Capítulo 28 - Maria Cecília

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Assim que Alan saiu do carro com Mané tentei manter minha mente ocupada, tomei o banco do motorista e liguei o motor, virando o carro para a posição certa para quando eles voltassem.

Olhei pelo retrovisor e respirei fundo, estava prestes a vomitar. Parecia que estava sempre com a bile na garganta desde que conheci Alan. O sentimento me corroía.

Eu era uma cumplice de qualquer coisa que ele fizesse, a motorista de fuga, não era como eu agia. O telefone de Mané no banco do passageiro me assombrava, eu poderia pegar e ligar para a polícia.

Estava prestes a fazer isso quando um carro passou por mim em alta velocidade, pelo menos para aquela estrada de pedregulhos. Reconheci o carro e a placa.

- Victor.

Acelerei, seguindo ele com a mesma velocidade, eu só queria alcançar e falar com ele ou algo assim, mas quando me aproximei, vi duas sombras no carro, se ele não estava sozinho e correndo daquele jeito, ele só podia estar com Agatha.

O telefone no banco do passageiro tocou, olhei só o suficiente para atender no viva voz.

- Alan? Graças a Deus.

- Acabei de passar por onde você devia estar, cadê você?

- Estou atrás do meu irmão, ele está com a Agatha?

- É ele está. Me diz onde?

- Ele pegou a interestadual.

- Cecília, toma cuidado, não faz nada estúpido.

- Claro, deixa comigo.

Eu tentei usar um tom de brincadeira, embora tudo o que eu estava fazendo á dias fosse absurdamente estúpido.

O carro que eu estava tinha o acelerador mais pesado que o meu, exigindo mais força para acelerar e muito mais para frear, a interestadual aquela hora da tarde ainda estava vazia, pelo menos no sentido que estávamos indo, eu estava exausta, Victor já tinha notado que estava sendo seguido e começou a jogar o carro de uma pista para outra, eu acompanhava.

Estradas não são tão perigosas se você sabe algumas regras, logo a frente uma carreta diminuia a velocidade da pista, Victor tentou ultrapassar por diversas vezes, o carreteiro sempre jogando o caminhão para o lado da pista, leve, mas perceptível. O que significava que não era seguro ultrapassar.

Victor estava desesperado, não prestou atenção ao sinal, jogou o carro para a outra pista e tentou ultrapassar quando em sentido contrário vinha outro caminhão, buzinei diversas vezes para impedi-lo, não adiantou, ele acelerou e quando viu que não daria tempo tentou voltar para a mesma pista, acertando a traseira da carreta que mal saiu do lugar.

O carro de Victor rodou, não tive tempo de parar, freei com força e meu carro também girou em um cavalo de pau, Victor bateu contra a mureta que limitava o acostamento e eu caí na vala, um tranco fez meu corpo sacudir e bati a cabeça no volante. Forte o suficiente para desmaiar.

Quando eu era mais nova, bem mais nova, na verdade, havia um programa na TV a cabo, Discovery Channel ou algo assim, onde pessoas relatavam diversas coisas sobre quando estavam em coma ou tinham uma experiência de quase morte. Isso me fascinava, achava que se fosse comigo, eu teria muita coisa para contar.

Não tive. Enquanto estava apagada, eu tive uma lembrança que eu nem sabia que existia. Bolhas de sabão em uma chácara, antes da política, das dúvidas, dos crimes, não me lembro de quem as estava fazendo, embora fosse a coisa mais divertida que eu já tinha visto.

Victor estava lá, como sempre, me cercando, me sufocando, roubando tudo para ele e apesar de saber disso, na memória ele não estava, sua figura tinha sido apagada.

Ouvi um som distante, um toque de celular que foi me trazendo de volta pouco a pouco até estar desperta.

- O waze tá sinalizando acidente na pista. Diz que não é você.

- Alan – olhei para o outro carro, parcialmente esmagado pelo concreto – ah meu Deus, vem depressa.

Saí do carro, tentando ignorar a dor lancinante em minha testa, que tornava minha visão turva. Me aproximei do carro enquanto esse soltava muita fumaça.

- Cuidado, moça. Já estou chamando socorro – falou o carreteiro quase em pânico.

Me aproximei, mesmo com a fumaça era possível ver os dois feridos, abri a porta de Agatha, apesar de muito amassada só precisei de um pouco mais de força, ela virou a cabeça e gemeu.

- Consegue andar?

- Eu não sei, acho que sim.

Soltei o cinto e tive minha mão segurada.

- Ceci. Me ajuda – Victor se engasgava com seu próprio sangue, os danos no carro do seu lado eram muito piores.

Soltei minha mão da dele, uma freada e a van escura parou ao meu lado, repleta de marcas de bala. Eu precisava fazer minha escolha e não foi nada difícil.

Soltei minha mão e agarrei Agatha pela cintura, a levantando do carro com dificuldade, ela gritou de dor.

- Minha perna, acho que quebrei.

- Tudo bem, se apoia em mim.

Saí com ela de perto do veículo, Alan correu para nós e a pegou, ajudando a levá-la para trás da van. Eu entrei e fechei a porta.

- O que aconteceu? – perguntei a Mané enquanto Alan se dirigia á porta do motorista.

- Atiraram em mim.

- Vamos pro hospital?

- Não – Alan acelerou – vamos voltar pro morro, lá não fazem perguntas. Agatha, você tá bem?

- Estou e o Alisson?

Olhei para o espaço da cadeira de rodas ao meu lado, um amontoado coberto por um plástico preto como saco de lixo e uma mão saindo por baixo. Agatha levou á mão a boca e seus olhos se encheram de lágrimas.

Eu a entendia, Alisson era uma pessoa péssima, a maioria das pessoas diria que ele teve o que mereceu e talvez seja verdade.

Mas ainda era irmão dela. Assim como Victor era meu irmão e eu o deixei se afogar com seu próprio sangue.

Deitei a cabeça no vidro, eu queria chorar, mas não conseguia, tinha perdido esse direito.

- Cecília? – olhei para Alan que me encarava pelo retrovisor – se machucou?

- Não, e você?

- Eu estou bem, quer que eu te deixe em algum lugar?

- Não tenho mais para onde ir.

Mané ligou a rádio de notícias, havia muita coisa para colocar de manchete, o video da Brenda, a entrevista com o Delegado Renald, tiroteio na zona industrial, acidente fatal envolvendo filho do governador. E o que estava sendo notíciado era a corrida pela presidencia.

Tudo o que fizemos não adiantou nada, estavam abafando.

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