Capítulo 36 - Morado

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Se a vida fosse um livro, essa história teria acabado com o herói subindo o morro com aplausos depois da vitória. Porque nunca ninguém se pergunta o que acontece depois, como se os problemas fossem resolvidos com uma rajada de tiro. A verdade, é que o trabalho mal tinha começado.

Fora as instruções que deixei para o novo tesoureiro, tinha coisas que só eu podia fazer.

A casa de Mané não ficava muito longe da minha, mas com chuva, a terra e as calçadas escorregadias, levei tempo demais até chegar, talvez, se tivesse sido mais rápido, poderia ter voltado para casa antes de Maria Cecília sair e talvez impedido ela de sair antes da ligação.

Mané estava na cama, se levantou e jogou a chave para mim da janela. A casa era simples como a maioria no morro, mas tenho que admitir que ele sabia como gastar. Tv de 60, dois vídeos games concorrentes, alexa, uma casa tecnológica.

- Eu não sei mexer em nada disso, Cyber vem aqui direto pra me ajudar.

- Te falta neurônios – brinquei.

- Eu compenso no tamanho do pau.

- Não foi o que eu soube.

- Tá fazendo o que aqui, cara? Devia estar descansado.

- Sei lá, não me sinto no direito.

- Não faz o menor sentido, mas pega uma cerveja e senta aí.

Mané só tinha cerveja nacional, Ceci ia adorar isso, peguei duas e abri.

- Tá tomando antibiótico?

- Ah, não. É só uma cerveja, não dá nada.

- Preciso de você bem e logo – me sentei com as duas cervejas na mão, ambas para mim – como você tá?

- Bem, conheci uma enfermeira da hora. Perfeitinha.

- Não acredito que é com isso que estava preocupado.

- Como se você pudesse julgar, estava atrás de umas meninas desaparecidas e pegou a Cecília.

Me inclinei na cadeira, ele tinha razão, eu não podia julgar, ainda assim eu não tinha levado um tiro.

- A um mês atrás você estava me chamando de chefe e abaixando a cabeça quando eu passava, o que rolou?

- Primeiro, eu levei um tiro por sua causa, segundo que sua patroa gritou comigo por uma hora dentro do carro, eu tenho direitos.

Eu ri, virei o restante da garrafa, meu telefone tocou. Número restrito. Não atendi.

- Resolveu tudo no cartel?

- Em partes, não estava muito a fim de conversa.

- Mas veio me ver.

- Eu preciso perguntar – a conversa ficou séria de repente, virei a outra garrafa, subiu rápido, eu odeio Skol – tinha outra forma de acabar?

- Fala sobre a morte do Falcão?

- É, tinha outro jeito?

- Bem, ele era seu irmão, então foi melhor assim, se ele não morresse na hora e trouxesse ele para cá, iam machucar muito ele.

Eu entendia o que ele queria dizer. Assenti pesadamente, derrubei outra ligação.

- Acabou, Morado. Destruímos o prédio, pegamos nossas meninas, as pessoas aqui estão alertas, não vai acontecer de novo. Não tem que ficar pensando no que já foi, deixa as coisas voltarem ao normal.

- Vão nos pressionar, dou uma semana pra polícia começar a subir.

- A gente da conta, já fizemos isso antes, ou você se esqueceu?

- Não, eu me lembro bem, Falcão não me deixava esquecer.

- Sei que não é da minha conta, mas nunca acreditei que ele estava só saindo da academia quando foi baleado.

- Eu pensei nisso recentemente. Se ele estava envolvido com os figurões da polícia como o capitão Renald, pode ter feito isso antes, por isso sofreu o atentado.

- Foram vários confrontos, mas sempre desconfiei que era para mascarar um só.

- Vou retirar o que eu disse, você não é tão burro assim.

Outra ligação, já era a quinta desde que me sentei.

- Vou indo nessa, melhoras. Você tem trabalho a fazer.

- Vou ver se a enfermeira vem aqui me ver.

Deixei a casa de Mané me sentindo muito mais em paz do que quando cheguei. Foi no mínimo esclarecedor. O telefone tocou e dessa vez atendi.

- Senhor Morado? – uma voz feminina falou apressada – quem vai falar é o Governador Savoya, um minuto enquanto eu transfiro a ligação.

Paralisei no meio da subida, a chuva caindo em meu rosto, fina e insistente, o que esse homem podia querer comigo se não sobre Ceci.

Apenas alguns segundos de uma música irritante que pareceu uma hora. Encostei sob uma pequena cobertura de concreto, a linha fez sinal como se tirasse do gancho.

- Morado? – a voz dele era terrível, poderosa e pacata, como qualquer político.

- Estou ouvindo.

- Acho que sabe por que eu liguei.

- Espera.

Coloquei no viva voz e abri a captura em vídeo, pelo menos isso eu teria.

- Certo, está ligando pela Maria Cecília.

- Pelo bem dela, na verdade. Primeiro, sei que ela não anda te visitando contra a vontade, mas quero que a devolva.

- Ah, isso é com ela doutor. Posso te ajudar em mais alguma coisa? Como colocar uma bala na sua cabeça seu maldito filho da puta.

A linha ficou muda por um tempo, ele respirou profundamente.

- Já que você começou com as ameaças, eu vou fazer a minha. Bem, não é uma ameaça, é um aviso do que vai acontecer. O GARRA vai subir o morro, atirando, em qualquer um que estiver pela rua, vai entrar na casa que quiser, com carta branca para fazer o que quiser. Digamos que a ideia é diminuir a lotação populacional em trinta por cento.

- Bem, já que é um aviso, essa ligação foi mera cordialidade familiar?

- Não, eu estou dando uma chance. Uma. Você vai esquecer o que aconteceu na noite passada, vai esquecer das pessoas que viu no leilão e vai ficar quieto.

- Nossa, você me deu duas opções incríveis – fingi um riso.

- Você matou pessoas importantes, estou te oferecendo um bom acordo.

- O que você fazia com elas?

- Não tenho que falar disso com você.

- As que paravam no seu quarto e não saiam mais. Havia registros.

- Um homem culto precisa extravasar de algum jeito. O meu era um pouco violento.

Respirei fundo tentando controlar o ódio que crescia em meu peito.

- Eu até posso fazer o que o doutor tá pedindo, mas a sua filhinha, ela não esquece fácil.

- Mas não estou falando com ela, estou falando com você. Sei que vai dar um jeito.

Ele desligou, eu não tinha escolhas, abri o grupo do cartel.

"Chega de postagens sobre ontem, deixem as pessoas chorarem seus lutos em paz."

Me odiei por isso, era como se eu estivesse acobertando-o e toda a corja. E ainda tinha Maria Cecília.

Fui direto para casa, assim que virei a esquina percebi que o carro que mandei para ela não estava ali, liguei antes de encostar no portão, várias vezes, sem sucesso, ela não atendia. Assim que entrei na casa soube que ela estava agindo, brigando como uma lutadora, as pastas abertas e vazias sobre a mesa.

Meninas do MorroOnde histórias criam vida. Descubra agora