A verdade

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- Ué, não falei? Ela estava no vôo fretado pelo meu grupo para Milão.

- Mas com assim estava?

- Estava como copiloto, me lembrei pela tatuagem dela, era a mesma pintada no jato.

- Você não disse que era um jatinho?

- Ué e fazia diferença?

- Obrigada, Gil, depois a gente se fala...

- Espera! Vocês estão bem agora?

Não respondi, desliguei imediatamente.

Sol .

Ela não atendeu ao meu chamado, liguei para a empresa, ela estava em reunião. Então percebi que havia uma mensagem dela no celular.

"precisarmos conversar com urgência!".

De repente me dei conta de um monte de coisas. Corri e procurei uma folha de contrato assinado no primeiro arquivo que encontrei, lá estava, Anghela Helena Weinberg  Di Piazzi.

Helena .

Minha nova patroa.

A minha Helena . Minha? Que maluquice! Nunca foi. Nunca foi de ninguém.

Não tinha cara pra voltar para a sala de vídeo conferência, por mais importante que fosse, ainda estava me refazendo do susto. Bebi uns dois copos d'água pensando no que deveria fazer e não cheguei a nenhuma conclusão a não ser desgastar meu salto no carpete, andando de um lado a outro. Mais ou menos dez minutos depois a secretária tocou no meu ramal.

- Senhora Clara Caroline, a doutora Anghela pediu que fosse até a sala dela. – tava demorando.

- E onde fica? – minha voz soou insegura.

- Atravesse o primeiro jardim interno e siga até a sala de reunião 2, vire à esquerda e chegará na sala dela.

- Obrigada, Edna. – eu respondi ou sussurrei?

Foi o que fiz, logo depois de retocar a maquiagem, me olhar no espelho umas cem vezes pra ver se o meu cabelo estava bom e cuspir o chiclete, atual base da minha pirâmide alimentar.

*********

Junho.

Narração Helena  Weinberg



Me olhei no espelho pela décima vez, odiei aquele cabelo castanho, mas enfim, precisava fazer alguma coisa, Lara estava me irritando profundamente com aquela história de fantasia sexual. Ainda não estava acreditando que ela me fez colocar uma foto parcialmente nua na internet, com uma biografia ridícula.

Balancei a cabeça mais uma vez ao perceber que estava me comportando como uma cordeirinha.

Meu relacionamento não estava mais dando certo, essa história de fantasia sexual seria minha última tentativa, já estávamos nos desgastando demais e definitivamente o que eu menos queria era que nos tornássemos inimigas.

Lara era linda, não muito inteligente, mas era educada e sofisticada, embora fosse bastante mau humorada nunca reclamava quando precisava me ausentar mas também não aceitava que eu reclamasse das viagens dela.

Era assistente de uma produtora de vídeo e viajava tanto quanto eu para matérias que estavam constantemente no National Geo. Era previsível que depois de um ano em meio estivéssemos caindo numa relação morna e sem graça. Talvez ela tivesse razão, afinal.

Assim que os empresários responsáveis pela fabricação dos containers saíram da sala, Vitória escondeu a risada mas meu primo Pietro não.

- Dio Santo Anghela Weinberg , que porra de cabelo escroto é esse?

- Não ria. Estou numa experiência nova com Ci

- Minha amiga, você está simplesmente ridícula. – Vitória afrouxou o cinto naquela barriga horrível que estava cultivando nos últimos anos e voltou a escrever em sua agenda.

- Vou almoçar. Vamos Vitória, Anghela?

- Uma e meia da tarde? Comer comida remexida no centro do Rio? Não, obrigada. Prefiro um café e um bolinho aqui perto mesmo.

- Pois eu vou almoçar, a segunda rodada de negociações será mais dura. Vamos então, Pietro?

- Sim, que tal um restaurante que tem aqui na rua primeiro de março?

Eles seguiram felizes rindo do meu cabelo ridículo e entrei na livraria na rua do Ouvidor, repensei o bolinho, estava sem fome, apenas o café expresso com creme e de repente dar uma volta, ler alguma coisa.

Rodei por uns corredores próximo a entrada e ouvi uma risada tão gostosa, não, estava mais para uma gargalhada, fazia tanto tempo que não ouvia uma risada assim, limpa, sincera, chamou minha atenção.

Levantei os olhos para ver a quem pertencia aquela risada, uau! Eram duas mulheres mais ou menos da mesma idade e estatura, a que falava era bem magra de cabelos longos e cacheados, a outra, que ria, tinha um corpo incrível, passou por mim e acompanhei o seu andar, ela podia tentar esconder aquela bunda perfeita por baixo da saia comportada mas não estava conseguindo. A blusa era clara e com a diferença da luz percebi sua silhueta.

Veramente bella.

Acho que nem pensei direito quando comecei a segui-la pelos corredores, mas ela estava entretida com um livro, parei atrás dela, queria saber o que lia com tanto interesse, mas não deu tempo, ela largou o livro na estante e se virou tão rápido, tentei me virar também para que não percebesse que estava bisbilhotando e acabamos trombando.

Me desculpei, ela também se desculpou e então me encarou. Me encarou mesmo. Depois olhou para minha boca e não pude evitar sorrir, ela estava com uma cara engraçada, parece que se assustou comigo. Eu segurava um livro qualquer e então percebi que aquilo estava muito estranho, então me afastei. Quando já estava no caixa percebi que então era ela quem afinal me seguia, ora...ora... estava interessada, entretanto não falou nada, eu também não, a bem dizer estava tentando me concentrar em Lara, mas aquela mulher era diferente, havia uma vida nela, um jeito.


* * *****


Considerei em atender o telefone, olhei novamente, número privado, talvez fizesse parte da palhaçada da Lara, então atendi.
- Alô?

- É... oi... é... eu.. é...

Quer marcar um programa.

- É.

- Mulher ou homem? – segui o roteiro.

- Um-mulher... mulher!

Sorri ao perceber que não era a Lara, talvez alguém tenha visto o site e estivesse marcando um encontro, ou então Lara mandou alguém ligar, continuei naquela bobagem.

- Tá, uma mulher, várias mulheres, só mulher...

- Só eu.

- São cento e vinte a hora, vaginal, a posição que voce escolher, não taço chuva de cor nenhuma, dourada, negra, e não aceito isso também, nada com sangue, crianças, animais ou árvores. – A mulher me interrompeu..

- Moça. Moça! – parei – Sou só eu, sem vaginal, oral ou anal – aí mesmo que ri, caralho, por essa eu não esperava, Lara estava se superando! Mas de repente, talvez não fosse a louca da minha namorada.

- Isso é trote, moça? Se for, não ligue, não posso ficar ocupando essa linha com besteiras e.

- É sério! Só preciso de uma acompanhante.

Parei pra pensar, melhor verificar, se fosse e eu estragasse tudo, ela encheria a porra do meu saco.

- Certo, onde podemos nos encontrar?

- Anota o endereço. – Ok, não reconheci o endereço, mas resolvi seguir com a brincadeira. Cheguei rápido até, só não entendia por que ela arrumou um lugar tão longe da minha casa com tantos hotéis e motéis tão mais pertos.

Então abriu a porta e eu tive que rir.

Dio mio, que merda!

A loira gostosa da livraria. Não resisti a curiosidade e resolvi entrar.

Ouvi a tudo atenta, fiz um esforço enorme para não rir e não desmentir, não ainda, ligaria pra ela e diria que era um engano.

Caralho, essa mulher era a mais lindamente maluca que havia conhecido até então, contratar uma namorada falsa? Ela? Qualquer um toparia namorar com ela na hora!

Saí do apartamento dela e ao entrar no carro, recebi uma mensagem da Lara, ela se esqueceu de me avisar que tinha um trabalho novo e sairia da cidade, mais que retardada.

Depois mandou uma mensagem dizendo que a gente precisava conversar quando voltasse.Mas é impressionante como ela é. Se viesse com papo de terminar...

Certamente nem amizade restaria entre nós, ela fez com que eu pintasse meu cabelo. Ainda assim ligaria para a Clara  assim que amanhecesse. E qual foi minha surpresa quando ela ligou e me acordou.


Setembro

Narração Clara  Albuquerque .




E se não fosse minha propensão em conhecer mais um pouco sobre aquela mulher linda, louca e muito, muito gostosa, não estaria agora com tanta raiva, uma puta dor de cabeça e totalmente despreparada para ficar perto dela.

Li e reli, Anghela H. W. Di Piazzi Diretora Comercial.

A moça loirinha que estava sentada próxima à porta pigarreou e me virei para encara-la.

As sobrancelhas levemente arqueadas e um sorriso sútil nos lábios rosados, esperando que eu dissesse algo.

- É a Clara Caroline, ela me mandou vir. – consegui transparecer uma falsa calma.

- Ah sim, senhora Clara, a nova supervisora comercial. Sou Sabrine. Seja bem vinda.

- Obrigada. – não por muito tempo, preciso dar o fora desse lugar o quanto antes.

- Pode entrar, a senhora Di Piazzi a aguarda.

Senhora Di Piazzi.

Tarada, doente.

Pelo menos Sabrine era engracadinha. Falava como uma mocinha adolescente.

Entrei sem bater.

- Com licença Helena , mand...

- Sente-se senhora Albuquerque . – me interrompeu.

Meu coração batendo na garganta. Helena estava atrás de sua mesa com um monte de papéis na mão, não se parecia em nada com a Helena, na verdade aquela mulher de calça social, de blazer grafite e camisa preta era a senhora Anghela. Nossa, Anghela.

Aquelas roupas que ela usava, eram do trabalho, com a lembrança dela me encontrando pela primeira vez no bar do centro um sorriso debochado escapou pela minha boca. Ainda estava bem nervosa e meus joelhos batiam um no outro com frequência, não sabia o que fazer ou como agir.

Era tudo tão estranho e surreal, não conseguia acreditar. Helena levantou os olhos por um instante me encarando, meu peito ardia, meus joelhos tremiam e minha boca ficou seca.

Depois do que pareceu um século, voltou sua atenção aos papéis. Respirou fundo, passou a mão nos olhos com o polegar e o indicador, parecia exausta.

- A senhora perdeu a palestra. – merda, senti falta da voz dela, segurei aquele nó estranho na garganta, aquele que antecede o choros. – Estes, são os documentos dos contratos que as empresas chilenas enviaram – esticou as mãos para que os pegasse, ela segurou os papéis por mais tempo que o necessário então largou de repente. – Como pode ver são duas empresas sólidas, entretanto preciso que faça suas considerações sobre os riscos de assinarmos os contratos, assim como estão.

- Sim senhora. – não precisava ter me pedido isso, mas se ela queria agir assim, fingindo que nunca me viu antes, faria o mesmo.

Por mais que me doesse.

- É só.

- Com licença. – então me lembrei de uma coisa e me virei já próximo à porta, - Ah! Helena ... – freei na mesma hora, ela estava me olhando, respirei fundo e prossegui. – desculpe, Anghela, precisa dessas informações para quando?

Ela olhou para o relógio em seu pulso, olhou para a janela enquanto tamborilava o dedo no queixo.

- Quarenta minutos.

- Quarenta minutos??

- Isso. Tenho certeza da sua capacidade, me surpreenda positivamente, dessa vez.

Abri a boca para protestar e ela me indicou a porta com a mão, me negando a chance de falar. Dá pra acreditar nessa mulher?

"me surpreenda positivamente, dessa vez."

Imbecil. Pervertida. Engoli aquele choro idiota e andei apressada até minha sala e no caminho chamei Bárbara e Ágata, a quem me foi apresentada como a funcionária mais antiga do setor.

Contei a elas que a senhora Anghela precisava de uma resposta rápida quanto aos riscos de cada contrato. Pedi desculpas a Bárbara, para que não pensasse que estava passando por cima dela e seguimos com o trabalho.

Fiquei com um dos contratos junto com Ágata e Bárbara assinalando o outro. Discutimos sobre os pontos em cada uma e trocamos os contratos, achei mais algumas coisas que não poderiam passar despercebidas e em trinta minutos estávamos com os contratos prontos.

Os peguei e praticamente corri até a sala da Helena , então a adorável secretária disse:

"Ela saiu pra almoçar, assim que voltar lhe chamo."

Filha da puta.

Voltei pra minha sala e só de sacanagem scaneei os documentos, os compactei e enviei por e-mail. Pronto! Babaca.

Cara, ainda estava fora de mim com aquilo tudo, parecia uma piada sem graça. Por que uma mulher como ela se prostitui ou se prostituía? Essa pergunta não saía da minha cabeça.

Uma pervertida fetichista! Não havia outra explicação.

Segui desnorteada durante todo o dia, tentando me concentrar no que fazia, a cada vez que me lembrava de algo era como montar um quebra cabeças, os compromissos inadiáveis, a viagem ao Chile, falar de DFP. Os telefonemas que a deixavam tensa. Ainda não conseguia entender.

Seria tão mais simples que me contasse a verdade de uma vez.

"Tá. Mas pelo menos me diz se o seu nome é mesmo esse.

- É.... é? É.

- Isso foi ridículo Helena Weinberg .

E lá estava ela rindo de mim mais uma vez."

Sol  finalmente atendeu ao meu telefonema.



Ligação on


- Ô sua piranha, tô tentando falar com você, cacete.

- E eu tô te ligando, porra Sol  preciso falar com você, mas pessoalmente.

- Pessoalmente não tem como, estou indo daqui a três horas resolver pepino na locação de áreas em Curitiba. Também queria falar contigo pessoalmente, mas né. Abre seu e-mail particular, agora!

Está aberto, espera, vou atualizar.

Ao abrir o e-mail dela, senti meus olhos saltando pra fora da órbita.

- Que porra é essa??

- A porra do meu saldo. A Galáctica depositou dezoito mil de volta. Quer por favor me dizer o que está acontecendo?? – como se eu fosse capaz de saber o que se passava na cabeça daquela tarada.

- Ainda não Sol , deixa primeiro eu descobrir, você volta quando?

- Amanhã à noite. Vou direto do aeroporto pra sua casa. Tive uma conversa com uma pessoa e preciso contar isso em detalhes.

- Perfeito, mesmo morrendo de curiosidade, até amanhã.

- Até. Juízo! – se até Sol  estava me pedindo pra ter juízo é porque a coisa estava feia mesmo.

Ligação off



Resolvi tomar uma xícara de café, segundo item da minha dieta, depois dos chicletes.Ao retornar da copa, perguntei a Edna, como quem não quer nada, se ela sabia se a Dr. Anghela morava no Joá.

Ela respondeu que sim.

Filha da puta.

Ela me levou na casa dela! A casa era dela.

Dela.

Por isso não havia problema em dormirmos lá, usar as coisas do " amigo" dela, por isso ela sabia da bendita pomada no armário.

Andando na frente pra ver os cachorros porra nenhuma! Devia estar escondendo os porta-retratos.

Cretina.

Como não percebi antes? O nome das duas empresas se correlacionavam! É o nome de um seriado de tv, Battlestar Galáctica.

Que absurdo.

Ai como fui burra.

Cara, ela me fez de palhaça.

Por quê?
Pra quê??

"Dirijo"

"Dirige o que?"

"frete"

Dirijo um frete.

Ai que ódio!

Diretora de uma companhia de transporte multimodal. Ela realmente dirige um frete.

Caramba.

Ela me entrevistou. Aquelas perguntas todas sobre...

Que merda.

Já me preparava para ir embora às dezoito horas quando a secretária mais uma vez passou um chamado da "Dr. Anghela". E lá fui eu com os contratos encadernados, e uma surpresinha para nossa diretora.

- Sente-se. – nem esperou que dissesse nada. – A senhora não participou de toda a reunião e está atrasada horas com sua análise. – fez questão de frisar horas.

-Como é ?

- Eu disse quarenta minutos, não o dia inteiro. – estava sendo dura e inflexível.

- Ridícula. – resmunguei.

- O que disse? – ela parecia se divertir com a minha cara.

Recostei-me na cadeira, nos encaramos.

Não saberia dizer o que se passava pela cabeça dela, mas na minha, estava desesperada para pular sobre ela, arrancar-lhe aquele ar autoritário da cara. Primeiro queria estapear essa doente, traidora, mentirosa, mas quando os lábios dela se moveram com um bico contrariado, me odiei por perceber que queria tirar dela todos os beijos possíveis.

Aquela mulher mexia absurdamente comigo. E talvez aquela mulher fosse mais uma a satisfazer seus fetiches. Mesmo assim minha vontade era morder seus lábios e arrancar-lhe todo o fôlego, queria matá-la entre beijos ou morrer em seus braços já que no fim de tudo era ela quem me tirava o fôlego, que me fazia esquecer meu nome e abandonar meu bom senso com um simples olhar.

Precisava me comportar e agir, como ela disse certa vez.

"Sem misturar as coisas"

Então apesar dela me fuzilar com os olhos, desviei os meus para a caneta de inox que vez e outra ela iniciava uma sequência de cliques.

- A senhora estava ausente. Por isso lhe enviei a análise por e-mail, para que pudesse acessá-la em qualquer reunião que estivesse. – tentei ser o mais polida e educada, possível. Ela arregalou os olhos sutilmente e desviou-os para a tela do computador, desconfiada, franziu o cenho e me olhou séria. – Como a senhora pode observar a análise lhe foi encaminhada em trinta e oito minutos. – minha educação nada tinha a ver com o pequeno deboche.

- O que não significa que esteja correta... – Filha da mãe! Sabrine, a secretária, interrompeu pedindo permissão para ir embora e ela apenas fez um sinal com a mão mandando que fosse.

Por favor Deus que não fiquemos à sós ou não conseguirei manter a compostura.

Passei-lhe os contratos encadernados, os mesmo que antes vieram em folhas soltas e desorganizadas. Helena  estreitou os olhos para as encadernações e suspirou. De repente, sabe-se lá o motivo, abri minha boca só pra terminar de ferrar com tudo.

- Helena, a Pocah nã....

- Puta que pariu! Tem alguma Pocah aqui nos contratos que eu te passei? – ela me assustou ao me interromper desse jeito, nunca tinha visto tão puta, meu coração quase parou. – Eu quero mais que a Pocah se foda e minha bunda cresça!



A Acompanhante - ClarenaOnde histórias criam vida. Descubra agora