Epílogo 1 - Maria Cecilia

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Era a época do ano que eu mais gostava, comida boa, família e presentes, e eu tinha família, não era a que eu nasci, mas foi a que conquistei, com trabalho duro. Aceitando o apelido de primeira dama, melhorando a vida deles, cada pessoa ali era importante para mim e eu para eles na mesma medida.

Olhei no relogio, a hora não estava passando, meus olhos doiam, não aguentava mais digitar.

Minha cadeira rangeu quando me sentei nela, precisava me lembrar de apertar os parafusos, mais uma vez recebendo na cara que beleza e qualidade nem sempre andam lado a lado. Senti aquela dor nas costas outra vez, não diria a Alan ou quem quer que fosse, não para ouvir aquela piada de idade chegando.

Eu só estava sentada atrás do computador a muito tempo, precisava me levantar e fazer alguma coisa mais ativa.

Enviei o último e-mail de boas festas, fechei o casado pensando em como eu odiava o clima de São Paulo, capaz de fazer quinze graus no verão, e me levantei, as juntas doloridas. Deixei minha sala sem me preocupar em desligar computador ou apagar a luz, eu voltaria para cá depois, ainda era final da manhã.

A Ong não era pequena, construída em paralelo ao hospital de campanha que estava se tornando um hospital de verdade lentamente, em construção há dois anos e nenhuma ala finalizada.

- Bom dia – cumprimentei ao passar pela recepção, com os olhos rápidos captei duas moradoras lado a lado uma delas eu conhecia de outras datas, conversando baixinho, me aproximei do balcão fingindo ler alguma coisa no computador – algo que eu deva saber?

- Violência doméstica.

- É a segunda vez essa semana.

Eu não sabia de todo o tratamento oferecido a cada uma das moradoras e assistidas da Ong Meninas do Morro, mas fosse o que fosse, não estava funcionando para ela.

Entrei pela larga porta de vidro espelhado e subi as escadas até o primeiro andar. O corredor único com portas dos dois lados, cada uma com uma placa cor de rosa no topo. A terapia daquela manhã era em grupo e falava de assédio virtual, parei na porta observando a roda, a psicóloga passou o O.B. para a mulher ao lado e ela começou do jeito habitual, "oi, eu sou fulana e sofri assédio", era mais uma brincadeira que algo necessário.

- A minha história não é muito diferente da de vocês, eu namorei um rapaz, ele era legal na época, dava presentes e essas coisas, mandei um vídeo para ele, não mostrava meu rosto mas de resto estava tudo lá – as demais riram, era uma conversa descontraída – a gente terminou e algum tempo depois ele me mandou mensagem no insta, queria reatar, nós discutimos e ele me mandou um link de um vídeo em um site pornô, tinha as minhas iniciais no nome do vídeo. Ele disse que eu era uma vagabunda por ter um vídeo desses na internet eu o confrontei. Disse que foi ele porque não mandei aquele vídeo para mais ninguém, ele admitiu, eu ameacei dizendo que faria um B.O. Em resposta ele falou que eu devia tá passando fome pra ir atrás de cesta básica, porque era essa condenação que ele ia receber. Me senti envergonhada, claro que eu não ia na delegacia, iam falar que a errada era eu por mandar um nude. Mandei um email ao site e no mesmo dia eles derrubaram o vídeo, mas não sei se tem em outro lugar ou alguma cópia, tenho medo de pesquisar. Acontece que o tempo passou, hoje sou casada e tenho um filho, nunca contei ao meu marido nem a ninguém, mas penso nisso sempre  etenho medo, me assombra.

- Tem razão – a psicóloga pegou o O.B de volta – é uma história parecida com as outras, mas tem importância, tudo o que você diz na roda tem importância.

- Eu posso falar? – perguntei dando um passo á frente na sala.

- Claro, fique à vontade.

- Em primeiro lugar, ele é um idiota, mesmo quando o juiz dá como pena o pagamento de cesta básica, ele não paga a você. Segundo que espalhar conteúdo erótico sem consentimento dos envolvidos é pena em regime fechado. Além disso, não tem que se envergonhar, quem nunca mandou um nude? – as meninas riram, mas era a mais pura verdade – quem tem que se envergonhar de ser um babaca e criminoso é ele. Eu não sou psicóloga, mas se puder aconselhar, diria para você conversar com seu marido, tira isso do seu peito. Se ele souber o que aconteceu, não vai mais precisar ter medo.

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