Capítulo 29 - Morado

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A única palavra que me lembro de pesquisar no dicionário foi Fatricidio, eu tinha dez anos e estava estudando sobre as disputas pelo trono ao longo da história. Um tema que sempre pensamos que nunca fará diferença na nossa vida.

Na minha fazia. Em tempos modernos, tendo o trono como o cargo mais alto do morro. Um irmão invejoso, cruel e destemido, Alisson. E eu o outro lado, lutando contra o sistema por justiça para os meus, recorrendo ao crime organizado para dar a minha única família restante o que ela merecia.

Fratricidio, cometido por mim. O corpo de Alisson no espaço maior da van pesava no carro e na minha mente, sufocando.

Virei o carro na comunidade. Mané reclamou, tinha tanto sangue cobrindo sua calça que parecia que veio assim de fábrica, uma nova lavagem sinistra no jeans.

O hospital instalado na comunidade era de campanha, mas perdurava há três anos, no geral, muita gente se tratava lá, desde gripes até ferimento a bala, então, quando chegamos com Mané, que havia perdido muito sangue, a equipe começou a trabalhar com a hipótese de ter acertado a femoral.

Sentei Agatha na cadeira de rodas na porta, fiz a ficha dela, sem apresentar documento e usando um nome qualquer, não gostaram nada disso, mas não disseram, sabiam como tomar cuidado por aqui. Ela estava com muita dor e a calça apertada não dava vazão ao inchaço.

- Será que vão cortar? É minha calça preferida - Agatha estava chorosa, como sempre fazia quando estava doente.

- Você pode ter cinco dessas quando melhorar, mais algum lugar está doendo?

Ela afastou a blusa na altura do ombro, me mostrando a marca roxa deixada pelo cinto de segurança.

- Foi uma batida feia.

- Acho que foi pior para o irmão da Ceci.

- Eu sei – olhei por cima do ombro na recepção, Ceci estava de braços cruzados, suada e abatida, o sentimento sufocado pela incerteza – eu falo com ela depois.

Chamaram Agatha logo depois, seguimos ao longo do hospital de lona com baias de cortina plásticas separando, a coloquei em uma maca até que o médico viesse.

- Oi, como está? – Ceci parou ao meu lado, evitando olhar para mim.

- O médico ainda não veio, se quiser ir para minha casa, eu peço pra alguém te levar.

- Não, eu estou bem. A menos que esteja atrapalhando.

Ela não queria ficar sozinha e sendo bem sincero, era melhor que ficasse de olho nela. Avaliei melhor seu estado, ela tinha um corte sobre a sobrancelha que precisava de cuidados que precisei insistir muito para que ela fosse ver.

Agatha precisou de raio-x e gesso, além de analgésicos que deixaram ela sonolenta.

- Bateu a cabeça? – o médico perguntou pela décima vez antes de deixar a enfermagem.

- Não dá pra abrir mais? Tá muito lento – Agatha resmungou com o soro no braço.

- Essa medicação é assim mesmo, se descer muito rápido você vai passar mal – a enfermeira explicou.

- Quer ir pra casa? Posso dar um jeito.

- Não é isso, você precisa falar com a Ceci.

- Preciso cuidar de você. Como se sente?

- Não está mais doendo.

- Não é isso, com o que aconteceu com você, deve estar assustada.

Agatha suspirou e apertou os lábios, ela nunca se abria com seus pensamentos, assim como qualquer Morado.

- Só estou feliz por você ser meu irmão.

Eu sorri, era um jeito de dizer que ela entendia as coisas que eu fiz, também era um agradecimento.

- Sempre vou cuidar de você, não importa quem tente impedir.

- É melhor eu não ficar no caminho – Ceci brincou, ela chegou perto de Agatha e olhou para o soro pendurado – Tramal? Vai levar um tempo.

- Ai, eu sei – Agatha resmungou de novo, cobrindo o rosto com o braço.

Me levantei e sussurrei no ouvido de Cecília.

- Preciso falar com você.

Ela assentiu e deixamos Agatha com seu tédio, levei Ceci para fora do hospital e de olhares curiosos.

- Alguma coisa sobre seu irmão?

- Ainda não, mas do jeito que ele estava, eu não sei - sua voz embargou e ela parou de falar, certamente para não cair em prantos, uma garota forte - É seguro ficar aqui fora? – ela perguntou assustada.

- O perigo que tinha eu já resolvi, estamos bem.

- Não estão falando nada nos noticiários.

- É, também derrubaram vários posts com o vídeo da Brenda.

- Não adiantou nada, Alan. A gente só machucou algumas pessoas, mas perdemos.

- Ceci, as coisas funcionam assim. Ganha quem paga mais.

Ela balançou a cabeça lentamente, os pontos acima da sua sobrancelha, cobertos pelo curativo simples, estava inchado. Ela colocou a mão sobre ele. Cecília tinha razão, machucamos algumas pessoas, inclusive a nós mesmos.

Mas erámos só eu e ela contra algo muito maior. Puxei ela para meu abraço, a apertando comigo, olhei em volta, todas aquelas pessoas buscando auxílio, deixadas de lado pelos mesmos que levaram suas filhas, irmãs, amigas.

Me perguntei se eles fariam o mesmo por elas que eu fiz por Agatha. A resposta era sim.

- Eu vou dar um jeito.

- O que pretende fazer?

Afastei alguns centímetros, segurei seu rosto e o virei para mim, os olhos dela nunca estiveram tão claros como naquele momento, busquei todas as verdades que eu sabia sobre ela, desde sua preferência em dormir de costas para mim, até seu senso de justiça, mas havia algo que eu não podia saber a menos que ela dissesse em voz alta.

- Ainda é minha namorada de mentira?

- Não. A farsa acabou, não a mais sentido em continuar fingindo.

- É minha namorada de verdade?

- O que vai fazer?

- Precisa confiar em mim e por favor, não acione a justiça.

- Eu sou sua namorada de verdade e estou com você Alan. Mas não me deixa de fora.

- Preciso de você para tomar conta da Agatha pra mim.

- Hoje? – seus olhos se encheram de lágrimas, não esperava vê-la tão emotiva por mim.

Juntei nossos lábios em um beijo calmo. Ceci não precisava de resposta, ela sabia o que eu queria dizer, resolver as coisas não seria nada fácil, tampouco garantido, apenas o estrago era certo dos dois lados.

Quando você aponta uma arma, há sempre outro cano apontado para sua cabeça.

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