- Cara, vou te falar? Sua família nova é maneiríssima. Aquela coroa baixinha é a mais engraçada de todos. - dando-se conta do meu estado de choque, parou de falar por um instante e ficou me analisando. - Que foi? Que cara de cu é essa?
- Lena me disse que eram assim, bem alegres, mas não me disse que era tanto.
Sol gargalhou e lhe segurei a boca com as mãos, ela ficou irada e ainda rindo soltou minha mão e se pôs a cuspir.
- Ai que nojo. Essa mão de banheiro na minha boca! Lavou pelo menos?
- Para de loucura. Não quero que ninguém saiba que estou aqui.
- Impossível Clara, seu irmão acabou de chegar com a Luiza, a Bárbara também chegou e está perguntando por você, daqui a pouco a sua "Helena", chega com o tal presente.
- Estou apavorada.
- Ah. Começou... começou a patricinha... Se joga, amiga! É festa! É seu aniversário, 30 anos, Porra!
- Shhhhh!!! Pelo amor de Deus! Estamos nos escondendo!
- Ah, não brinca...
- Não que eu não goste, mas é que... tem muita gente aqui.
- Deveria ter alugado uma noiva alemã, não passaria por isso, eles são em sua maioria muito reservados.
- Era pra rir?
- Não.
- Sabe o que a nonna disse Sol?
- O que?
- Que eu deveria engravidar de uma vez e casar depois. Que a Anghela está ficando velha demais, que ela está ficando velha demais. Começou a dizer coisas e Pietro traduzindo tudo, escuta essa. Explicou como deveria preparar a comida da sua Anghela, eu nem sei cozinhar, perguntou sobre a igreja que frequento. Eu tô falando, eles são muito loucos.
A vontade que me deu de bater na Sol foi enorme. Ela fazia aquela cara que eu odiava.
Prendia os lábios nos dentes e juntava as sobrancelhas.
- Se você rir te afogo na privada, eu juro sua magricela que se você...
As batidas insistentes na porta me interromperam e Sol não pensou duas vezes antes de abrir sem nem ao menos ver quem era.
Anghela.
Ficou nos olhando e seu sorriso se apagando pouco a pouco, até que Sol resolveu abrir a boca.
- Ela está enjoada. Acho que foi o ravióli.
Então voltou a sorrir e sacudiu a cabeça em negativa.
- Ah Sol, você é mesmo uma boa amiga. - Sol manteve a postura e a cara de "não sei do que está falando" - Por um segundo achei mesmo que estava passando mal. - olhou em minha direção ainda sorrindo. - Sol, pode nos deixar à sós por um instante?
- Claro, qualquer coisa, bem, não adiantaria nada mesmo gritar... - sua voz saiu meio resmunguenta e então nos deixou sozinhas no banheiro.
Helena coçou o rosto, como se estivesse incomodada.
- Minha lora, por um momento achei que estava se sentindo mal, mas então percebi que está se escondendo da minha família. - conforme foi falando, sua voz ia subindo algumas oitavas.
- Está chateada, imagino, mas eu...
- Tá tudo bem meu amor, também me escondo com frequência deles. Me escondo tanto que resolvi ficar por aqui, no Brasil, desde o início da minha fase adulta.
- Desculpa, Helena-Anghela! Anghela... é... me desculpa, eu só precisava de um tempo.
- Não pode dizer que não avisei. - ela me fez sorrir com aquela constatação.
- Tem razão, mas é só questão de me acostumar. Minha Nossa, e eu achando que a minha família era barulhenta.
Ganhei um beijo apaixonado e intenso, seguido de um lindo sorriso de dentes alvos e alinhados.
Acariciei seu rosto e aquele sinalzinho que eu tanto gostava, acima do lábio.
- Precisamos mesmo sair daqui, seu irmão chegou.
- Fiuk deve estar deslocado.
Assim que cheguei na sala presenciei uma cena que nem em mil anos poderia acreditar, o som alto com a música de Renato Carosone em Tu Vuò Fa' L'Americano, uma família italiana inteira batendo palmas.
Dançando e no meio deles, Sol, Mônica, Fiuk e o mais feliz dos irmãos com a sua Luíza.
- Bem se vê o deslocamento do seu irmão...
Com essa frase, me deixou um beijo na têmpora e seguiu para o meio deles, disse algo no ouvido de Pietro que sorriu e mexeu no som, logo a versão da música com a voz de Pitbull com Panamericano tomou toda a sala.
As crianças adoraram, até a nonna gostou. Fiuk veio em minha direção e me estalou um beijo demorado no rosto, Luiza me abraçou e também me beijou.
- Feliz aniversário mais uma vez, maninha.
- Obrigada, fiuk.
-Muitas felicidades, cunhadinha!
- Obrigada, Lulu.
De repente, e não sei em que momento, comecei a me sentir muito mais familiarizada com todos e soltava grandes risadas com as primas de Helena, as moças eram muito divertidas e falavam um português muito enrolado, pediram que lhes ensinasse o samba, mas elas eram muito duras, não conseguiam rebolar, saia mais como um "quadradinho". E eu acabei descobrindo que Natália Letícia era a mesma pessoa. Vai entender, nomes compostos.
Meus olhos e os de Helena se cruzaram em vários momentos, ela parecia divertir-se com algum pensamento. Em dado momento, ela me tirou da companhia das mulheres e me conduziu até os fundos da casa.
- O que foi?
- Presente...
- Aqui atrás? O que está aprontando?
- Lembrei-me de uma coisa que me contou.
Meu Deus.
Escondi a boca aberta nas mãos e fitei os olhos divertidos de Helena com os meus arregalados. Aos poucos me refazendo do susto inicial, juntei as mãos no peito ainda mantendo os lábios entreabertos. Estava sem palavras, emocionada e feliz.
- Meu amor, eu... Obrigada. Qual o nome dele? É ele? É ela? Qual a idade?- me pus a bombardeá-la de perguntas.
- Você me disse um dia que adoraria ter um cão desses, mas que não dava em um apartamento, então eis o seu cãozinho. O nome dele é você quem vai escolher.
- Que lindo. Eu quero pegar!
- É seu loira, vá em frente.
Antes de me debruçar no cercado metálico, agarrei Helena pelo pescoço num abraço e lhe apertei os lábios com os meus no que deveria ser um beijo e do mesmo jeito que me aproximei, me afastei, ligeira, queria muito segurar o cachorrinho. E ele era tão dócil, veio logo no meu colo abanando o rabo.
- Quanto tempo ele tem?
- Cinco meses. Pelo visto você gostou.
- Tenho gostado de tudo que vem de você Lena. Gostei do bolo de morango com chantilly, dos docinhos de damasco e da cascata de chocolate. Foi uma festa bem diferente de todas até então e me esqueci completamente da dieta.
*******
Era um pouco mais de uma da manhã quando finalmente ficamos sozinhas, o mesmo olhar divertido atravessou seu rosto.
- Que cara é essa?
- Sabe Clara quando estava ensinando Sophia, Isabella e Fabrízia a sambar?
- Sim, o que tem?
-Será que consegue...-segurou-me pela cintura.- será que consegue rebolar da mesma maneira comigo, embaixo ?
Uma risada alta me escapou.
- Pode apostar que sim.
E então... nossa festa particular começou.
Alguns meses depois.
Narração Helena Weinberg
Estava num sono tão gostoso quando fui acordada com lambidas frenéticas em meus dedos dos pés, depois de três anos.
Clara estava se superando. Puxei os pés irritada e mentalmente todos os palavrões conhecidos e alguns inventados passaram pela minha cabeça.
- Filho da Puta. Sai daqui! Sai bolota, oh CLARA. - não respondeu, o que me irritou ainda mais.
Ela deixou a porta da varanda aberta mais uma vez. Puxei bolota pela coleira para fora do quarto, conduzindo-o até o jardim dos fundos. Era um cão dócil, mas tinha o péssimo hábito de nos acordar e estava sempre sujo, odiava banhos e nos fazia correr pela casa inteira atrás dele sempre que via o carro da pet shop, o nome escolhido pela minha adorada esposa foi simplesmente perfeito.
De todos os cães que haviam no canil, de todos eu escolhi o mais porco. Precisava lavar os dedos do pé e o banho de Clara não acabava nunca.
Num contorcionismo lavei os dedos melecados pela baba de bolota na pia do lavabo. Voltei para o quarto ansiando por um pouco mais de sono, em vão, estava totalmente acordada. Rolei na cama e virando-me de lado logo meus olhos ficaram hipnotizados pela fotografia exposta a cabeceira.
Ela estava realmente linda com aquele vestido de noiva, foram dias incríveis, naquele instante me peguei desejando repetir a lua-de-mel, ouvir as risadas despreocupadas dela. Suspirei pesado diante da realidade de dias engolidos pelo trabalho, por um mercado instável e cheio de incertezas. Sorte a minha ainda em tempos mais complicados tê-la comigo.
Quinze longos minutos se passaram.
Resolvi me levantar e enquanto me espreguiçava, Clara surgiu, enrolada na toalha e com uma cara estranha. O sorriso inicial que ofereci deu lugar pouco a pouco a uma preocupação, ela sorria com os lábios, mas os olhos me diziam o contrário.
- Tudo bem? - Clara cerrou levemente os olhos.
- Pensa rápido.
Realmente rápido, Clara jogou algo em minha direção e peguei por reflexo.
- O que é isso? - referi-me ao bastão branco.
- Isso é a noite de sábado ou a manhã de domingo logo após aniversário da Sol onde tentamos o procedimento.
Agora pude vislumbrar um sorriso sincero, veio até mim e puxou o bastão de minhas mãos.
- Tá vendo aqui, uma fitinha azul, significa a escalada em Minas Gerais.
Em Maio?. - fiz que sim, já sabia onde queria chegar. - Então, uma fitinha escalada, duas fitinhas grade na piscina e reforma do quarto de hóspedes.
Respirei fundo e soltei o ar de uma só vez.
- Acho que não vamos escalar.
Fui tomada por uma felicidade indescritível, ansiedade, mas nenhum medo. Em meus pensamentos apenas a certeza de que queria conhecê- lo o mais rápido possível. Aquela mulher, a mulher que tanto amava estava me contando que esperava um filho, um filho nosso, um filho meu.
- Acho mesmo que não vamos escalar. - senti que sua voz estava embargada, abracei seu corpo pela cintura e fechei os olhos, apenas sentindo menos de seu calor e mais da umidade da toalha com perfume de amaciante.
Os dedos de Clara me tocaram os cabelos, sempre gostei quando me tocava os cabelos, tão delicada e suave. Desde o primeiro minuto que estivemos juntas, eu sabia, sempre soube que era ela. E cada detalhe que construí foi pensando em conseguir mais um de seus sorrisos para minha coleção, os detalhes do pedido de casamento, hmm, bem, este não foi exatamente o sorriso,logo que a aliança tomou residência em seu anelar, chorou todo o tempo.
Já me arrependia da contratação dos músicos e das lanternas de papel no lago, enquanto remava ela ainda chorava, descemos do barco e ela ainda chorava, entramos no living da pousada e ela chorava.
Todos nos parabenizavam, naquele instante Clara parou um pouco de chorar, para sorrir, era em fim o sorriso que eu queria, mas logo.
Dio Santo.
Voltou a verter lágrimas. Começava a me angustiar pensando no tanto que ficaria desidratada, ofereci-lhe um copo d'água, ela finalmente parou de chorar. Seguimos para o chalé que ela adorava, nunca antes havia rezado tanto. Não conseguia mais vê-la daquele jeito.
Pior a incerteza em saber se havia feito realmente certo o pedido de casamento. Só consegui relaxar quando a tive em meus braços, Clara estava feliz, quem diria, afinal foram tantas lágrimas que já me perguntava onde havia falhado, mas a minha mulher havia gostado, não houveram dúvidas depois do abraço apertado que me deu e da maneira urgente com que sua língua invadiu minha boca misturando o gosto de lágrima a minha saliva.
Os ultimos três anos da minha vida foram os melhores que vivi, me divertia mais que me aborrecia, ela me mantinha focada no trabalho, assegurava boas e longas risadas com a Sol por perto.
Nunca me esquecerei do dia de nosso casamento, Sol, sempre ela, foi a causadora de nossos ataques cardíacos. Senti Clara puxando a manga de meu blazer insistentemente, conversava com Pietro naquele momento, virei-me e percebi que estava com os lábios entreabertos, segui seu olhar e é, tinha razão em estar abismada. Sol beijava Bárbara, enquanto seus dedos permaneciam entrelaçados ao de Mônica, que conversava tranquilamente no celular.
- Você sabia Clara ?
- Não, pela primeira vez ela não me contou o que acontecia.
- O que isso quer dizer?
- Que Sol deve estar muito feliz.
Sol estava feliz pela ocasião de nosso casamento, permaneceu feliz e sem dúvidas ficaria extasiada com a notícia que a Clara tinha pra contar, se bem que.
- Preciso te perguntar uma coisa idiota.
- Pergunte sua coisa idiota.
- Contou pra mim... primeiro? - a risada que veio em seguida foi perfeita, alta, limpa e divertida, respondeu-me com um aceno positivo com a cabeça. Virei-a, agora com o dobro de cuidado e a deixei na cama. - Fique aqui, vou escovar os dentes e tomar um banho rápido.
- Ficarei exatamente aqui.
Clara era incapaz de cumprir um simples " fique aqui, mas confesso que gostei que não me tivesse esperado, há tempos que ela mesma não preparava um café-da-manhã e lá estava a minha Clara, entrando no quarto carregando a bandeja com suco, pães, geleia e café. Enquanto comíamos, em silêncio, não pude deixar de notar que me olhava de esguelha.
- É, preparar o café foi mesmo interessante... O que deseja, senhora Clara Weinberg Di Piazzi?
- Eu? Será que não posso ser gentil com minha mulher? Que logo significa que tenho algum interesse?
- Não precisa nem tentar...
- Ser gentil?
- Me enganar. De mais a mais, você não precisa disso. Agora mais que nunca. Diga o que deseja.
- Na verdade não é bem um desejo, é mais uma coisa que gostaria...
- O que é?
- Que Sol seja madrinha.
E foi o pedido mais fácil de se atender e não poderia ser diferente.
- Helena.
- Diga.
- você ficou feliz que deu certo ?
- Que pergunta boba, claro que sim! E você? Sei que nós combinamos de tentar e não achamos que daria certo, estávamos sem fé.
- Mas foi muito rápido.
- Muito mais do que imaginei.
- Pelas minhas contas do aniversário da Sol seis, sete semanas, uns dois meses, não é isso?
- Não sei, não entendo nada dessas coisas.
- Mas vai ter que entender Lena. Você vai me ajudar!
Parecia desesperada, e aqueles olhinhos arregalados combinavam perfeitamente com os lábios presos nos dentes. E ao olhá-la assim, percebo que as melhores coisas que fiz na vida foram: ter atendido aquele telefonema, me encontrado com ela, ter sido sua noiva de aluguel. Os lábios dela eram tão macios, não havia sensação mais gostosa que beijá-la depois de comermos salada de frutas, era uma mistura de sabores deliciosa, gostava de sentir seus dedos percorrendo meu braço tão de leve que mais parecia querer me provocar cócegas. Nosso relacionamento havia atingido um nível que nunca antes havia conseguido com outra, minhas vontades eram respeitadas, nós nos complementávamos, nós nos admirávamos e foi tão intenso. Até determinado momento no casamento de Fiuk não tinha a certeza de que seria ela a pessoa certa em minha vida e de repente não era apenas ela, ou somente ela. Percebo que são eles as pessoas certas em minha vida e quem poderia prever que me apaixonaria tão cegamente, sem conseguir diferenciar o sentimento que havia por um e por outro.
Sentia-me verdadeiramente feliz.
Tudo ao meu redor se encaixava perfeitamente, ainda que a Battlestar estivesse passando por momentos mais complicados e a distância por conta das viagens de negociações nos obrigava a estarmos longe.
Sempre dávamos um jeito de não perdermos aquele sentimento tão especial e tão louco que se perpetuava a cada dia mais intensamente.
Clara me deu um gato de presente, um gato de nome Brad, ela mesma escolheu o nome ridículo do gato persa, ela não era boa com nome de bichos, definitivamente não. Minha amada levou as tigelas para a cozinha e Brad foi atrás.