Capítulo 19 - Morado

29 4 2
                                    

De volta ao morro, não havia outra coisa que eu pudesse lembrar além da breve e reveladora ação do Cyber. Pensamentos que me repeliam de casa e ao mesmo tempo me guiavam para lá. Não tive tempo ou concentração para ensaiar as palavras.

Já tinha amanhecido quando avancei pelas vielas em direção ao topo, através da viseira fumê do capacete, pude perceber o brilho da lente no binóculo de Alisson, eram como disparos dizendo "eu vejo você, eu sigo você, eu pego você".

Ainda que ele não pudesse ir a muitos lugares pela falta de acessibilidade no morro, era impressionante o poder que podia ter através de seus olhos e alguns cliques.

Precisei parar na escada por um bom tempo, digerindo a certeza da traição antes de abrir a porta.

- Dormiu com a princesinha hoje? – ele perguntou sem tirar o rosto do binóculo, mitando as casas das vizinhas bonitas.

- Tá com o celular?

- Tô, mandou mensagem?

- Entra na poupança da Agatha e me entrega – abri a geladeira para pegar uma cerveja apenas para não o ver se virar para mim perplexo.

- Por que?

- Só faz o que eu mandei.

- Eu excluí – ele deu de ombros, vi pelo vidro do micro-ondas que tinha voltado sua atenção para fora novamente e pude relaxar um pouco.

- Como assim você excluiu.

- Eu tava sem espaço.

- E apagou o aplicativo do banco sabendo a dificuldade que é cadastrar outro dispositivo?

- Achei que não teria problema, só vai ser usado daqui a três anos.

- Então chama o mané e pede pra trazer o carro, vamos ao banco.

Alisson abaixou o binóculo lentamente e ainda mais devagar foi a forma como ele se virou para mim. Me forcei a me manter no lugar, com os olhos nele.

- Porque está falando disso, agora?

- Porque sei que está tentando me matar.

Seu rosto se manteve impassível, em sua arrogância ele se virou para a janela e levou o binóculo ao rosto. Apenas alguns passos e dei um tapa tão forte na lupa que ela rodou para fora da janela.

- Que porra, Alan.

O segundo golpe foi com o punho fechado no lado esquerdo de seu rosto, a cadeira virou, ele se agarrou na minha camisa me levando com ele para o chão, ele ainda era muito mais forte que eu, a minha vantagem eram as pernas funcionais, tentei me levantar, mas Alisson fechou uma chave de braço.

Eu era o dono do morro, mandava em qualquer um a qualquer hora, mas se tinha uma pessoa que me aterrorizava era ele.

- O que estão fazendo. Para! Para! Alisson, solta ele – a voz desesperada de Agatha me deu uma adrenalina sem igual, forcei as pernas para levantar e passei um braço por baixo da chave de Alisson o derrubando no cão, avancei para ele e fui bloqueado por Agatha no meio do caminho – Alan, por favor, para.

Desviei o olhar do rosto choroso da minha irmã e deixei o corpo exausto cair no chão.

- A gente não devia tá brigando, não depois do que passamos com a nossa mãe..

Tinha em Alisson alguma coisa macabra, uma energia, uma força que me abalava, me fazia lembrar de tudo, me fazia querer falar todas as acusações que estavam presas na minha garganta por anos.

- Foi você. Nossa mãe nos deixava sem comer, sem banho, sem limpeza. Mas ela nunca me bateu, sempre foi você.

- Você era pequeno demais para lembrar.

- Não, eu não era. Foi você, Alisson. Você me bateu, me torturou, me estuprou, me mutilou, por anos.

Agatha soluçou, ela era tão pequena para lembrar do que ele fazia com ela também. Mas no fundo, ela sempre soube. Se sentia tão acuada por Alisson quanto eu.

Me levantei do chão, pronto para olhá-lo de cima. Chutei seu pé inútil e cuspi no seu rosto antes de subir os degraus devagar.

Meu quarto não me trouxe consolo, peguei o celular e vi a mensagem de Ceci.

"Topa ser meu guarda-costas"

Um leve toque na minha porta e ela se abriu lentamente.

- Posso entrar?

Abri meus braços e ela se aconchegou em mim, deitando a cabeça em meu ombro. Agatha tremia assustada, a abracei mais apertado.

- O que vai fazer com ele?

- Eu não sei, ele é nosso irmão apesar de tudo.

- A gente podia ir embora.

- Porque está dizendo isso?

A soltei e Agatha andou pelo quarto apertando as mãos.

- Você pode ter se safado hoje, mas a vida do dono do morro é sempre curta. Quando a polícia não te pega os outros pegam, não posso perder você porque é o único irmão que eu confio.

- Não podemos ir embora. Se eu me sair bem com o que estou fazendo com a Cecília, a comunidade vai estar comigo.

- Por quanto tempo? Um ano, dois? Cinco com sorte?

- Não há outra vida pra mim, Agatha. Não mais, por isso estou fazendo o certo por você.

- Eu gosto dela. Da Ceci.

- Ela é uma boa pessoa.

- Te faz bem, eu percebo isso. Nunca teria falado com Alisson daquela maneira, não sei o que ela fez, mas mudou você – Agatha chegou mais perto e me deu um beijo no rosto – aproveita isso.

Ela rodou em direção á porta, teatralmente.

- Acho que vou precisar sair, toma cuidado.

- É só eu ficar aqui em cima que vou ficar bem.

Ela riu antes de fechar a porta, Agatha era a única pessoa que me importava, eu ainda tinha mais três anos até ela ser dona do próprio nariz, se eu sobrevivesse esse tempo já estava de acordo com o plano, peguei o celular de novo e respondi Cecí.

"Espere por mim"

No fundo eu sabia que aquela era uma noite decisiva, sabia onde estava indo, tirei a mala da bolsa e enfiei o máximo de pistolas e munições que consegui, munição e raiva, não ia faltar.

Saí pela porta do quarto, passei pela cozinha sem ao menos olhar para o homem grande e patético tentando subir em sua cadeiras de rodas. Alisson se tornou alguém que eu jamais seria capaz de perdoar

Meninas do MorroOnde histórias criam vida. Descubra agora