III. O Jantar está Servido

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William:

Havia acabado de entrar no Uber após a minha sessão de terapia. Aquela mulher, a Emily, esteve me ouvindo atrás da porta. Nos conhecemos na semana passada e ela me chamou atenção. Enquanto o motorista atirava o carro pelo tráfego noturno e as luzes da cidade passavam ligeiras pela janela, eu pensava sobre ela e seu recente corte no braço, provavelmente feito àquela manhã, protegido no curativo.

De todo tipo de mulher que costumava cruzar meu caminho, quase nenhuma de fato atiçava a curiosidade ou me despertava algo. Emily mais que aguçou ou despertou, ela trouxe à tona algo selvagem que há tempos eu tentava aquietar.

Ela não sabia, mas eu descobri absolutamente tudo a seu respeito no decorrer da semana. Ou quase tudo... Embora fosse alheio à tecnologia e me mantinha afastado o máximo possível de mídias sociais, para mim era fácil obter informações. Por ser escritor e estar sempre em constantes pesquisas, contava com a ajuda de um detetive particular sempre que necessário. Contratei seus serviços para me passar os detalhes a respeito da vida de Emily Hartzler.

Para meu espanto, era dramaturga. Isso me surpreendeu e fascinou. No pouco que li de suas peças teatrais, eram bem conceituadas embora de alguns anos para cá tornaram-se decadentes e dramáticas demais, perdendo público.

O que aconteceu para tornarem-se decadente? Um trágico acidente em família que resultou na morte de seu bebê recém nascido. Houveram mais pessoas envolvidas nessa tragédia, porém o detetive não conseguiu descobrir quem ou o que exatamente aconteceu.

A parte disso, seu pai fora condenado a quinze anos de prisão por abusar sexualmente de sua meia-irmã mais nova, Lola Marie. Na pasta que o detetive me entregou, haviam fotos recentes de Emily visitando o pai na penitenciária, o que me levava a concluir que o perdoou, ou sempre esteve ao seu lado.

Não me espantava que ela se automutilava.

Nesse momento, descia do Uber e atravessava o portão de minha casa, sendo essa a última de uma rua sem saída. O jardim era amplo e protegia por completo o casebre antigo que eu herdei de família. Esses jardins de palacetes deveriam ser, por costume, periodicamente podados e cuidados, devido à sua imensa variedade de botânicas e exageradas árvores. No entanto, no decorrer dos anos, deixei-o crescer e se alastrar como uma doença se espalha e domina um organismo vivo, sendo esse organismo a minha casa.

O que eu mais apreciava eram os galhos das imensas e velhas árvores, tortuosos e proeminentes se enroscando e criando uma teia fechada feito um grande abrigo. Protegiam minha morada do Sol, me protegiam do mundo.

O limbo verde enegrecido e as trepadeiras se alongavam pelas paredes exteriores do casebre alcançando até as sacadas do segundo andar. A residência parecia ameaçadora e assombrosa de fora, contudo por dentro, possuía seu charme, prevalecendo a decoração luxuosa e vitoriana com ricos e majestosos detalhes.

Os móveis eram de madeiras de mogno, pesados, maciços, imponentes, com acabamentos escuros, entalhes e diversos tampos de mármore.

Era frio em seu interior, devido à umidade excessiva do exterior, dessa forma o ar era sobrecarregado. Não haviam lâmpadas, foram arrancadas ou cobertas. A única iluminação era de velas. Castiçais, candelabros, suportes e lustres repletos de velas de todo tipo e tamanho.

Por ser escritor e possuir minha própria editora de livros, o meu lugar favorito era o escritório que mais se assimilava com uma biblioteca, de teto alto abobadado e imensas estantes de livros.

Após transpassar o jardim cerrado, abri a porta de entrada e pisei no saguão principal. Ouvi os sons de passos descalços vindo correndo em minha direção, ágeis e ansiosos, ecoando através do escuro. Pouco depois surgiu a figura de Marília, segurando uma lamparina. A luz amarelada a envolvia. Assim que ergueu os olhos castanhos para mim, esboçou um sorriso tão natural que pareceu ter luz própria também.

Obsessão de Sangue || Bill Skarsgård ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora