabalhar na sexta de manhã, eu deixei o lugar um brinco, com tudo exatamente como eles tinham nos deixado.
Yibo fecharia o negócio da casa às duas e meia. Ele assinaria a papelada e pegaria as chaves, e eu avisei que o encontraria no nosso novo endereço assim que conseguisse escapar do trabalho. Luz, água e telefone estavam sendo instalados, as caixas com as nossas coisas essenciais seriam entregues, e Yibo ficou encarregado de comprar e montar o colchão inflável. Sim, colchão inflável. Já que moraríamos na casa durante a reforma, não queríamos nenhum móvel de verdade por enquanto. Não queríamos ter de arrastar a mobília de um cômodo a outro, então viveríamos com o básico.
A porra estava prestes a ficar séria. Bem séria.
O pobrezinho do Clive não estava entendendo nada. Depois de se mudar para a casa de Jillian, voltar para o apartamento, para a casa de Jillian, para o apartamento de novo, ele já nem sabia mais onde ficava o seu banheirinho. Ainda bem que o moletom da Stanford não existia mais.
Tio Euan e tio Antônio tinham decidido se mudar quando souberam que o prédio se transformaria em um condomínio comercial, ou seja, as minhas babás felinas já eram. Eu não queria Clive na casa nova antes de deixá-la à prova de gatos, então ele foi para um hotelzinho para gatos.
O que fez eu me sentir o pior pai do mundo. E o comportamento de Yibo não estava ajudando.
A minha veterinária tinha recomendado um hotel excelente. De fato, não era pouca bosta: Clive tinha um quarto só para ele, com uma TV de tela plana transmitindo pornô animal vinte e quatro horas por dia.
– É por pouco tempo. Prometo, meu amor.
Ao darmos uma volta para conhecer o lugar, Clive e Yibo tinham a mesma expressão no rosto.
Você só pode estar zoando com a minha cara!
– Não podemos deixá-lo aqui. Este lugar é ridículo! – Yibo sussurrou conforme percorríamos a fileira de quartos felinos.
– Este lugar é ótimo! Você está sendo ridículo – eu sussurrei de volta, seguindo a dona pelo corredor.
– E esta vai ser a suíte do Clyde! – ela exclamou, abrindo a porta do quartinho mais fofo que eu já tinha visto.
–  Clive. Não Clyde. Clive. – Yibo bufou, revirando os olhos para mim.
Eu o fulminei com o olhar. Peguei Clive dos braços dele e o coloquei no chão para sentir o território. Clive olhou ao redor, arranhou um dos arranhadores e então olhou para mim.
– Cadê o meu peitoril? – ele disse sem dizer. Ai, esses dois. Fala sério.
Yibo e eu discutimos sobre o assunto no caminho de volta para casa. Clive se sentava majestosamente no console do Range Rover, as pernas traseiras enfiadas nos apoios para copos. O hotelzinho para animais de estimação era meio brega, mas era ótimo. E era uma solução temporária. Clive ficaria lá por poucos dias enquanto a gente sentia o novo ambiente. Eu conhecia Clive muito melhor do que Yibo e sabia que, se houvesse uma tábua solta sequer, um armário com a porta frouxa, ele iria explorar e seria impossível encontrá-lo depois. Yibo retrucou dizendo que eu estava sendo ridículo e controlador.
Eu queria deixar o cafofo à prova de gato, só isso. Mas, para tanto, o gato precisava passar algumas noites num pet-hotel caríssimo. Pela reação de Clive e Yibo, parecia que eu queria que ele passasse umas noites em Alcatraz.
Mas, enfim, cá estávamos nós, dia da mudança, e Yibo finalmente tinha concordado que, para o bem do gato, e do próprio Yibo, era melhor deixar Clive no hotelzinho antes de fechar o negócio da casa. Dei um beijo nos dois naquela manhã e disse a Clive para curtir a aventura. Ele posicionou uma pata de um jeito que um dos seus dedinhos de gato ficou esticado para cima. E não foi sem querer, tenho certeza.
Eu me programei para trabalhar durante o horário de almoço naquele dia, tentando deixar tudo nos trinques para que, quando Jillian voltasse ao trabalho, na segunda-feira, tudo estivesse exatamente como quando ela viajara. Não, melhor do que quando ela viajara. Eu realmente queria mostrar a ela o quanto eu tinha levado a sério a missão de administrar o escritório na sua ausência, tendo inclusive conseguido novos clientes, sem deixar de cuidar dos antigos. Além disso, eu tinha treinado o estagiário com a mesma paciência e orientação que ela tinha dispensado a mim quando atravessei a porta do escritório pela primeira vez.
Enquanto tudo isso acontecia, nós perdemos o carpete do terceiro andar, é verdade, porém eu o substituíra por um ainda melhor.
Fiz uma apresentação para mostrar o andamento da reforma no Claremont; bem impressionante. Também compactei um dos relatórios de pagamento para que ela visse com facilidade não apenas o total de horas trabalhadas pelos funcionários contratados por hora como também quantas horas tinham sido dedicadas a cada projeto. E tinha categorizado por cores quase todas as faturas dos projetos e contas ativos, agora arquivadas em pastas coloridas, espalhadas por todo o meu escritório.
Eu estava conferindo a conta de uma nota particularmente extensa quando, ao meio -dia e meia, Yibo apareceu de repente com uma caixa de pizza. Ele a colocou com um gesto afetado bem no meio da minha mesa.
– Epa, epa, epa! O que é isso? – eu exclamei, tirando os olhos da calculadora, tendo perdido a conta pela terceira vez.
– Chama-se almoço, amor – Yibo respondeu com um sorriso orgulhoso, tirando umas latas de refrigerante de uma sacola e procurando um lugar para colocá-las. – Caraca, Zhan, eu nunca vi sua mesa tão bagunçada.
– Yibo, espera. Não…
Tarde demais. Ele já tinha empilhado três pastas para abrir espaço na minha mesa, misturando todo o meu trabalho.
– Agora, sim. Bem melhor. Tirei os óculos e o encarei.
– Você faz ideia do tempo que eu demorei pra organizar essas coisas de manhã?
Ele olhou culposamente para a pilha de pastas.
–  Ops?
– O que você está fazendo aqui? – Eu tirei a pilha da mão dele e comecei a separar tudo de novo.
– Dia da Casa, Garoto do Baby-Doll! – Ele me olhou como se eu fosse louco. – Pensei que a gente podia comemorar com um almocinho. Eu já sabia que você ia dizer que estava muito ocupado, por isso trouxe o almoço!
–  Xiao Zhan, você ainda quer que eu faça o orçamento daquele… Ah, oi, Yibo! – disse JiLi, detendo-se na porta ao avistar o meu namorado. Ele tinha uma queda monstra por Yibo. Eu geralmente dava risada vendo-o gaguejar e travar quando estava perto de Yibo, mas neste dia não tinha a menor graça.
– JiLi, quer um pedaço de pizza? – Yibo ofereceu, pegando a caixa na minha mesa.
A papelada embaixo agora estava manchada de gordura. Puxei um lápis colorido do bolso e comecei a mastigá-lo.
– Ah, não, eu já comi uma pizza, quer dizer, não uma pizza inteira, quer dizer, eu saí pra comer uma pizza inteira, quer dizer, um pedaço! Comi um pedaço pequeno, e uma salada, mais salada…
Eu o interrompi. Já estava ficando constrangedor.
– Sim, Li, por favor, faça o orçamento do projeto dos Anderson e me procure se tiver dúvida. Obrigado!
– Ah, sim, sem problemas. Qualquer coisa, estou disponível na sala ao lado… quer dizer, trabalhando! Eu quis dizer que… Merda. Tchau!
Afundei a cabeça na mesa. JiLi era o jovem mais talentoso e maduro que eu conhecia. Eu teria matado para ter a sua atitude naquela idade… exceto quando havia um Trepador de Paredes na parada. Aí ele se transformava num bocó. Eu sabia bem como era. E olha que ele não sabia que ele tinha o poder de deslocar uma cama inteira só com a força dos quadris!
Falando em quadris, eles surgem no meu campo de visão, junto com uma caixa de pizza.
– E aí, almoço?
Comecei a gargalhar. Não consegui me segurar. Eu tinha chegado àquele ponto em que ou você ri ou você chora, e a balança simplesmente pendeu para o lado da risada. Olhei para Yibo celebrando o Dia da Casa do seu jeito fofo e sem noção e grasnei:
– Claro, Yibo. Vamos comer pizza.
Peguei a caixa das mãos dele, e, na tampa, cercado por um exército de calabresas dançantes e vestido com um chapéu de chef, estava o diabo em pessoa.
He Peng. Dono de uma rede de pizzarias. Concessor de desconto. Auto-proclamado homem cosmopolita.
E o maldito filho da puta que tinha confiscado o meu O.
O meu olho começou a se contrair. O chão, a girar. A minha pele, na qual ele pusera os olhos uma única vez, a coçar, queimar, arder.
A risada que soava dos meus lábios deu lugar a um berro que parou o trânsito na cidade inteira, sacolejou carrinhos de vendedores ambulantes e pode muito bem ter sido a causa do ligeiro tremor noticiado pelos jornais mais tarde naquela noite. E os meus joelhos estavam beijando o meu queixo porque o meu corpo tinha se encolhido que nem tatu-bola num gesto de autoproteção.
– Ei, calma! Não tem anchova na pizza, eu conferi! – disse Yibo, revirando os olhos e me entregando um guardanapo.
Passei a tarde inteira tendo flashbacks.
Peng brindando comigo com a sua cerveja barata no nosso primeiro e único encontro.
Peng sorrindo escrotamente ao assumir o volante do seu possante cor amarelo-pinto-pequeno.
Peng grunhindo em cima de mim, os quadris disputando uma corrida que ele jamais venceria.
Para ser justo, eu tivera todas as oportunidades de impedir aquela tragédia. No entanto, escolhi seguir adiante com a pior experiência sexual da minha vida, a qual resultou no Grande Hiato Orgástico, como o episódio passou a ser conhecido por toda a humanidade.
Comecei a piscar desesperadamente na tentativa de bloquear aquelas lembranças. Dobrei a esquina da minha nova rua depressa demais, e todo o conteúdo da bolsa se esparramou pelo chão da van.
Van, você pergunta, que van?
Sim, uma van. Na pressa para concluir o negócio mais rápido da história do mundo imobiliário, Yibo e eu nem pensamos no meu deslocamento até a cidade. Claro, eu poderia pegar a balsa, mas não tinha conseguido verificar os horários. E eu já não tinha mais a Mercedes de Jillian. Então surrupiei a van de entrega da Jillian Designs e a estava usando para atravessar a ponte até o meu novo endereço. Quando parei em frente à antiga construção vitoriana que eu agora chamava de lar, canetas rolaram pelo assoalho da van. Suspirei profundamente ao girar a chave no contato e, através do para-brisa, espreitei a casa.
Da rua, ela ainda parecia um tanto melancólica, para baixo. Eu sabia que seria por pouco tempo. Ou era eu quem estava para baixo? O dia tinha acabado comigo, e tudo o que eu queria era explorar a casa nova, tomar um banho quente e cair na cama.
Uma cama no chão.
Dane-se, eu já nem ligava. Só queria uma cama. Quando corri a porta da van, ela rangeu de um jeito que me lembrou a cama de He Peng enquanto ele usava o pintinho minúsculo como uma britadeira que anestesiou os meus pensamentos (e a minha libido). Estremeci mais uma vez.
Bati a porta e subi os degraus. Pela janela da frente, vi Yibo movendo caixas.
Senti aquele peso nos ombros diminuir. E outra coisa começou a se contrair. Esta era a minha nova casa, a casa que eu dividiria com Yibo.
De repente, o dia de merda acabou. Eu não via a hora de entrar e fazer amor. E sexo selvagem. E tudo que existe entre um e outro.
Abri a porta da frente, desviei o olhar do papel de parede malva, do carpete rosa, do rodapé encardido e das ombreiras cheias de impressões digitais e avistei o meu namorado. Alto e lindo, forte e esguio. Ele se virou quando entrei e me lançou um sorriso do mal.
– Oi, amor.
– Oi – respondi. Deixei a bolsa cair e atravessei o carpete rosa em direção a Yibo.
– Eu estava te esperando pra poder pedir comida. Tailandesa, que tal?
– Ótima ideia, dono de casa mais gostoso do mundo – ronronei, e ele tirou o olhar dos cardápios.
Yibo sorriu enquanto eu me aproximava, com um rebolado extra.
– O que está pegando?
– Nada. Ainda. – Dei uma piscadinha. – Onde está aquele colchão inflável? Vamos batizar esta pilha de tijolos.
Eu o puxei para perto e o beijei intensamente, enroscando as mãos nos seus cabelos. Yibo reagiu imediatamente, me beijando com urgência. Beijei a sua mandíbula, as maçãs do0ppppppp rosto, passei a língua entre o seu pescoço e seu ombro. Essa parte de Yibo sempre teve um gosto delicioso.
Ele gemeu no meu ouvido.
– Merda. Esqueci de comprar o colchão inflável.
– Hã? – balbuciei, a boca cheia de pescoço e ombro.
– Foi mal. Estava tão ocupado com as outras coisas que esqueci completamente.
Eu me afastei e guardei a língua dentro da boca.
– E onde a gente vai dorm… Argh! – Me afastei aos pulos; alguma coisa peluda tinha roçado as minhas pernas. – O que diabos foi isso?
A minha mente instantaneamente imaginou uma força- tarefa de ratos determinados a tomar a casa das mãos dos humanos invasores.
Mas não eram ratos. Era Clive! Com os olhos arregalados e o rabo espesso. Agora ele estava passando entre as minhas pernas, falando oi para o papai. Olhei para ele, depois para Yibo. Que pelo menos teve a decência de fazer cara de culpa.
– Eu não tive coragem de deixá-lo lá! Eles chamaram ele de Clyde!
Eu levei cento e vinte segundos para fazer uma varredura na casa, fechando cada porta de cada cômodo que ainda não estava à prova de gato. E mais sessenta segundos para desenterrar as unhas das palmas das minhas mãos.
Retornei à sala de estar. Yibo estava mostrando o closet de casacos para Clive.
– Não acredito, Yibo. – Eu passei voando por ele para pegar a bolsa que havia deixado cair perto da porta.
– Fala sério, não tem nada de mais.
Eu me virei para ele.
– Tem tudo de mais! Nós já tínhamos concordado. Eu não tenho tempo pra inspecionar cada canto desta porra de casa atrás de lugares em que ele possa se enfiar.
– Você está exagerando um pouco. Ele provavelmente vai ficar grudado na gente hoje. Vai se aninhar no meio da gente como sempre faz e…
– Se aninhar no meio da gente onde, Yibo? No colchão inflável que não temos? Onde diabos a gente vai dormir?
Num gesto astuto, Clive se retirou para a sala de jantar, fingindo explorar o peitoril da janela. Ele estava ouvindo a nossa conversa, certeza.
– Eu esqueci! O mundo não vai acabar por isso! Vou sair pra comprar um! Não é nada de mais. – Yibo pegou a jaqueta e se dirigiu à porta.
Tomei a frente dele para detê-lo, mas ouvi o barulho de uma pancada no vidro. Me virei e vi Clive, metade para dentro e metade para fora da grande janela.
– Clive! – eu gritei, e ele congelou. Corri até ele e o agarrei com força, Yibo atrás de mim.
As janelas originais, que abriam para fora, estavam enferrujadas, cobertas por betume envelhecido e não possuíam tela de proteção. Yibo forçou as janelas, finalmente conseguiu fechá-las, depois olhou para mim.
Lágrimas escorriam pelo meu rosto. Clive era como um filho. E, como qualquer pai que acaba de ver o filho prestes a pular da janela, eu estava meio assustado, meio furioso e completamente aliviado. Clive era um gato doméstico, nunca tinha pisado no mundo lá fora. Ele só conhecia as ruas através do conforto e da segurança do parapeito de uma janela – uma janela de verdade entre ele e as ruas, não essa armadilha letal dos infernos.
– Desculpa – Yibo falou, e eu fiz que sim com a cabeça. Apertei Clive com tanta força que ele guinchou.
– Onde está a caixa de transporte dele? – eu perguntei.
– Vou pegar. – Yibo saiu da sala.
Olhei para o meu gato, que se virou nos meus braços para me encarar.
– Nunca mais faça isso, entendeu? – Acariciei os seus pelos sedosos.
Clive pôs uma patinha na minha boca. Eu a beijei e sorri para ele. Quando Yibo retornou com a caixa, o meu sorriso desapareceu.
– Vou levá-lo para o hotelzinho, ok? – falei baixo, colocando Clive dentro da caixa.
Yibo concordou com a cabeça.
– Vou comprar um colchão inflável.
Comecei a caminhar até a porta.
– Você está com a minha chave? Caso eu volte antes de você…
– Ah, sim. Aqui. – Yibo tirou um chaveiro novo do bolso de trás e me entregou a chave.
Não houve a cerimônia que eu imaginei que haveria.
Saí com o meu gato.
Acomodei Clive no hotelzinho, comprei pelo menos uma dúzia de pedidos de desculpa em forma de ratinhos de brinquedo e fui embora depois que ele adormeceu sobre um travesseiro enquanto assistia a O Rei Leão. No caminho de volta para casa, pensamentos circulavam pela minha mente mais rápido do que eu era capaz de processar. Emoções demais para contar. Eu estava pê da vida, quanto a isso não havia dúvida. Por causa da cama? Sim. Por que Clive quase se matou por uma aventura do lado de lá da janela? Sim.
Mas tinha algo além disso; alguma coisa que eu não sabia o que era. Cansado demais para pensar sobre isso, estremeci novamente quando a porta da van rangeu, então criei coragem para caminhar até a entrada da casa. Eu estava exausto, estava morrendo de fome e, mais do que isso, eu estava me sentindo péssimo porque este dia, que deveria ser maravilhoso, tinha se transformado num show de horrores.
Abri a porta e me deparei, no meio da sala de estar, com o maior colchão inflável já produzido pelo homem. Coberto por lençóis, cobertores e montes e montes de travesseiros. E ao lado do colchão? Uma caixa transformada em mesa, revestida com uma manta antes usada para proteger algum móvel. E ao lado da mesa? Duas sacolas cheias de comida tailandesa e um engradado de cerveja em um balde cheio de gelo.
E ao lado disso tudo? Yibo. Sentado na beirada do colchão. Que era bem baixo. E bem mole. De modo que ele tentou se levantar e… Só tentou.
Mordi o interior das bochechas enquanto o meu namorado gatíssimo e sarado se esforçava para se erguer e, quando finalmente conseguiu, estava vermelho.
– Comprei o colchão – ele disse baixinho.
– Estou vendo.
– É bem baixo.
–  Assim parece.
Yibo se aproximou e parou na minha frente, o corpo tenso.
– Me desculpa por antes.
– Tudo bem. – Afastei o seu cabelo da testa e o olhei fundo nos olhos.
– Desculpa também.
– Você pode me devolver a chave?
– Mas já?
– Me dá – ele murmurou, e um canto da sua boca se ergueu.
Eu o olhei com curiosidade e devolvi a chave. Ele a observou com atenção, depois olhou para mim.
– Eu nunca morei com ninguém, você sabe disso, não sabe?
Fiz que sim com a cabeça.
Yibo se manteve em silêncio, a expressão pensativa. Então abriu a minha mão e pôs a chave bem no meio dela. Fechando a minha mão, ele sorriu.
– Bem-vindo ao lar, amor.
Eu também sorri e me entreguei a um beijo lento e hesitante. Assim estava melhor.
Jantamos sentados de pernas cruzadas no colchão inflável, o que se mostrou mais difícil do que eu tinha imaginado. Primeiro item da lista: cadeiras.
Depois, passamos por todos os cômodos e conversamos sobre o que deveria ir aqui, o que deveria ir ali. Tínhamos uma boa ideia de onde queríamos cada coisa, mas não tinha nada como passear pela casa juntos e fazer planos. Yibo não era o único que nunca tinha morado com alguém. Eu tinha dividido apartamento com colegas, mas nunca com um namorado.
Até hoje, Yibo e eu tínhamos sempre sido muito próximos, mas também muito individuais. As coisas mudaram agora. Eu estava “morando com uma pessoa”. Se alguém perguntasse “Ei,   Xiao Zhan está com alguém?”, a resposta seria “Sim, ele está morando com o namorado”, ou “Sim, ele e o namorado compraram uma casa”. Yibo e eu estávamos dando um grande passo, e o melhor é que isso me deixava feliz.
E, enquanto caminhávamos pela nossa casa nova, cômodo a cômodo, comecei a devanear. Sempre me imaginei morando numa casa grande como esta um dia, mas jamais pensei que esse dia chegaria tão rápido. Desde o começo eu consegui, numa passada de olhos, prever os detalhes da reforma e cada pedaço que precisaria dela, mas naquele momento, morando ali, o espaço sendo realmente nosso, eu conseguia sentir a casa. Sentir o que ela havia sido e o que viria a ser para nós dois.
Um lar. Empolgante, não? E também um pouco assustador. Quando finalmente chegamos ao quarto principal, perguntei por que não passaríamos a noite lá.
– Não tem luz. Todas as lâmpadas estão queimadas. Vou comprar lâmpadas amanhã – Yibo respondeu, me puxando na direção da janela. O luar permeava o vidro, iluminando o quarto com um tom suave de azul. Yibo se sentou no parapeito da janela e me puxou para o seu colo. – Onde acha que devemos colocar a cama? – Ele deu um cheiro no meu pescoço.
– Nossa cama inflável?
– Não, nossa cama de verdade. Você vai comprar uma cama nova pra gente, certo?
– Casa nova, cama nova! Nada mais justo. Pensei em colocar ali. – Apontei para a parede oposta.
– Assim, a primeira coisa que a gente vai ver quando acordar vai ser a baía. A luz pela manhã vai ser fantástica.
– Talvez dê até pra ver a cidade. – Yibo apoiou a cabeça no meu ombro.
– Quando não estiver nublado, com certeza. – Eu suspirei, finalmente sentindo o peso do dia aliviar.
–  Eu contei que pedi pro pessoal da limpeza caprichar na banheira?
A única coisa certa que Yibo tinha feito naquele dia foi contratar uma empresa para faxinar a casa de cima a baixo assim que ele colocou as mãos na chave da casa. Nós iríamos nos livrar de metade das coisas que havia na casa, mas, por Deus, ela ficaria limpinha.
– Mentira!
– E você não sabe da melhor parte.
– Manda, Trepador de Paredes.
– Sabe quando eu saí pra comprar o colchão? Também comprei um Johnson’s Baby Bolhas de Espuma!
– Mentira!
– E você não sabe da mais melhor parte.
– Mais melhor?

– Sim. A mais melhor parte é que eu vou tomar banho de espuma com você. E não porque eu esteja planejando te seduzir, não que eu não vá tentar… Nem porque você vai precisar de alguém pra esfregar suas costas e eu vou me oferecer. Mas por um motivo muito específico – Yibo disse, levantando e me arrastando até o banheiro.
– Pra me ver pelado?
– Isso é só um bônus. O verdadeiro motivo é que as lâmpadas daqui também estão queimadas, e eu sei que você ficaria muito assustado se tivesse que ficar no escuro. – Ele abriu um sorriso enquanto entrávamos no banheiro.
– Você me conhece mesmo – eu afirmei.
De dentro de uma sacola no canto, ele tirou um pacote de velas flutuantes e uma caixa de fósforos.
– Um banho prático com um toque de romantismo.
Eu caí na gargalhada. E tomei banho com o senhor Johnson e o senhor Wang na banheira. Paraíso. E eu pensando que o romântico prática dessa relação era eu.
Uma hora depois, eu estava acampado no chão da minha nova sala, num colchão inflável com o meu novo colega de quarto. Eu estava relaxado; o meu corpo, leve e solto. E, quando Yibo me penetrou para batizar o primeiro de tantos cômodos, eu me deixei levar completamente.
Só que não fui levado. Yibo fez tudo o que podia para me levar até lá, mas nada.
O que não quer dizer que não tenha sido maravilhoso e sexy e delicioso, a maneira perfeita de terminar um dia com tantos altos e baixos.
– Não? – Yibo perguntou com a respiração ofegante no meu ouvido, o corpo escorregadio sobre o meu.
Acariciei as costas dele e fiz que não com a cabeça, finalmente sentindo-o relaxar dentro de mim.
– Eu te amo, Yibo – sussurrei. – Tanto, tanto.
Ele nos virou para que eu pudesse me aninhar na sua conchinha, e o sobe e desce do seu peito me ninou.
– Eu também te amo, amor – Yibo sussurrou e me abraçou com força.
Antes de cair no sono, entre ouvindo todos os ruídos ainda estranhos da nossa nova casa, concluí uma rápida tese. O meu O continuava lá, só meio arisco nesta noite.
Tudo começou bem na nova vizinhança.

(.....)

Amor entre as paredes ( livro II)Onde histórias criam vida. Descubra agora